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Cristina F.

Cristina F.

| Somir | | 43 comentários em Cristina F.

Cristina era feia. Feia mesmo, daquele tipo que nem a generosidade do álcool conseguia contornar. A cabeça era grande demais para o corpo esquálido, não conseguia sequer preencher o que seria o primeiro sutiã da maioria das mulheres; o sorriso comprometido por diversos dentes tortos, as bochechas devassadas pela acne excessiva na adolescência, os lábios finos que pareciam só evidenciar o nariz que sempre lhe fez receber o apelido de bruxa… Cristina era boa pessoa, esforçada, mas não era o que nenhum homem conseguiria chamar de atraente. Vivera toda sua vida lutando para se manter minimamente bem cuidada, mas faltava-lhe até o dinheiro necessário para dar um jeito na aparência de forma mais definitiva.

Mesmo os desesperados, aqueles que frequentemente encaram qualquer coisa em troca da promessa de sexo, só passavam por seus braços em casos de apostas perdidas. Das primeiras vezes que ficou sabendo as reais intenções de seus raros sucessos com o sexo oposto, ficara devastada. Mas o tempo lhe mostrou que cada um joga com as armas que tem. Cristina desenvolvera um talento pronunciado para descobrir o tipo de situação onde essas apostas cruéis aconteciam. Baladas, eventos, carnaval de rua… ela havia notado até mesmo quais expressões faciais e dinâmicas de grupo que sugeriam que homens estavam apostando para ver quem teria que ficar com a mulher mais feia do local. Fazia mais, até: sabia que só a sua presença já poderia desencadear esse tipo de comportamento em homens.

E de posse dessa habilidade, Cristina buscava suas oportunidades fazendo-se visível para algum desses grupos. Pegava uma bebida, mantinha-se afastada das amigas que sempre a acompanhavam – sabe-se lá se por amizade ou pelo efeito embelezador de ter uma amiga feia por perto – mostrando-se vulnerável a qualquer investida masculina. Sabia também que tinha todo o tempo do mundo: raríssimas eram as vezes que alguém bêbado demais vinha por conta própria para uma tentativa de flerte, ainda mais quando ela se prostrava em áreas suficientemente iluminadas.

E numa noite dessas, um sábado numa boate recém-inaugurada na região, ela nota uma excelente oportunidade. Um grupo de homens em sua maioria atraentes conversa animadamente, copos praticamente vazios em mãos, risadas soltas. Ela segue seu protocolo e se apoio numa pilastra, bem debaixo de um canhão de luz que evidencia toda sua feiúra. Inimiga mortal da luz, sabe que cada raio batido em sua face destaca ainda mais seus pontos negativos. E parece funcionar, primeiro um deles nota. Ela não corresponde o olhar, fingindo-se alheia aos acontecimentos. Com o canto do olho, percebe que aquele homem divide a notícia com seus colegas, e um a um, todos acabam se voltando para ela, olhando rapidamente e voltando-se para o grupo para uma sessão de gargalhadas.

Questão de tempo. E sorte grande! O mais bonito deles, um moreno alto e atlético, cabelo imaculadamente desarrumado, barba rala, camisa aberta destacando a musculatura avantajada, aproxima-se de forma nem um pouco discreta, dançando ao som da música ambiente enquanto tenta manter o resto da bebida ainda no copo. Ele chega confiante, olhar penetrante. Sem dizer uma palavra, coloca uma das mãos em sua cintura, num convite pra lá de físico para ser acompanhado em sua dança. Cristina conhece esse jogo, e sabe que tem que tirar o máximo da oportunidade. Simula uma resistência inicial, esperando que o belo rapaz aumente a aposta. Abastecido pelo ego prestes a ser ferido, ele a puxa diante de seu rosto, tentando fazer uma expressão sedutora. Cristina então vai para o abate: como uma fera esfomeada, agarra o homem e tasca-lhe um beijo apaixonado.

Cada um joga com as armas que tem. Se plásticas eram caras demais para ela, conhecimento vinha de graça: sabia mil formas diferentes de atiçar a libido masculina, e graças à sua estratégia de caça, tinha experiência o suficiente para colocá-las em prática. O beijo tinha uma técnica perfeita, adaptada em frações de segundo de acordo com as reações de seu parceiro. Cristina moldava-se instantaneamente para o que quer que sentisse ser benéfico para seu objetivo final: falar diretamente com os instintos dos homens. Ousada, tímida, dominadora, passiva… ela vestia qualquer fantasia que lhe conviesse.

Sentiu a reação positiva a uma postura mais agressiva, e não se fez de rogada: com uma mão segurava a camisa dele, com a outra, tomava controle de sua virilha. Não deu sequer tempo dele respirar, sabia que quebrar o contato do beijo o faria enxergar a realidade novamente. Cristina confiou nas sensações que poderia proporcionar. E foram vários e vários minutos dessas sensações. As mãos dele procuravam por elementos que simplesmente não estavam lá, mas ela sabia jogar com sua postura para evitar que isso ficasse claro demais.

Mais uma parte do plano estava completa: o rapaz tinha apostado alto demais. Seus amigos já tinham visto ele passar muito tempo agarrado com ela. Ele havia virado a piada. Via de regra a alternativa menos vergonhosa para um homem desses era continuar até o final, sumir de lá com ela e torcer para que tudo fosse esquecido. Ou mesmo usar a verdade como rede de segurança: um talento na cama costuma ser desculpa válida para ambos os sexos. Cristina mesmo sugere que ambos saiam de lá para um lugar mais tranquilo. Ele olha ao seu redor, pensa por alguns segundos, e como esperado, aceita a proposta.

Ela sugere que ambos sigam para seu acanhado apartamento, confiante que isso diminua o risco para ele de ser visto em público com ela, até mesmo um motel seria arriscado, com seus espelhos por todos os lados. Sucesso, ele concorda. Agora, bastava contornar a dificuldade da carona: como ela morava bem mal, a viagem seria longa e haveria muito tempo para uma mudança de ideia da parte dele. Nada que manter a cabeça baixa pela maior parte do percurso não resolvesse. Claro, levantando de vez em quando para apontar as direções. O suficiente para que ele não pensasse em nada pela duração da viagem.

A moradia popular não impressionava por fora, mas Cristina sabia montar seu “ninho de amor” com maestria. O bar comprado a duras custas, sempre bem estocado, ao lado da cama. Não havia muitos móveis no caminho até a cama, para a qual ela rapidamente o conduz. A luz débil da lua que entrava pela janela transforma-se em breu com o fechamento das cortinas. As únicas palavras trocadas são cuidadosamente jogadas por ela para manter a excitação no grau mais elevado. O talento continua impressionante após as roupas acabarem arremessadas ao chão.

Cristina joga pra ganhar. Nenhuma inibição, habilidades que a maioria das mulheres desconhecem, uma generosidade ímpar com o prazer do parceiro… e até mesmo concessões perigosas para manter tudo o mais prazeroso e impulsivo para ele. A noite avança, selvagem, até que ele não tenha mais sequer a capacidade de levantar da cama. Missão cumprida, que viesse a manhã do domingo.

Ela vem e passa. Já era passada a hora do almoço quando ela finalmente abre os olhos. Ele continua lá, ainda mais bonito com a luz que invade pelas frestas da cortina. Cristina sorri, satisfeita. Desinibida, levanta, vai até a janela e permite que o sol adentre o ambiente. Ele demonstra incômodo por alguns segundos, e logo abre os olhos. Ela já está acostumada com a expressão de “pânico contido” a essa altura do campeonato. Eles sempre se assustam e tentam rapidamente disfarçar. Ela não se abala mais com isso, abre um largo sorriso e dá bom dia para ele.

Ele pergunta que horas são, ela responde sem olhar para o relógio. Ele, como previsto, diz que está muito tarde e que tem um compromisso. Ela concorda com um aceno de cabeça, inabalável. O homem se levanta, envergonhado, procurando por suas roupas. Veste-se rapidamente, tentando evitar contato visual. Ela não se importa, observando a paisagem pela janela, a luz do sol iluminando seu corpo nu. Assim que ele se aproxima para um protocolar beijo de despedida, ela olha fixamente em seus olhos e diz, com expressão serena:

“Quando você passar por aquela porta, só lembra disso… nunca mais na sua vida, não importa onde você vá, quem você conheça ou quanto você se esforce, você vai sequer chegar perto de sentir o que sentiu ontem. Ninguém mais faz o que eu faço. Ela pode ser linda, cara de modelo e corpo de dançarina… mas pode ter certeza que uma hora ou outra, você vai lembrar de mim quando estiver com ela. E ela nunca vai fazer o que eu faço. Nunca com a vontade que eu faço, nunca com o talento que eu tenho, nunca mais você vai se sentir assim com outra. Lembra de hoje, porque não fica melhor que isso.”

Ele para por um tempo, expressão confusa. Refaz-se depois de algum tempo e pergunta:

“A gente pode ser ver outro dia?”

Ela sorri:

“Não. Tchau.”

Ele fica estático por mais alguns segundos, mas segue em direção à porta. Ela o acompanha. Assim que ele está do lado de fora, tenta dizer mais alguma coisa, mas é isolado pelo fechar da porta. Logo se volta para a mesa no centro da sala, onde seu celular está apinhado de mensagens de homens que conheceu em semanas passadas. Pensa em dar uma chance para algum deles, mas resolve deixar para depois, ainda é divertido hoje como era no passado.

Para dizer que meus contos eróticos são broxantes, para dizer que eu acordei feminista hoje, ou mesmo para dizer que pegava a Cristina mas não apresentava pra família: somir@desfavor.com


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