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Cadeia para quem precisa.

Cadeia para quem precisa.

| Desfavor | | 30 comentários em Cadeia para quem precisa.

+Os integrantes do Sindicato do RN, a mais numerosa organização criminosa do estado, estão em confronto com o Primeiro Comando da Capital (PCC), que domina um dos cinco pavilhões de Alcaçuz. Detentos das duas facções rivais estão soltos dentro da penitenciária.

Em semana de muitos desfavores, o absurdo do que restou do sistema prisional brasileiro é o desfavor da semana.

SALLY

Essa semana teve muita coisa polêmica. O relator da Lava Jato morreu às vésperas de homologar o maior e mais bombástico bloco de delações premiadas, porém, não vamos falar sobre isso, pouco se sabe e muito se especula sobre o caso. Não teríamos nada de novo a trazer. Trump tomou posse, mas também não vamos falar sobre isso. Bem, o desfavor foi quando ele se elegeu, e de fato passamos quase uma semana falando sobre isso. No meio de tantos desfavores, vamos falar de um que nos afeta diretamente e acabou ficando em segundo plano nesta semana movimentada: o caos no sistema prisional brasileiro.

Rebeliões vem eclodindo em todo o país, mostrando não apenas as condições bizarras dos presídios como o total despreparo do Estado para lidar com isso. Os presos estão no poder.

Um breve parágrafo para quem é leitor novo (quem é leitor antigo está de saco cheio de ler isso). Não se trata de querer “regalias” para presos. Minha crítica se funda no seguinte: o sistema penal brasileiro visa a ressocialização, ou seja, se prende para melhorar, capacitar e reeducar o preso. Por isso, em alguns anos coloca o preso de volta às ruas. A ideia da cadeia não é apenas punir, mas também ressocializar. Então, com esta mentalidade, se você colocar criminoso em um ambiente insalubre, apanhando, sendo torturado, sendo estuprado, ficando nas mãos de facções criminosas, ele acaba sendo devolvido à sociedade pior do que entrou. É nocivo PARA A SOCIEDADE, para você, para mim. Ou se muda a filosofia e se adota o sistema punitivo como os EUA, onde o que se quer é punir e ponto final e se mantém preso encarcerado por quanto tempo quiser, ou se adota a ressocialização e se trata preso de forma diferente. Escrotizar para depois devolver à sociedade é fabricar bandido.

Hoje, o sistema penitenciário brasileiro está falido. Há uma superlotação de proporções insustentáveis, falta de infraestrutura e segurança zero. Vou fazer um breve relato do que encontrei quando, anos atrás, resolvi trabalhar na área. A lei manda que os presos sejam alojados em presídios de acordo com uma série de critérios pensados para que pessoas menos perigosas não sejam influenciadas por outras mais perigosas. Porém quando o preso entra no presídio, o critério usado é perguntar a qual facção criminosa ele pertence. Se não pertence a nenhuma, ele vai ter que escolher uma, caso contrário será hostilizado por todas e dificilmente sobreviverá.

A partir do momento em que a pessoa adere a uma facção criminosa, ela tem uma série de obrigações para com esta facção, que se estendem inclusive ao período depois que ela sai do presídio. E, caso não as cumpra, seus familiares acabam pagando o preço. Essas obrigações podem variar desde o pagamento de uma mensalidade até praticas delituosas. Também deve tomar partido de qualquer briga ou problema envolvendo a facção, caso contrário será morto pelos próprios colegas. Assim, um ladrão de galinha sai membro do PCC, devidamente treinado e mantendo uma relação de subordinação e obediência para com os líderes da facção.

Assim, em uma postura hipócrita, o Brasil diz “vamos soltar os presos depois de poucos anos de reclusão, afinal, nossa política criminal visa ressocializar, eles não precisam ficar muito tempo presos”. Mas, na prática, não ressocializa porra nenhuma e solta aos montes de volta à sociedade presos que saem mil vezes pior do que entraram. Cansei de conversar com presos que seriam soltos e disseram “Doutora, se eu sair, vou fazer novamente. Tem certeza que vão me soltar?”. E mesmo informando isso letra a letra para o juiz, a decisão é soltar o preso pois “é um direito dele conferido por lei”. Difícil, né? Colocamos de volta na rua pessoas que já informaram que voltarão a matar e estuprar.

Assim, se cria a seguinte realidade: prende-se por qualquer coisa, até mesmo por clamor popular. Acabam prendendo até ladrão de galinha. Ele entra na prisão, adere a uma facção criminosa, sofre todo tipo de violência e abuso, sai brutalizado, revoltado e tendo que conseguir dinheiro para pagar sua contribuição à facção que pertence. Fatalmente acaba cometendo mais crimes e volta a ser preso, o que garante ao Brasil um dos mais altos índices de reincidência criminosa do mundo. Isso vai aumentando a população carcerária em progressão, até chegar ao ponto que se chegou: não cabe mais ninguém.

Essa rápida pincelada dá uma ideia superficial da realidade na qual vivemos. Sim, é problema nosso, pois essas pessoas voltam às ruas. Quem trabalha no sistema penitenciário não pode fazer nada, carcereiro não pode nem usar arma para trabalhar, pois tem que entrar em cela superlotada, onde facilmente tomariam a arma das mãos dele. É tudo mais precário do que vocês podem imaginar. O resultado está aí: rebeliões com direito a todo tipo de barbárie onde o evento é atribuído exclusivamente à má índole dos presos. Não. O Estado tem que estar preparado para ter controle e zelar pelas pessoas que prende, quando não está, é hora de repensar seu sistema penitenciário, pois afeta a todos.

O Brasil é tão bizarro, que este problema consegue ser ainda mais potencializado. Presos filmam rebeliões estilo Game of Thrones Tupiniquim, onde o evento mais leve é pessoa decapitada e camelôs vendem esses vídeos nas ruas. Esgota. As pessoas gostam de ver esse tipo de coisa! Sucesso de audiência. Mais: o povo comemora que isso esteja acontecendo. Acham que morte e barbárie em presídio é um reforço à punição, mas não percebem que nosso sistema penitenciário foi pensado para ressocialização, então, morte e barbárie viram fábrica de bandido que vai ser jogado de volta às ruas rapidamente.

O grau animalesco dos eventos mostra o nível que fica uma pessoa que entra em um presídio. E não me refiro apenas aos presos e sim a todos os envolvidos. Esta semana uma manchete noticiava que presos travaram uma “batalha campal”, algo que eu atribuí a exagero da imprensa. Porém, quando abri a foto, de fato havia duas linhas de guerra, uma de cada lado, com lanças, com fuckin´lanças, se digladiando. Pareciam Uruk-hais. Dois grupos, um de cada lado, gritando e sacudindo lanças, uma versão muito feia e macabra do filme 300.

Essa rebelião começou no dia 14 e dura até hoje, pois ninguém consegue entrar ou quer botar ordem. Estão se matando em uma “batalha campal” e nada é feito. O Estado tem obrigação de impedir que isso aconteça. Mas, como sempre pode piorar, teve mais um desdobramento. O melhor foi a notícia que se seguiu: “presos interrompem rebelião para culto evangélico”. Segundo a notícia, “Os detentos entoaram músicas religiosas e fizeram orações.”. Ambos os lados, que estavam travando a “batalha campal”, sentaram no chão lado a lado para ouvir a palavra do Senhor. Dá para viver neste país? Me diz, há condições de suportar o Brasil? Pessoas que se dizem religiosas matando o coleguinha com uma lança? Cortando cabeças?

Os ignorantes de plantão acham lindo, acham ótimo: “tem que se matar mesmo, foda-se”. Meu querido, graças à mentalidade de ressocialização, estas pessoas VOLTAM PARA AS RUAS e podem cruzar por aí com você, com seus filhos ou seus pais. Tem certeza que quer comemorar as péssimas condições nos presídios? Te afeta também, você já parou para pensar nisso?

Caso você seja da ideia que presos tem que ser tratados sem respeitar direitos humanos, sugiro que comece um movimento para mudar o sistema brasileiro para algo meramente punitivo e defenda prisão perpétua, pois gente mantida nessas condições não faz coisa boa quando volta para as ruas. E chega de continuar achando que a solução para tudo é cadeia. Meus queridos, no Brasil, cadeia só faz uma coisa: tira o criminoso de circulação por 4 ou 5 anos e o devolve pior do que ele entrou.

O Judiciário, como sempre, totalmente ineficiente e burro. Joga na cadeia ladrão de galinha e, quando a coisa explode, manda soltar indiscriminadamente tudo quanto é tipo de criminoso. A realidade é clara: não cabem mais presos nas cadeias brasileiras. Simplesmente não cabem. Ou repensam a vida e começam a punir crimes leves de outras formas, ou mudam essa mentalidade de ressocialização para começar a agir de forma exclusivamente punitiva. Assumem que é só punição mesmo e que vão trancar as pessoas para o resto da vida e constroem mais presídios para isso.

O que não dá é ficar em um discurso X e adotar uma postura Y. Todo mundo sofre com isso, inclusive a sociedade, que recebe de volta pessoas perigosas e brutalizadas que deveriam estar ressocializadas. O Estado não vai ressocializar? Não devolve à sociedade então! Já desisti de militar para qualquer lado, de argumentar e até de trabalhar com direito, escolham aí o que querem, ressocializar ou punir, e se portem de acordo com isso. Sério mesmo, não me importa mais qual lado vão escolher, mas decidam o que fazer: se devolver à sociedade ressocializa. Se não for ressocializar, não bota na rua.

E você, que está achando tudo lindo, não seja burro, como está a coisa só nos prejudica. Comemorar barbárie e más condições em presídio é dar um tiro no pé.

Para tirar da cartola que meu texto defende bandido, para dizer que deveriam enviar pastores para negociar rebeliões ou ainda para perguntar aos detentos cadê o seu Deus: deixe seu comentário

SOMIR

Assino embaixo do texto da Sally, até porque foi conversando e conhecendo o ponto de vista dela que eu finalmente comecei a entender melhor o desastre que é o sistema prisional brasileiro. O Brasil não sabe o que faz com seus presos, fazendo duas formas absolutamente incompatíveis de tratamento conviverem. Não adianta ser humanista em tese.

Mas com a explicação dela, eu fico com espaço para analisar um outro ponto: como o ser humano se adapta facilmente. O que provavelmente foi a chave para a nossa evolução como espécie também gera situações bizarras como as do presídio no Rio Grande do Norte. Quando a sociedade colapsa, as pessoas se colocam novamente no menor estado de organização que conseguem. Escrevi num texto recente que as cadeias brasileiras viraram objetivamente um novo país, com leis próprias. Produzindo uma massa de “imigrantes” entrando e saindo do Brasil a cada condenação.

Pois bem, tem mais ainda: as cadeias brasileiras não são só outro país, como uma fenda temporal que joga seus integrantes no passado da humanidade. Com batalhas campais, reis e feudos em tensão constante. Essa estrutura de PCC e afins não é nada de novo na nossa história, o ser humano vai se afiliando a grupos por proximidade e conveniência. Somos animais sociais e na falta de uma afiliação maior como um Estado, quem fizer uma oferta de grupo leva o indivíduo.

Tentador desumanizar o bandido, aquele que fez alguma coisa contra as nossas regras de convívio, que fez mal para outras pessoas… mas, improdutivo. Mesmo se você for do tipo que quer ver os bandidos punidos com a maior severidade possível ao invés de preparados para voltar para a sociedade, está cometendo um grande erro ao esquecer que seja como for, são pessoas. Nas rebeliões onde os presos arrremessas cabeças de adversários pelos muros e cometem todo tipo de barbárie, são seres humanos da mesma forma.

Seja pelo interesse de vê-los de volta à sociedade ou mesmo por pura necessidade de conhecer seu inimigo, não se esqueça que pessoas se adaptam. É isso o que fazemos de melhor, e é isso que acontece nas cadeias brasileiras. Há segurança nos números e na “ilusão” de brutalidade. Quem está enfiado numa cadeia com dois grupos extremamente violentos disputando alguma coisa tem que fazer várias escolhas terríveis pela própria sobrevivência. E muitas delas não significam que as pessoas ali são todas psicopatas. Basta voltar no tempo para entender… o que acontece na cadeia potiguar é análogo com batalhas de povos muito mais primitivos.

E nessas batalhas, muito se engana quem acha que filmes são bons indicativos do que acontecem. Pessoas em média detestam lutar e colocar suas vidas em risco. Por mais que façam pose de guerreiros destemidos. Nas batalhas da antiguidade, a lógica era basicamente fazer o outro exército fugir. Não tem essa pegada Game of Thrones de todo mundo se matando até sobrar só um lado. Pessoas não lutam até a morte se podem fugir. Outra coisa: seres humanos detestam matar. Nas grandes guerras do século passado, a proporção de pessoas que atiravam para matar de verdade era de uma a cada vinte. O resto atirava para errar mesmo, só para fazer o outro lado fugir. Ainda vou escrever um texto sobre isso, é fascinante.

O que vemos hoje em dia nas cadeias brasileiras não é uma batalha de filme onde todo mundo vai se matar, é uma batalha da vida real de pessoas não treinadas militarmente, onde os participantes vão tentar fazer o maior show possível para o adversário na esperança que ele desista. Não estou dizendo que acho aceitável que cortem cabeças de outros detentos, mas estou dizendo que é compreensível que alguém preso num milênio passado por conta da sua situação aja como um ser humano da idade média. Fazer o show de horror para o adversário é um instinto de quase todo ser vivo. Estufar o peito, parecer maior… só que nos ser humano criou-se o hábito também de mostrar o que acontece com seus inimigos mostrando seus corpos em demonstrações elaboradas. Tudo com a mesma lógica: fazer o inimigo desistir antes de começar a briga. Porque com raras exceções, a maioria dos animais não quer brigar. Seres que entram de peito aberto em qualquer batalha não passam seus genes para frente.

Eles são bonzinhos então? Não, eles estão cortando cabeças, oras! São pessoas que perderam o momento histórico da humanidade e estão presas num passado brutalizado, mas, jamais se esqueçam que são pessoas. Que pensam e se organizam, que podem evoluir rapidamente se necessário, que podem se adaptar a quase qualquer realidade que forem apresentados. O ser mais perigoso do mundo é um grupo suficientemente grande de pessoas. Já fizemos a merda de ver esse povo todo saindo do Brasil e deixamos acontecer, vamos repetir o mesmo erro vendo eles saírem do nosso século? Não é questão de direitos humanos, é questão de sobrevivência e adaptação. Daqui a pouco o país deles pode tomar o nosso.

Para dizer que não esperava essa análise, para dizer que agora ficou interessado nessa análise de guerras, ou mesmo para dizer que a solução é matar todo mundo (até quem está fora da cadeia): somir@desfavor.com


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