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Show do bilhão.

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| Somir | | 16 comentários em Show do bilhão.

Uma loteria americana chamada Powerball vai pagar um prêmio de um bilhão e meio de dólares se alguém tiver a sorte de acertar seus números. Quer dizer, quase um bilhão se alguém quiser tirar todo o prêmio de uma vez, uma peculiaridade da loteria em questão: pode-se receber em prestações vitalícias a quantia toda ou menos de uma só vez. Que seja, é muito dinheiro, dinheiro até demais. O que você faria com tudo isso?

Aqui, caso fôssemos a mídia tradicional, eu começaria a dar aqueles exemplos cretinos como comprar 20.000 carros populares, 5.000 casas, milhões de iPhones e essa palhaçada toda, mas aqui é desfavor! Muitas vezes a única coisa entre um maluco e seus sonhos é uma quantidade obscena de dinheiro. Por sorte ou azar essas boladas raramente caem na mão de gente demente como eu, que com um bilhão de dólares ganhados sem mérito, mudaria o mundo!

Não necessariamente para melhor… claro, no começo separa uma quantia de uns 20 milhões de dólares para garantir sustento vitalício para você e suas pessoas mais queridas, mas isso seria só um seguro. Porque para merdar tem que ter comprometimento e liberdade. Fodam-se Ferraris e Clicquots, temos uma teoria para provar: que somos uma sociedade de gostos e hábitos forçados por dinheiro. E sem aquela obrigação chata de lucrar no final do processo.

Várias empresas já fizeram, então sabemos que é possível: criar um hábito nos consumidores através de premissas furadas. Com alguns bilhões, você poderia não só abrir uma empresa produzindo praticamente qualquer produto de consumo de baixo custo, como também divulgá-la incessantemente por anos e anos. E deixemos a ética em casa, aqui é trabalho! Eu criaria uma empresa especializada em produzir “feromônios” em latas pressurizadas. Quase como um desodorante, mas fedido.

E sem miséria: chamaria designers de renome para produzir as embalagens, acharia os cientistas mais inescrupulosos para dar bases técnicas para a porcaria fedorenta que estaria empurrando no mercado, subornaria políticos para manter meu produto nas prateleiras, faria acordos estúpidos com distribuidores (pagando para eles o que eles ganhariam vendendo o produto mais um bônus), deixando eles arrancarem o couro da minha empresa para deixar o produto sempre nas melhores prateleiras… e acima de tudo, contrataria as melhores agências de publicidade e despejaria dinheiro em propaganda de todos os tipos.

Primeiro diz que aquele spray fedorento era o segredo para a atração do sexo oposto baseado em pesquisas sérias, depois, quando fosse obrigado a parar de falar essa bobagem, acharia um jeito de falar a mesma coisa com termos golpistas que passariam a milímetros de distância dos limites que foram impostos à minha empresa. Pagaria as multas, aceitaria os prejuízos com espaços já comprados na mídia, mas manteria a carga publicitária. Pagaria gente para ficar pentelhando nas redes sociais com depoimentos sobre a eficácia do produto, sem, é claro, deixar essa relação clara.

Você obviamente está se perguntando que seria só jogar dinheiro fora, você está certo pelo ângulo de que as pessoas não usariam um desodorante fedido (não seria incrivelmente repugnante e óbvio, seria algo meio dúbio como um levíssimo cheiro de mijo numa pastilha aromatizante, as pessoas achariam ruim, mas não tão ruim assim a ponto de ser insuportável) por motivos óbvios. Mas, o segredo desse plano está justamente aqui: produtos ruins sem adesão popular acabam saindo do mercado porque não são lucrativos. O que ninguém fez até agora foi teimar depois dessa fase.

Porque não faz sentido! Vejam bem, eu estou torrando dinheiro sem querer vê-lo de volta, eu posso manter a empresa funcionando por muitos anos, produzindo sem parar e garantindo muitos empregos. E seria hilário teimar com as agências mais renomadas por esse tempo todo, todas desesperadas para fazer essa desgraça vender alguma coisa. Mas, depois de um tempo, conhecendo o ser humano mercenário como é, a minha empresa poderia ficar subornando mais e mais pessoas a usar isso em público. Celebridades, inclusive. Teria umas mil pessoas MUITO atraentes com salários baseados em usar meu produto. E com algumas personalidades famosas insistindo em anunciar o produto, começamos a criar uma confusão na cabeça do público.

“Porque essa merda de empresa não fale? Essa porra só pode estar vendendo, para depois de dois anos continuar fazendo tanta propaganda e estar nas prateleiras de praticamente todo lugar que eu vou… eu não conheço ninguém que usa, então, quem está comprando?”

E aqui um segredo da campanha: sempre mencionar que é um segredo. O segredo da atração! Já não pode mais dizer na cara dura que cientistas garantem que funciona, mas tem um exército de desocupados nas redes sociais sendo pagos para empurrar os boatos, inclusive o de que o cheiro ruim só registra de verdade no nariz de quem usa. Aposto que em poucos minutos um dos meus pesquisadores picaretas surge com uma “prova” de que esse é o caso: pode todo mundo ao seu redor estar usando e você nem se tocar.

O que começa a plantar uma paranoia na cabeça do cidadão ou cidadã que acabou de se perguntar quem está comprando! Está fazendo propaganda, está sempre nas prateleiras com datas de produção recentes (eu mandaria destruir os antigos a cada troca nas prateleiras), então, as pessoas estão usando… quer dizer, as pessoas menos aquela incauta começando a cair na minha rede de mentiras.

Começaria a vender? Ainda não. Seria a fase da confusão. E é aí que entra meu segundo time de falsários: os compradores profissionais. Com umas mil pessoas espalhadas pelo país entrando e saindo dos mais diversos pontos de venda como supermercados e farmácias com a única missão de serem vistos comprando o meu produto. Agora nem precisa mais ser gente bonita e descolada, é até melhor que vejam nos carrinhos de pobres mortais. E agora sim: a pessoa vê que tem gente comprando essa desgraça!

Importante: eu aposto que venderia sim até mesmo antes de anos de propaganda incessante, tem gente que acredita em tudo. Só não seria o suficiente para manter a operação lucrativa de verdade, mas ajudaria a manter o plano viável por mais tempo. E tem outra: do jeito que o mercado funciona, com a minha empresa sempre se dizendo no verde, é certeza que algum cretino vai querer entrar no mesmo mercado, talvez até corrigindo a minha cagada óbvia de fazer o cheiro ser ruim, mas anunciando benefícios parecidos. Isso é ótimo para o mercado de consumo, mas não daria para deixá-los correrem soltos. Teria que comprar os concorrentes antes que ficassem caros demais e daria uma cagada no cheiro de cada um deles depois. Sim, eu manteria falsa concorrência deixando todos os produtos mais ou menos ruins por igual.

A pessoa que comprou o do concorrente que cheirava bem e viu a fórmula mudar para cheirar mal de novo como o meu original tomaria um nó na cabeça: “se mudaram para esse cheiro, é isso que as pessoas queriam?”. Lembrando que esse público já caiu na história dos feromônios enlatados, só tinham o problema do cheiro ruim como impeditivo. Sem tréguas! Se quiser o benefício, o cheiro é esse! E… é claro: “porra, se tem até concorrente, é porque vende mesmo!”. As empresas grandes com poder para me peitar de verdade jamais entrariam nesse mercado horroroso, para não se queimarem.

Eu aposto que por pura confusão e necessidade de pertencimento, em alguns anos, um pouco antes de zerarem meus fundos, a empresa finalmente pararia de sangrar dinheiro. É possível enganar todas as pessoas? Não! Vai ter gente dizendo que aquela coisa fede e não funciona, mas vamos começar a ver o poder da autossugestão fazendo o produto funcionar e entregar o resultado prometido. Evidente que eu fui no ângulo da atração entre os sexos: confiança consegue passar por cima de um monte de problemas, o efeito placebo é poderoso.

E com tempo o suficiente, adolescentes impactados começam a agir de acordo. A estratégia de mídia com certeza vai passar pelos ídolos deles, notórios por serem vendidos de marca maior. Mesmo se tivermos que segurar um pouco o atropelo midiático, essas pobres almas já estarão corrompidas. E aí basta voltar a agir feito uma empresa normal, investindo o que realmente pode investir, com foco máximo em divulgação.

Em uns cinco anos eu já imagino que um produto ridículo desses vai vender sim, viabilizando a manutenção do negócio. E se por um acaso o povo for ainda mais imbecil do que imagino, o que frequentemente é, os feromônios mijados podem até virar item de consumo cotidiano de milhões, ganhando espaço para divulgação mundial. Imagina algo assim pegando na China? Ou na Índia, onde realmente vai cheirar melhor do que o habitual? Minha ideia era trollar um país torrando bilhões no processo e criando um hábito insano que passará por gerações, mas com o foco certo em propaganda e práticas sujas de mercado, não duvido que dê para recuperar esses bilhões com as décadas.

E sabem o que é pior? Seria difícil de notar alguém fazendo isso debaixo do nariz de um povo inteiro porque eu só descrevi práticas que já existem no mercado. Gerar problemas onde não existem: “seus feromônios estão fracos?”, usar ciência furada: “aumenta em 20% a eficiência dos seus feromônios”, fingir que não mentiu sobre o papo científico mesmo sendo obrigado a se retratar: “o segredo para sua autoconfiança”, massificar mensagens sem sentido para confundir as pessoas, pagar para “formadores de opinião” fingirem que gostam de um produto, usar abuso financeiro para deslocar produtos concorrentes de prateleiras, canibalizar concorrência, simular popularidade e manter as autoridades contentes (mesmo que por vias ilegais). Mesmo as pessoas pagas para divulgar nem se tocariam do que estaria acontecendo, não veriam diferença clara entre a minha tática e as que realmente visam o lucro.

Porque é assim que funciona. Se eu tivesse um bilhão de dólares, o mundo seria um lugar bem mais fedido. Ainda bem que eu não posso apostar na Powerball.

Para dizer que eu quis provar que eu sou o rei dos textos que mudam de sentido, para dizer que eu não dei um nome para o produto (sugestões?), ou mesmo para dizer que merda você faria com um bilhão de dólares: somir@desfavor.com


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