
O vento.
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Para onde quer que virasse a cabeça, mais e mais pessoas naquele estado. Grunhidos ininteligíveis, lamentos, choros e berros formando uma sinfonia de desespero ao seu redor. O que mais o desesperava, contanto, eram os breves momentos de silêncio absoluto entre as vozes. Nada para incomodar os olhos, finalmente. Nada além da luz. Não se lembrava dela ser tão poderosa. O ar teimando em não preencher os pulmões lançava fagulhas na visão e pontadas de dor pelo corpo, agora inerte.
A vontade era de dormir, apesar de tudo. Sem muita resistência, fecha os olhos, exausto de lutar. A consciência transforma-se em memória, uma sensação parecida vinda do passado, de quando seu corpo era tão frágil quanto agora. É sua primeira memória do vento. O manto escorrendo de suas costas nuas, ainda no colo da mãe. A sensação de acolhimento que vinha de todos os lados virando um incômodo terrível, a pele sendo castigada pelo ar em fúria, como se agulhado constantemente pelos grãos de areia carregados pelo vento. Lembra-se de chorar em desespero, e da mãe, expressão impassível, não oferecendo conforto algum.
Fora sua primeira experiência com o mundo, o verdadeiro mundo. Alguns minutos depois, a pele macia cheia de marcas que ardiam feito fogo. A dor e o desamparo consumindo até que sua mãe devolve o manto, protegendo novamente suas costas. Ela abraça-o com força, desmoronando a feição distante por um breve momento, como se pedisse desculpas com o olhar. São muitos e muitos anos de exposição controlada ao vento para uma criança, e não há uma que não reaja com berros desesperados. Fato da vida, responsabilidade dos pais. Necessidade.
Lembra-se também de quando o mundo mudou de sentido. Com a cabeça por sobre os ombros dos pais, via toda a tribo olhando em sua direção. Alguns protegiam os olhos com os braços, outros usavam mantos. Os que usavam os braços pareciam mais atentos ao que estava ao seu redor, via as bestas sendo atacadas e derrubadas por eles, com lanças que aceleravam cada vez mais antes de perfurar a pele. Quando uma delas caía, todos se reuniam no mesmo sentido. Com as costas para o vento. Era o momento em que via seus pais mais felizes, na fome saciada e no calor do fogo que só era possível se alguém o protegesse com o próprio corpo.
Dormiam todos de bruços depois. Rosto protegido pelo seu manto, nariz tocando o solo. Os ouvidos não funcionavam bem, nem pra ele, nem pra ninguém. O uivo e o estrondo da ventania interminável combinavam entre si para evitar que mais do que algumas palavras pudessem ser trocadas entre as pessoas. As melhores oportunidades de comunicação estavam rabiscadas nos troncos das enormes árvores, desistentes que inclinavam-se ao contrário das pessoas. Ninguém precisou dizer-lhe que lá, os animais atacavam o vento pelo equilíbrio, mas as plantas podiam ceder por ter raízes. Os poucos frutos que encontravam estavam todos próximos do chão, as copas quase que caídas no solo.
Nada que não fosse pesado o suficiente poderia viver por lá. As plantas, com seus frutos e sementes gigantescas, atraíam bestas que pareciam muito mais adaptadas ao local que qualquer um de sua tribo. Algumas tinham cascas duríssimas, outras grossas camadas de gordura na pele, todas para evitar que os grãos de poeira e pequenas pedras em perpétuo movimento pelo ar pudessem causar-lhes os mesmos danos que causavam em todos que o acompanhava. Os adultos tinham peles ressecadas, calejadas dos pés à cabeça. O vento não lhes incomodava como aos pequenos, mas de tempos em tempos alguém perdia a visão ou era mortalmente perfurado por uma pedra mais pontiaguda arremessada em sua direção.
Foi assim que perdera a mãe. Poucos depois após sua primeira experiência de andar contra o vendo, forçado pelo pai por finalmente ter peso suficiente para se manter em pé. O que era mais fácil de pensar do que fazer. Sem nenhuma proteção, o vento chacoalhou sua própria existência. Os pés não tinham onde encontrar repouso, a posição aprendida por imitação não se mantinha. O vento lhe clamava, assim como o fez com diversos outros jovens que vira tentarem a mesma coisa, vez após vez. Lembra-se de gritar por socorro, sem sucesso. Após desabar no chão, havia atrito suficiente para manter-se estável, mas isso era pouco para seu pai, que mantinha a pressão para ele se levantar e encarar o vento, como todos haviam feito antes dele.
Contra todo o conhecimento que recebera, lembra-se de olhar para o horizonte, plano e infinito. Nada além de grandes árvores pontuando a paisagem. A mãe, também contra todo o conhecimento que recebera, entra na frente do filho, protegendo-o do vento por algum tempo, na esperança de que se levantasse com mais facilidade. Ele olhou para ela uma última vez, olhar choroso como se pedisse perdão pela fraqueza. Ela apenas sorriu, algo tão raro. Inclinando-se para ajuda-lo, ajoelha na sua frente e logo acusa um golpe. Ele se lembra claramente de vários outros da tribo correndo o quanto podiam para acudi-la. Muitos gritaram para avisá-la da pedra que vinha rolando e ganhando velocidade, mas os uivos e urros do ar não permitiram.
Perdeu-a quando ainda nem era capaz de andar sozinho contra o vento. Ela foi enterrada debaixo da sombra de uma das árvores, um símbolo único talhado no tronco, e pouco tempo para desperdiçar com sentimentalismos. A vida continuou, finalmente aprendeu a enfrentar as correntes e manter-se em constante movimento com o grupo. O pai tornou-se ainda mais distante, morrendo poucos anos depois num ataque de uma das bestas. Foi colocado ao lado da mulher, e mais uma marca foi deixada no tronco.
Seguiu sua vida como se não houvesse outra escolha. No abrigo da tribo, sendo colocado cada vez mais para trás nas linhas formadas para a noite. Cada vez mais próximo de ser a primeira barreira para o vento. No dia em que finalmente recebeu essa honra, foi considerado homem. Sua recompensa veio a seguir, uma bela jovem cuja pele era bem mais lisa e intocada pelas intempéries do que a maioria. Fazia questão de sempre andar na sua frente para mantê-la assim. Ela retribuía o afeto nas noites que podia ficar protegido nas fileiras mais internas.
Desse afeto teve frutos. Lembra-se também de como ficou sabendo, com ela chamando sua atenção para um símbolo de vida que talhara no tronco da mesma árvore cuja sombra seus pais foram enterrados. Agora ele era um caçador, e um dos bons, mestre na arte de usar o vento para acelerar a lança o suficiente para furar as carapaças e grossas peles das bestas. Fez questão de trazer muita carne para sua mulher, cuja barriga protuberava mais e mais dos mantos que a protegiam. Queria um filho forte, que encarasse o vento sem medo, que tivesse peso e coragem para jamais arriscar aqueles que o amavam, como fizera.
Lembra-se de tudo isso para se perdoar. Para justificar seus atos. O vento consumia a beleza de sua companheira a cada dia, ameaçava seu descendente, clamava vidas e não permitia descanso. Então, ele fez o que acreditou ser melhor, para todos. Na mesma árvore onde estavam talhados seus momentos mais felizes e mais tristes, deixou riscado um pedido. Não sabia para quem, mas sabia que era o que queria. Se sua voz pudesse ser ouvida, que dissesse para o vento acabar.
Então, alguns dias depois, inclinando-se em busca de equilíbrio contra o sopro interminável, protegendo mulher e filho do pior dele enquanto procurava no horizonte a caça do dia, sente algo pela primeira vez: o nada. O vento parara. De uma só vez. O calor do sol escaldante pode ser sentido imediatamente. O silêncio é assustador. Mas não há tempo de prestar atenção em nada disso, não o suficiente. As pernas bambeiam, o equilíbrio se esvai e ele cai.
O som de inúmeros outros corpos chocando-se contra o solo se segue. A voz da mulher, antes apenas um sibilo no meio da ventania, agora vem em alto e bom tom, desespero gutural e imediato, imitado por inúmeros outros desabados ao redor. Ele não conseguia sequer se levantar, não sabia como fazê-lo sem o vento. Todos seus movimentos pareciam excessivos, violentos.
Desmaiou ao lado da mulher, depois de se arrastar até ela. Os dois se olharam uma última vez antes do calor tornar-se forte demais e o corpo dela sucumbir. Cada vez menos vozes ao redor. Silêncio. Foi o último a desistir.
Ninguém nunca mais se levantou dali.
Para dizer que gosta de história positiva, para dizer que acha que tem algum significado, ou mesmo para dizer que as drogas fazem mal: somir@desfavor.com
Muito bom! Faz o leitor imergir a cada instante.
Me fez lembrar Beckett.
Somir, este foi (ao menos pra mim) um de seus melhores contos. Daria, aliás, um excelente curta!
Obrigado! Eu vejo uma história dessas funcionando com animação. Agora só preciso de duzentos coreanos…
Concordo (!), “mais que” excelente !