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Só o que interessa.

Só o que interessa.

| Desfavor | | 25 comentários em Só o que interessa.

+“Muitos problemas de relacionamento surgem por causa das finanças. Isso pode ser evitado com o Meu Patrocínio”, argumenta Jennifer Lobo, 28 anos, CEO e fundadora de um polêmico site de relacionamentos que pretende unir “Sugar Daddies”, homens bem-sucedidos em busca de uma parceira, a “Sugar Babies”, mulheres atraentes que desejam alguém que as apoie financeiramente.

Unir homens e ricos e interesseiras às claras? Hipócrita não é, mas… tem sim o seu lado desfavor da semana.

SALLY

O tema quase não foi escolhido. Cheguei a pensar que estava sendo moralista ou preconceituosa. Mas quando meu coleguinha se chocou com a notícia, eu percebi que de fato é algo a se refletir.

Uma rede social chamada “Meu Patrocínio” se propõe, abertamente, a unir homens com dinheiro com mulheres interessadas nesse dinheiro. Isso mesmo que você acaba de ler. Os homens pagam para se cadastrar e sinalizam em um questionário o quanto estão dispostos a depositar na conta da mulher por mês, em três pacotes: o básico (até dois mil), o médio (entre seis e dez mil) até chegar ao maior de todos (acima de vinte mil).

A criadora, uma filha de brasileiros radicada nos EUA (sempre, sempre, sempre que tem vexame online tem brasileiro no meio, impressionante), não vê problema algum no tipo de serviço que promove: “eu ganho meu próprio dinheiro, mas quero ser mimada”, diz ela, incentivando a que mulheres com fonte de renda própria acessem a rede social para receber presentes e mimos dos homens cadastrados. Detalhe: para mulher o cadastro é gratuito.

Em tese a proposta é que homens paguem uma quantia mensal na forma de presentes ou dinheiro vivo em troca de atenção e encontros. Você pode pensar que é prostituição, mas eu não acho que seja, porque ao menos a prostituta se livra do cliente depois que faz sexo. Essas mulheres tem um compromisso de atenção, algo que envolve, além de tudo, a parte social. Talvez seja pior, bem pior do que prostituição. É prostituição em um grau bem mais profundo. Além do seu corpo, vendem sua alma, seu tempo livre, seu lazer, sua mente.

Em uma visão superficial (a que eu tive assim que vi a notícia), pode parecer preconceito se chocar com ela: é tudo às claras, não há golpe, todos os envolvidos estão ali de comum acordo. Então… porque se incomodar?

Tem legitimidade para causar incômodo sim, não como doença, mas como sintoma. Não pelo moralismo, cada um faz o que quer. Mas pela institucionalização da relação monetizada. Por existir um público tão grande disposto a transformar relacionamento em negócios. São pessoas, tanto quem paga como quem recebe, que desistiram dos relacionamentos por afeto ou amor na sua vida. Pessoas que entregaram os pontos e decidiram fazer de relacionamento um comércio, um bem. Tem muita gente fazendo isso no mundo, tanta, mas tanta, que me leva a pensar que esse será o padrão dentro de algumas décadas.

Lembrarão dos relacionamentos por afinidade, por amor, como algo risível, tolo, romântico. Convencerão a si mesmos (essa gente é expert em se enganar) que no fundo, no fundo, todos os relacionamentos sempre foram por interesse mesmo, só que velado. Essas novas modalidades bizarras substituirão os relacionamentos como hoje os concebemos. Namoricos virtuais sem contato físico, interações sociais pagas, todo tipo de bizarrice.

Não quero recriminar as atitudes individuais de cada um naquela rede social (apesar de internamente, recriminar – e muito, acho degradante para a mulher e para o homem). Quero falar disso enquanto sintoma de algo muito estranho que está acontecendo com os relacionamentos: eles estão sendo substituídos por alternativas mais fáceis, como compra (ou seria aluguel?) de pessoas, relacionamentos virtuais e tantas outras modalidades estranhas que no final das contas, são tudo menos relacionamentos.

O que eu não entendo, e dificilmente alguém consiga me explicar, é por qual motivo essas pessoas desnaturam um relacionamento até que ele deixe de sê-lo. Qual é a dificuldade em assumir “eu não quero/não posso/não sou capaz de um relacionamento então vou viver sem isso”? Não. Distorcem as coisas até fazer parecer que tem um relacionamento tão válido como qualquer outro. Vivem uma relação teratológica emulando normalidade. Qual é o problema em assumir a realidade da vida?

Suponhamos que eu goste de comer merda. Na verdade, eu só gosto de comer merda, não como comida. Sofro de um caso crônico de coprofagia. Suponhamos ainda que eu não quero me tratar, eu gosto de comer merda e é assim que quero viver. A coisa decente a fazer é realizar as minhas refeições em casa e levar minha vida de forma normal. Caso eu queira me expor, eu como merda na rua e arco com as consequências disso. Mas não, essas pessoas vão a restaurantes, pedem para disfarçar a merda de mousse de chocolate e a comem na frente de todos, apesar do cheiro, repetindo “qual é o problema? é uma refeição como outra qualquer, é uma mousse de chocolate”.

Não, não é. Os tempos podem mudar (e de fato estão sempre mudando), mas hoje, um relacionamento implica em algumas premissas básicas que esse tipo de contrato não tem. Não estou cagando regras, estou falando de conceitos básicos: relacionamento virtual não é relacionamento, relacionamento pago não é relacionamento. Quer tê-los mesmo assim? Maravilhoso, tenha-os e seja feliz. Mas assuma, bata no peito e diga: esse é o modelo de interação com outro ser humano que me deixa confortável, eu sou um ponto fora da curva, eu não me encaixo em relacionamentos.

É como a outra notícia que também apareceu esta semana sobre o “HSH”, um grupo de homens que faz sexo com homens mas juram de pés juntos que não são gays, se dizem heteros com convicção. Novamente, sem querer ser caga-regras, mas é meio que uma premissa básica: se você sente atração sexual por outro homem, você é gay. Ou bi. Eles acreditam que quem pensa assim é preconceituoso. Eu acredito que eles estão em estado de devaneio. Tá rolando uma dificuldade séria em assumir as escolhas: dá o rabo para outro homem mas é hetero? Desculpa, mas não.

É como aquela pessoa desajustada, fora de si, sem noção, que acha que um relacionamento à distância é um relacionamento. NÃO É. Relacionamento pressupõe intimidade, convivência e muitas outras coisas que a distância inviabiliza. Não é real, é uma fantasia, algo pela metade, uma interação extremamente superficial para suprir as carências e fazer as pessoas acreditarem que um dia viveram um grande amor. Sabe o que parece? Os gays do século passado que casavam com uma mulher só para não assumir socialmente o que eram. São os novos Betas, que arrumam relacionamento virtual (porque não bancam um real) só para prestar contas para a sociedade que tem alguém. Ahhhh… Vão dar meia hora de cu! E aproveitem, porque nem gays serão considerados se fizerem isso!

Por gentileza, chega de maquiar a realidade para parecer socialmente conforme os padrões. Coisa mais ridícula essa rede social tentando fazer parecer que ali tem relacionamentos tão sinceros quanto os espontâneos, ou pior, que toda mulher, no fundo no fundo, custa um preço mensal. NÃO. NÃO PORRA. O que tem ali é uma nova categoria que vem se apresentando das mais diversas formas: interação monetizada. Não é e nunca será relacionamento e é muito doentio que quem participa disso não tenha essa consciência.

Mas as pessoas se enganam, elas tem prazer em se auto-enganar. E em tempos escrotos e opressivos, politicamente corretos, os que estão à sua volta aplaudem esse auto-enganar, pois esfregar a verdade na cara do outro é considerado quase que uma ofensa. Na sua frente, as pessoas dirão o que você quer ouvir (já pelas costas…). Nesse pacto perverso de passar a mão na cabeça do outro, estamos dando autorização social para as pessoas fazerem as coisas mais bizarras sem medo de ouvir a verdade.

Vamos parar de banalizar relacionamentos? Se você não convive, se você não tem intimidade, se você tem que pagar para a pessoa estar ali, mermão, acorda para a vida e cresce: não é um relacionamento. É uma fantasia, um negócio ou um sintoma grave, muito grave, do seu desajustamento social. Assume e vai ser feliz, ou, caso tenha esse desejo de se inserir na “normalidade social”, vai se tratar. O que não pode é pegar uma mula, colar um chifre na testa e sair por aí mostrando para todo mundo que lindo unicórnio que você tem.

Sério, o mundo está muito doido. Tá ficando sem graça isso.

Para achar graça da minha revolta, para utilizar este espaço seguro para sentar a pata e falar o que você realmente pensa sem medo de ser taxado de preconceituoso ou ainda para me ignorar e correr para se inscrever no Meu Patrocínio porque 20 mil por mês vale a pena: sally@desfavor.com

SOMIR

Minha primeira reação foi a de que pelo menos era algo honesto. O que dois adultos fazem em pleno consentimento sem atrapalhar a vida de terceiros realmente não nos diz respeito. Uma chance para interesseiras saírem dos armários! As pessoas que vivam suas vidas, certo? Nada contra isso exatamente, mas quando chegamos nesse grau de especialização na hora de formar relacionamentos humanos, é hora de parar e revisar se estamos indo num bom caminho.

A internet mudou a forma como as pessoas se relacionam. Pode ser tanto uma ferramenta de aproximação como de afastamento, dependendo muito de quem está usando. É ótimo que possamos conhecer pessoas que jamais conheceríamos em outros tempos: afinidades e interesses que transcendem fronteiras, fazendo-nos depender menos do acaso na hora de encontrar alguém com quem queremos ter algo e mais do que realmente somos e desejamos. Quem já sentiu a sensação de encontrar a agulha no palheiro de personalidades com ajuda da internet sabe muito bem disso. Tem gente rara demais nesse mundo para depender de pura coincidência local.

A internet colocou as pessoas numa vitrine, e podemos escolher muito mais. Isso é ótimo! Muda os paradigmas de relacionamentos humanos nos permitindo refinar a pesquisa para exatamente o que queremos! E nesse ínterim, explodem os sites de relacionamento, inclusive alguns bem específicos como o que ilustra a coluna de hoje quanto aquele embuste do Ashley Madison. É evidente que esse vai acabar também numa grande festa da salsicha com milhares de perfis masculinos idiotas disputando a atenção de bots ou profissionais da área, e gastando dinheiro por isso.

É o desespero por uma solução fácil que realmente alimenta todo esse mercado. Homens querendo relacionamentos pagos, mulheres querendo levar vantagem com uma racionalização furada que não estão realmente se prostituindo. Atalhos. O que importa é ter a vitrine de gente à disposição pela esperança de dar um tiro mais certeiro. A pessoa vai ter exatamente o que acha que quer, e com o menor esforço possível. Uma verdadeira droga para o ser humano (com trocadilho…).

Mas eventualmente bate-se num limite dessa “previsibilidade” das relações humanas. Elas deixam de acrescentar assim que você define padrões muito específicos do que está esperando. O que acontece demais são pessoas procurando por versões de si mesmas através de qualquer atalho disponível, como se esse fosse o objetivo final. O problema da vitrine é que ela te reflete… quem quer uma relação de ecos vai encontrar uma, mas essa é justamente a fórmula que não existe: a de que pessoa vai construir algo junto com você. Alta, baixa, bonita, feia, inteligente, bonita… não existe realmente uma solução. Quanto mais começamos a tratar as pessoas como produtos, com expectativas de atributos específicos para “valer a compra”, menos humanas são essas relações.

São relações comerciais. Custo e benefício superficiais como fiéis de uma balança que jamais foi afeita a equilíbrios. Hoje em dia se aceita ou rejeita um ser humano com um passar de dedos, o mercado parece saturado de produtos, mas vira e mexe as pessoas reclamam da falta de opções. Bom, as opções dependem de um considerável grau de investimento para dar frutos, isso a tecnologia não consegue mudar. Quem busca relacionamentos humanos significativos pesquisando uma vitrine vai acabar comprando o próprio reflexo, justamente para sentir que fez um bom negócio. De tão autoinvestidas, as pessoas tendem a buscar o que já sabem como funciona.

E essa aventura do descobrimento do outro fica sem graça. Se somos perfis, não somos inteiros. Se isso tudo não passa da busca pelo lucro momentâneo, não há motivo para investir. Mercantilizar não só o relacionamento como a procura por ele vai ter um custo, e essa conta chega na forma de afastamento cada vez maior. Já temos algoritmos escolhendo pessoas compatíveis, levando em conta só o que as pessoas querem dizer sobre elas mesmas para apresentá-las. Começa a ficar claro que isso vai desembocar numa situação onde relaciona-se com quem diz o que se quer ouvir ao invés de quem diz algo que acrescente. Já é o caso dos feeds das redes sociais, a próxima parada são os relacionamentos.

E outra, na hiperoferta de gente, mesmo que abstrata, fica fácil pular fora quando algo incomoda essa necessidade imediatista de espelhamento. Quem quer valorizar o próprio investimento na personalidade vai querer a segurança de quem pensa parecido para acreditar que não jogou fora a vida até ali. É o eco, novamente, o doce som do eco que nos reconforta em nossas escolhas e abafa quaisquer vozes dissonantes.

O mercado existe para vender mais. É preferível que os produtos tenham prazo de validade, que durem o mínimo possível para que a pessoa tenha que gastar de novo. A lógica vai se manter. É interessante para um mercado de relacionamentos que eles explodam depois de um tempo de uso e as pessoas tenham que voltar para a loja em busca de outro. Ainda mais se elas acreditarem que só deu errado porque a outra pessoa não era “compatível” o suficiente. Sempre vai ter o plano Plus com mais opções de filtragem na vitrine, é um modelo lucrativo.

Mercantilizar relacionamentos vai muito além de oferecer dinheiro em troca de sexo e companhia, é a própria noção do que é um relacionamento que vai ficando cada vez menos valiosa. O site em questão demonstra só uma faceta do problema, e talvez sua obviedade anuvie nosso julgamento sobre o quadro geral. É mais do que isso. Mas é isso.

Para dizer que achou muito moralista, para dizer que achou muito romântico, ou mesmo para dizer que com esse textão ninguém vai me escolher na vitrine: somir@desfavor.com


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