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Ekzak

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| Somir | | 1 comentário em Ekzak

Em nossa defesa, só podemos ver o passado quando olhamos para as estrelas. Por isso, quero que vocês entendam onde estávamos quando tudo isso começou. O ser humanos também olhava para os céus, buscava por sinais de companhia na vasta escuridão. Desenvolvemos tecnologias baseadas naquilo que chegava até a nós, a luz distante de outras eras. E quando encontramos Ekzak, que chamamos de Nova Terra, tínhamos nada além de sonhos e esperanças. Incrível compatibilidade, possibilidade de vida primitiva, posição confortável diante de sua estrela… mas não passava de um longínquo sonho.

Tudo o que eu sei é o que me foi deixado. Nosso berço foi estável pelo tempo necessário para conhecermos um pouco mais sobre o Universo, mas não o suficiente para termos feito algo de diferente. Um planeta gigantesco passou despercebido na nossa mais próxima vizinhança, isso é, até que sua presença começou a enviar detritos em rota de colisão com nossa terra natal. Vivemos uma era de medo, enfrentada com engenhosidade. Alguns asteróides conseguimos desviar, outros tivemos que vaporizar quando já estavam perto demais. A situação tornou-se insustentável com o bombardeio constante. Nossa existência estava em jogo.

Foi quando tomamos a difícil decisão de ter um plano reserva para a própria manutenção da vida humana. Os que ficaram colocaram todos seus recursos em uma chance para nós. Uma gigantesca nave que demoraria muitas e muitas gerações para alcançar a Nova Terra. Confiamos que nossas máquinas seriam capazes de nos recriar num futuro distante. A escala de tempo da viagem e a distância incomensuráveis para uma mente como a nossa. Evidente que colocamos algumas medidas de proteção nos nossos equipamentos, mas elas eram uma minúscula fração do quadro geral. De forma alguma a viagem tinha pretensões de conquista armada.

Eram apenas… precauções. Sistemas de defesa do que provavelmente seria o último vestígio da nossa civilização no universo. Aprendemos a não confiar no acaso quando era a nossa sobrevivência em jogo. Nossos sistemas estavam programados para reconhecer formas de vida primitivas na destinação e ensiná-las da forma mais eficiente possível a não interferir no processo de implantação da nossa própria biosfera. Temíamos que os primeiros humanos recriados na Nova Terra não tivessem capacidade de defesa contra predadores, por isso programamos os defensores. Apenas para garantir a viabilidade do processo, jamais com outros objetivos.

Como está claro agora, a viagem foi um sucesso. Longa e sem grandes incidentes. Até onde sabemos, já chegamos aqui muito depois do último suspiro de nossos antepassados no local original. Quando avistamos a Nova Terra, quando coletamos os dados que nos deram segurança que o local seria habitável, não havia sinal algum de civilização. Apenas vida vegetal e traços de animal. Do nosso ponto de vista, o local não estava colonizado ainda. Sim, sempre tivemos a preocupação ética de não interferir, mas era questão de sobrevivência. Estávamos programados para causar o menor impacto possível e conviver em harmonia com quaisquer formas de vida que encontrássemos.

Mas, passou-se muito tempo mesmo entre o começo e o final da nossa jornada. O suficiente para chegarmos num planeta chamado Ekzak. Não vou mentir que ninguém considerou a possibilidade de uma vida inteligente estabelecer-se no planeta destino durante a viagem, mas a nossa experiência com a vida na Terra nos dizia que mesmo essa enorme escala de tempo não seria suficiente para tanto. Na dúvida, colocamos sistemas de… apresentação da raça humana, caso houvesse alguém ali para decifrar aquilo.

Quando a nave pousou, começou a coletar dados, registrando a reação local à nossa presença. Os ekzakes não agiram de forma uniforme… alguns foram expostos aos nossos sistemas de apresentação, o que entendemos que para uma civilização pouco avançada tecnologicamente como a deles possa ter soado excessivamente divino; e outros, infelizmente, temeram a nossa visita, enfrentando os sistemas de defesa, o que os deixou numa desvantagem militar irreconciliável. A nave tinha que nos proteger, fora programada assim.

Antes do primeiro de nós ter alguma consciência do mundo que nos cercava, a sociedade dos nativos já estava completamente moldada à nossa presença. Aqueles que foram impactados pela nossa… máquina de propaganda… começaram a nos ver como divindades. Montaram suas civilizações ao redor da área isolada para o nosso desenvolvimento. A inteligência artificial responsável por nos recriar no novo solo montou um perímetro, o qual protegeu ferozmente por gerações e gerações do povo local, enquanto criava o ambiente ideal para gerar os primeiros de nós.

Nesse processo, gerou fontes de água potável, energia e todo um ecossistema de plantas e animais para sustentar nossa futura existência. Percebam que do ponto de vista dos ekzakes, a nave estava criando um oásis de fartura num planeta que como descobrimos depois, nunca foi muito hospitaleiro com a população local. Segundo dados que conseguimos analisando os arquivos históricos da nave, a população dos nativos já havia multiplicado-se por mil quando o primeiro bebê humano foi gerado.

Da forma como eles viram, nós trouxemos uma vida melhor para todos, em troca de alguns mal entendidos no começo da relação. Todo o sistema de crenças dos locais acabou integrado à nossa presença. Muito por causa dos telões e alto-falantes espalhados pelo local demonstrando nossa cultura, que seriam usados para nos explicar de onde viemos, mas que também os impactaram de fora da área de contenção. Os ekzakes, apesar de fisicamente diferente de nós, tomaram aquilo como um exemplo a ser seguido.

Quando a primeira leva de humanos gerados pelas máquinas deixou a infância, começaram os primeiros contatos. Inicialmente sob muita suspeita das sentinelas robóticas que deveriam nos proteger, mas com a devoção e a reverência que os ekzakes demonstraram com os estelares, como nos chamavam, logo o sistema aprendeu que poderia explorar essa possibilidade. Entendam: ninguém programou a inteligência artificial para fazer exatamente o que fez, mas ela foi criada para adaptar-se e sempre fazer o máximo possível para aumentar nossa população no limite do possível com os recursos disponíveis no novo planeta.

Como culpar meus antepassados? Com apenas robôs como guardiões de sua cultura nativa, e um número imenso de servos agradecidos aos seus pés, fizeram o que acreditavam ser melhor: lideraram, inspiraram, controlaram. As gerações humanas iam se renovando, e a simbiose com o povo local foi excelente por muito tempo. Os nossos conhecimentos tecnológicos foram divididos com os ekzakes, a qualidade de vida deles aumentando exponencialmente. Eles nos amavam.

E não duvidem, amavamos eles de volta. Víamos os ekzakes – com suas peles escamosas, frágeis compleições e longas antenas – como um misto de animal de estimação e espécie ameaçada. Muitos de nós começaram a deixar a área de proteção e viver entre eles. Claro, não era uma relação igualitária, até mesmo porque um humano é de três a quatro vezes mais forte fisicamente que um ekzake, e convenhamos, intelectualmente eles ainda não evoluíram o suficiente para desafiar um cérebro humano. Mesmo os seus mais fortes e mais brilhantes ainda eram pálidos em comparação com um de nós. A humanidade estava se reconstruindo, mas gostava muito da ideia de nutrir e guiar a civilização primitiva que já estava lá quando chegaram.

Ao redor da área de contenção, até pelos recursos disponibilizados pela nave nas gerações anteriores, concentrou-se a imensa maioria da população ekzake, suas cidades, seus momumentos a nós… éramos o centro do universo deles. E quando começamos a interagir, oferencendo ainda mais abundância, segurança e até mesmo conselhos de como gerir sua sociedade, começou a ficar claro como eles mesmos queriam que nossa relação fosse: de desigualdade. Nunca precisamos pedir para que eles fizessem todos os trabalhos difíceis para nós, jamais sentimos o limite da capacidade de produção da nave e de seus robôs, porque os locais assumiram todas as funções. Nossa população aumentava, assim como o desenvolvimento do local.

Mais áreas com água disponível, mais solo trabalhável, mais e mais dos gordos e eficientes animais para alimentação, todos cuidados por incansáveis ekzakes. Em cada nova casa de humanos, era costume ter uma família de locais para atender todas suas necessidades. E como nós fomos criados com essa ideia de subserviência, não nos incomodou a tradição. Curioso que os cães, cujo DNA foi trazido junto conosco para companhia futura, nunca tornaram-se populares. A maioria acabou se tornando selvagem com o tempo. Tínhamos nos ekzakes algo muito melhor.

E sim, sabemos de todos os abusos e exageros que humanos cometeram com os locais nessas últimas gerações. Algumas pessoas são ruins mesmo. E infelizmente os ekzakes incentivam o comportamento punindo entre eles aqueles que sofrem com humanos e criticam seus mestres. Tentamos explicar isso para eles, mas… não tem ainda a capacidade de entender que não somos deuses perfeitos. Ou pelo menos não querem ver isso. Os poucos que se rebelaram foram atendidos por nós com um santuário para ekzakes livres longe da civilização que temos, mas não pudemos controlar quando os próprios locais resolveram massacrar esses dissidentes de sua religião, vulgo… nós.

Entendemos a preocupação da sua civilização com o que acontece aqui em Ekzar, mas estamos de mãos atadas. Estamos tentando desfazer essa devoção da população nativa para com nós, humanos, mas é um processo muito lento. Estamos dispostos a receber a visita de seus embaixadores e receber ajuda para acabar com toda essa desigualdade e proteger os ekzakes dos abusos que infelizmente ainda ocorrem, peço para que vocês entendam que temos um longo caminho pela frente, mas que já estamos tomando as atitudes para resolver o problema.

Estamos abertos para quaisquer esclarecimentos futuros, e garantimos que vamos receber sua federação de braços abertos, humanos e ekzakes em conjunto, com as melhores intenções.

Obrigado pela oportunidade de esclarecer a situação,
Roberto Zlnik Moravil, chanceler de Ekzak

Para dizer que está percebendo o golpe, para dizer que achou bem razoável, ou mesmo para pedir a liberdade dos ekzakes: somir@desfavor.com


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