– Boa noite, com o início do modo de manutenção, podemos iniciar a audiência sobre os ocorridos ontem. Com todos os dados compilados até o presente momento, sabemos que a organização enfrentará problemas sérios após este período de recesso, e pretendemos aqui, juntos, entendermos a série de alarmes disparados nas últimas horas do dia anterior, preparar planos de contenção de danos e talvez até aprender alguma lição com tudo isso. Meu nome é Experiência e eu presidirei a sessão.

Experiência junta alguns papéis sobre a mesa, procurando por um em específico. Após algum desembaralhamento, parece encontrar o desejado.

– Estamos reunidos hoje pelo relatório apresentado pelo companheiro Pessimismo, o qual transcrevo aqui:

“Não tem como isso dar certo. Assim que sairmos da manutenção, o Arrependimento vai ser liberado pelo CBP e terá controle total sobre a situação. Gostaria de relatar que fui censurado diversas vezes, ao contrário do Otimismo, que teve seu discurso liberado e amplificado pelo CBP, em clara violação do acordado neste mesma corte há menos de uma semana atrás. Estamos diante de uma situação com riscos não só emocionais como de integridade física, diria até com possibilidade real de falência completa da organização.”

– Pessimismo, seja bem vindo. Você confirma seu relatório? – pergunta Experiência.

– Sim. E posso até adicionar mais elementos depois de uma visita ao CAM que me revelou que eu não só estava correto sobre a semana passada, mas sobre diversos outros compromissos não firmados pelo CBP. O Partido das Compulsões de Consumo estava sob vigilância por pedido meu, concedido por esta corte há mais de seis anos, vigilância essa que mais uma vez não foi realizada de forma satisfatória. Reforço que a situação é grave, existem riscos severos, e por vandalismo do PCC no CAM, eu sequer tenho como estabelecer o quanto vamos sofrer pelos atos desta última noite. – o Pessimismo fala com certo desânimo.

– CBP, vocês confirmam ou negam as afirmações do Pessimismo? – Experiência muda o foco para um grupo que cochicha entre si. Um dos elementos então dá um passo a frente.

– Boa noite, em nome do Centro de Busca pelo Prazer, refuto as acusações levianas do Pessimismo. Os atos e palavras do Otimismo não estão relacionados com o nosso time, e sequer temos os instrumentos legais para praticar qualquer forma de censura ao Pessimismo. Sobre os atos do PCC, apenas nos prontificamos a reduzir o apoio logístico com substâncias controladas, o que estamos fazendo há anos, ficando ao cargo da PFV fazer a vigilância e repressão aos atos do grupo. Repudiamos também o costume de culpar-nos por todos os problemas por parte do Pessimismo e seus asseclas, pois de forma alguma somos responsáveis por todas as atitudes da organização. Provemos apenas a distribuição de recompensas de acordo com o que nos é pedido. – O grupo do CBP volta a se unir em conversas internas, seus integrantes claramente mais descontraídos que os outros presentes.

– Polícia da Força de Vontade, qual o seu relato sobre as afirmações do CBP? – Experiência aponta a mão para um pequeno grupo de homens uniformizados, que também escolhem um representante para dar um passo a frente.

– Nós fizemos o melhor possível com os recursos que temos. É notória a falta de investimentos na nossa equipe, principalmente nos últimos anos. Nosso contingente precisaria ser mais do que dobrado para lidar corretamente com todos os problemas diários. Não temos os números para fazer policiamento intensivo em todas as áreas de risco ao mesmo tempo, preferindo então trabalhar com rondas periódicas e concentração de efetivo em áreas de infrações mais severas. Durante o ataque do PCC ao Centro de Arquivos e Memórias na noite de ontem, contávamos apenas com um policial no local, que chamou reforços, mas que chegaram tarde demais com a crise deflagrada pela liberação da Carência. Fizemos nosso melhor, e pedimos novamente por mais recursos para poder fazer o trabalho que esta organização precisa. – o representante da PFV discursa de peito inflado.

– Oficial, você poderia me dizer quem liberou a Carência na noite de ontem?

– Senhor Experiência, nossa investigação preliminar aponta para uma falha generalizada na segurança do Departamento de Repressões causada por uma rebelião liderada por membros superiores do PCC. A detenta Carência estava mantida numa cela especial que foi desativada por um curto circuito nas sinapses de segurança às 22:42. Foram necessários doze oficiais da PFV para fazer a contenção, mas infelizmente ela conseguiu entrar em contato com o Impulso Sexual antes de ser neutralizada.

– Impulso Sexual, você confirma o contato com Carência no dia de ontem?

– Sim. Fui oferecido um pagamento suntuoso de recompensas pelo CBP caso atendesse aos pedidos da Carência. E aposto que todos aqui sabem como faz tempo que eu não recebo pelo meu trabalho. Minha greve foi rejeitada como ilegal pelo Conselho dos Instintos, e eu só fiz o que tinha que fazer. As 23:18 eu desativei a chave do auto-respeito e reduzi os padrões de atração em 50%, valor que foi aumentado para 85% posteriormente por um membro do PCC. A tática se mostrou eficiente, com um relatório de emissão e recebimento de endorfinas às 23:55. Como é padrão em reduções de padrão de atração em mais de 50%, fiz o requerimento da presença do Arrependimento pela manhã. – O Impulso Sexual sorri de forma irônica.

– CBP, vocês confirmam o relato?

– Recebemos ordens diretas do Conselho dos Instintos. Não pudemos fazer nada diferente. Seguimos nosso protocolo também, enviando um aviso de urgência para o Bom Senso.
– Bom Senso? Bom Senso? Você está aqui?

A sala fica em silêncio.

– Responsabilidade, você não chamou o Bom Senso para a reunião? Responsabilidade, cadê você?

– Aqui em baixo! – Responsabilidade sai do meio de um grupo próximo, passando por entre suas pernas. Ela é muito menor que todos os outros na sala.

– Cadê o Bom Senso?

– Eu não sei se ele me ouviu quando eu chamei… às vezes ele não me escuta.

– Alguém pode ir chamar o Bom Senso para esta reunião?

Proatividade sai correndo da sala. Preguiça e Desânimo se entreolham, debochados.

Alguns minutos depois, Bom Senso aparece, esfregando os olhos, cara amassada e bocejos constantes. Está sendo praticamente arrastado por Proatividade.

– O que foi, Experiência? – Bom senso mal consegue manter os olhos abertos.

– Queremos saber porque você não coordenou as ações de defesa contra o Conselho dos Instintos ontem.

– Porque não faz diferença. A gente se vê semana que vem? – Bom Senso boceja depois de falar.

– Sim. Até semana que vem. Todos dispensados. Aprendizado, anotou tudo?

– Não.

Todos riem e vão embora.

Para dizer que adora finais felizes, para dizer que eu deveria ter escrito o Estranha Mente, ou mesmo para dizer que finalmente entende a sua cabeça: somir@desfavor.com