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O guru.

O guru.

| Somir | | 1 comentário em O guru.

Humberto sentia a testa molhada de suor, o fôlego curto e a panturrilha ardendo; uma vida de trabalho e diversões sedentárias recusava-se a entrar em acordo com sua nova obsessão: conhecer o tal do homem que largara tudo para morar no meio do nada, quilômetros após o último vestígio de civilização. O caminho que trilhava pelo meio de mata nativa pelas últimas horas podia muito bem estar só em sua imaginação… não havia sinais muito concretos de presença humana no local.

Seguia, no entanto, as direções vagas dadas pelos últimos populares com os quais tivera contato na acanhada vila que precedia a entrada da mata. Um fio d’água insistia em desbravar o terreno acidentado, e servia-lhe de companhia e reforço de que estava rumando ao local correto: uma nascente rodeada por árvores da qual podia-se avistar o monte no qual o elusivo recluso sem nome havia feito sua moradia. A jornada íngreme já seguia através de quase todo curso do Sol, restando ainda pouco tempo de luz natural disponível.

Morro acima, apenas os sons da natureza disputavam com seus pensamentos, Humberto começava a entender melhor o que aquele homem havia visto ali. O contraste com a cacofonia urbana da qual viera não podia ser mais evidente. E apesar da ritmo acelerado da respiração, o ar que enchia seus pulmões ansiosos não podia ser mais agradável. Havia tempo até para pensar no que realmente queria naquela busca por um completo estranho do qual ouvira falar através de uma amiga de uma colega de trabalho cuja família vivia na região. Tão aleatório que não podia ser aleatório.

Humberto nunca se sentira parte do mundo ao qual foi imposto desde pequeno. A confusão, a pressão, prazos e metas… parecia tudo desperdício de tempo. Seu trabalho, enfurnado numa baia diante de um computador, sua vida pessoal, repleta de pessoas que pareciam estar lá só de corpo presente… aguentou o quanto pode. Com as férias acumuladas para gastar e nenhuma responsabilidade para manter, seguiu o coração, pela primeira vez.

Segundo o relato que ouviu, o homem que procurava viera para a área mais de uma década atrás, largando mulher e emprego de alto prestígio numa grande capital. Vendeu tudo o que tinha e doou a maior parte para a caridade. Estaria morando numa cabana construída pelas próprias mãos numa área perdida entre fronteiras de fazendeiros e reservas florestais, tão remota que ninguém realmente se preocupava com sua estadia. Segundo os locais da vila mais próxima, aparecia uma vez por mês na venda, comprava seus mantimentos sem trocar mais do que duas palavras com o dono do estabelecimento… e sumia novamente por entre as trilhas que só ele deveria conhecer.

Pela descrição dos locais, um homem tranquilo que pouco envelhecera até ali. Semblante pacífico e costas fortes para carregar as pesadas sacas de alimentos que levava de volta para seu refúgio, muito distante dali. Humberto fantasiava com um estilo de vida mais simples quando começou a notar a aproximação da noite, os raios alaranjados fugindo em direção ao horizonte. Mas mesmo com a iluminação deficiente, uma lanterna e o som da água corrente garantiam-lhe a segurança do rumo correto. Assim que desacelerou o passo para decidir se montava a barraca que carregava nas costas, o raio da lanterna passou pelo cenário que esperava encontrar: a nascente, rodeada por grandes árvores.

Poucos passos à frente, os troncos das árvores espaçavam-se o suficiente para revelar um monte nem tão distante. A geografia local banhada pela luz de uma Lua muito mais brilhante do que estava acostumado ainda sim dava destaque óbvio para um ponto de luz vindo do alto da elevação, balançado ao sabor do vento. Uma fogueira que iluminava as paredes de uma cabana de madeira. Com o objetivo tão próximo, Humberto decidiu-se por continuar sua caminhada.

Era como se a mata respeitasse alguma linha invisível, não se passavam mais do que alguns metros para a linha das árvores ficar evidente, e dar lugar para uma grama alta que se estendia até onde os olhos podiam alcançar. Depois de subir mais alguns metros, finalmente começava a ver que havia alguém próximo do fogo: um homem sentado, vestindo uma bermuda carcomida e mais nada. Em suas mãos, um graveto apontava para o fogo como se assasse algo. Humberto, por consideração, apontou a lanterna na direção do homem, revelando sua aproximação.

Mas não houve reação. Humberto gritou então uma saudação, recebida com um leve movimento de cabeça. O homem volta-se para a fogueira novamente, sem esboçar mais nenhum movimento. Humberto se aproxima, até finalmente ter uma boa visão de quem era o eremita. Meia-idade, cabelos e barba mal cuidados, sem muita carne por sobre os ossos. Humberto saúda. É respondido com uma aceno de cabeça e um gesto sugerindo que ele se sentasse ao redor da fogueira também. O que é prontamente atendido.

O homem está assando um pedaço de carne, provavelmente oriundo da carcaça que jaz próxima do fogo. Ele aponta o graveto para Humberto, que recusa educadamente. Não há insistência.

“Espero que você não se incomode de eu ter vindo até aqui.” – diz Humberto.

“Não.” – responde o homem.

“Eu me chamo Humberto.”

“Jorge.”

“Prazer, Jorge…” – Humberto estica a mão. Jorge, com o que parece ser muito esforço, cumprimenta.

O silêncio impera por mais vários minutos. Jorge mastigando com muita calma os nacos de carne que assa.

“Por… por que você veio morar aqui?” – Humberto finalmente vence a resistência de se intrometer.

“Eu cansei.” – Jorge diz mantendo contato visual.

“Eu te entendo… às vezes a vida é demais pra aguentar…”

“A vida não era o problema.”

“Não?” – Humberto demonstra confusão no semblante.

“Não. Eu podia ter continuado ali.”

“Então por que você largou tudo?”

“Porque eu podia. Porque era meu para largar.”

“Não estou entendendo…”

“Você não é o primeiro que vem me procurar. Sempre aparece um como você… esperando respostas.” – Jorge solta o ar, sorrindo.

“Eu quero saber o que te fez vir pra cá… e se adiantou.”

“E você passou um dia andando pelo mato para saber isso?” – Jorge se volta para Humberto.

“Sim, eu não aguento mais a minha vida… eu queria fugir…”

“O problema da vida é que ela nos segue enquanto estivermos vivos. Você quer saber se sumir do mundo e viver sozinho vai te ajudar?”

“É…”

“Não vai. Eu só estou aqui há tanto tempo porque não estou fugindo.”

“Então por que você vive desse jeito?”

“Porque eu quero. Foi a minha escolha. E não tem resposta nenhuma aqui… nem pra mim e nem pra você.”

“Eu… eu não esperava por isso.”

“Esse é o problema. Porque alguém morar no meio do mato por quinze anos sem contato com ninguém ser uma escolha deveria ser a primeira coisa que você deveria esperar.”

“…”

“Eu menti. Tem uma resposta sim…”

“Qual?”

“Eu não sou você.”

Jorge se levanta e entra na cabana.

Humberto, depois de muito pensar, armou sua barraca ali, dormiu e foi embora com os primeiros raios de sol.

Para dizer que isso foi muito conceitual para o seu gosto, para dizer que acha que eu mudei de ideia no meio do texto, ou mesmo para dizer que vai procurar algo secreto na história: somir@desfavor.com


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