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Direito à ausência.

Direito à ausência.

| Sally | | 87 comentários em Direito à ausência.

Tá grande, tá chato e tá reflexivo. Se quer se divertir, volta na sexta.

Grupos de whatsapp. Talvez eles sejam uma das coisas que eu mais odeio e desprezo na minha vida. Um sonho de consumo seria nunca ter que participar de grupo algum. Mas, infelizmente, o mercado de trabalho já descobriu os grupos de whatsapp e te violenta, te obriga, te coage a participar deles. Atentem para o plural: deles. O que poderia ser um grupo só, acaba virando muitos. Tem o grupo oficial do trabalho/empresa, tem o grupo oficial do seu seu setor, tem o grupo oficial do seu setor menos o chefe, que é para poder reclamar, tem o grupo panelinha do seu setor… Tem também o grupo da família(e desse eu escapei). Tem grupo de tudo quanto for atividade coletiva que você participar: pessoal da academia, pessoal do curso, pessoas da puta que pariu. Quantos grupos você tem hoje no seu celular? Pois o meu, do trabalho, é o único e ele já me enlouquece.

O grupo em si não é uma má ideia, é uma forma de enviar uma mensagem de uma única vez para várias pessoas ao mesmo tempo. Em tese, parece bacana. Mas, como tudo em que brasileiro põe a mão no meio digital, virou uma avacalhação. Em um grupo de 20 pessoas, um filho da puta começa, assim que acorda: “bom dia!”. Pronto! Seguem-se 19 “bom dia” em resposta. E essa porra apitando, me fazendo parar tudo que eu estou fazendo e olhar, porque a babaca aqui acha que ninguém vai usar algo de trabalho para dar bom dia. Mas usam. É uma falta de profissionalismo, de seriedade, de objetividade… esculhambação total. Sinto mal estar físico às vezes.

É um reflexo do que acontece ao vivo: pessoas sem a menor pertinência temática, discernimento ou adequação. Um festival de coisas desinteressantes, desnecessárias e que não me acrescentam em nada. A pessoa tem uma diarreia mental incontrolável, se ela pensa, se ela acha, se ela viu, ela tem que compartilhar. A pessoa não para por um segundo para refletir se aquilo interessa aos destinatários, se aquilo acrescenta, se aquilo de qualquer forma vale a interrupção do Estado de Fluxo que vai causar. Não, não. Neguinho recebe foto de um macaco usando óculos, acha engraçado e te manda. Assim, eu vivo meus dias de semana: extremamente estressada, sendo interrompida pelas maiores babaquices do mundo de cinco em cinco minutos.

Eu passo meu dia garimpando grupo. Aquela merda apita e eu paro o que eu estou fazendo e pego o telefone com a certeza de que é alguma imbecilidade. E 99% das vezes é. Mas eu sou obrigada a olhar, pois existe o 1% das vezes onde é algo relacionado a trabalho e é importante (e Murphy não falha, vai ser justamente na vez em que eu não olhar). Eu classifico isso como uma violência: eu sou obrigada a ler a babaquice alheia todo santo dia, ela é imposta a mim. Sem sacanagem, eu renderia pelo menos o dobro do que rendo no trabalho se não tivesse que parar para ler o “social de whatsapp”.

Mas essa Shinny Happy People não entende, eles nunca vão entender. São pessoas que tem medo de ficar sozinhas com seus pensamentos. São carentes e covardes, por isso sentem um alento a cada bipe que o whatsapp dá, pois erroneamente se sentem amados quando procurados. Coitados, mal sabem eles que são apenas palco para a exibição egóica daqueles que enviam as mensagens. Nesse pacto perverso a coisa se prolifera, em uma espécie de neurose complementar: aquele que quer plateia com aquele que teme ficar só se retroalimentam.

Enfim, é aquele comportamento típico de pessoas burras: achar que aquilo que as agrada também agrada todo mundo. O primeiro sintoma da burrice é esse, desconhecer as diferenças. Assim, a certeza de que esses energúmenos não sabem o mal que estão me fazendo, muito pelo contrário, acham que estou achando bonito, me faz tirar forças do cu para continuar aturando essa violência no trabalho. Convenhamos, não há opção.

Dá para reclamar? Não dá. Se você reclama, é uma pessoa mal humorada, de mal com a vida, amarga. Porque o mundo é assim: a inclusão só é imposta contra aqueles que criticam a maioria. Criticou uma maioria dominante? Você é intolerante, babaca e arrogante. Tem que aprender a conviver melhor e respeitar as diferenças! Curiosamente na hora de reverter para as minhas peculiaridades (necessidade de silêncio e paz, por exemplo), não obtenho essa mesma premissa de aprenderem a conviver melhor e respeitarem as diferenças. Não… quando é comigo, sou mal humorada, de mal com a vida, amarga e quem tem que se adaptar sou eu. Então tá.

E tem que responder rápido, viu? As pessoas se ofendem, se preocupam, causa estranhamento demorar para responder. Se presume que o whatsapp é uma ferramenta imediata, a pessoa usa já contando que você vai responder na hora. No começo eu fazia questão de demorar um ou dois dias em todas as respostas, para adestrar as pessoas que esse seria meu tempo, pois talvez assim desistissem de me importunar sistematicamente com suas coisas desinteressantes. Mas descobri que custa mais caro, pois quando você não responde, as pessoas perdem completamente a noção e ficam te cobrando uma resposta.

A cada apito que o whatsapp dá sinto um arrepio que me percorre a coluna. Uma raiva enorme começa dentro de mim pensando por qual motivo idiota me interromperam: “qual é a imbecilidade agora?”. Abro, depois de assassinado meu Estado de Fluxo e constato uma corrente desejando uma ótima semana, uma foto imbecil que alguém com humor nada refinado achou engraçadíssima (seguido da risada de mongoloide KKKKKKKK), uma mensagem irrelevante que não tinha qualquer urgência ou qualquer outra coisa que poderia esperar ou poderia se dita por qualquer outro meio. Acreditem, tem uns amentais que chegam a enviar whatsapp para avisar que te mandaram um e-mail. Isso na minha cabeça só se justifica quando você precisa de uma confirmação de recebimento imediata daquele e-mail.

Tudo isso me parece sintoma de uma única coisa: egoísmo. As pessoas são tão egoístas que chegam a ser mal educadas. Elas dispõe de um mecanismo para te acionar de imediato, que só deveria ser usado com ponderação e sabedoria, afinal, você não vive à disposição da pessoa. Mas não, elas te acionam por qualquer merda. São imediatistas, mal educadas, mimadas, sem noção e se querem alguma coisa de você, tem que ser na hora, foda-se se vão te atrapalhar. Se querem falar, contar uma piada, dar bom dia, foda-se, vão impor isso a todo mundo e você que pare o que estiver fazendo para ver o maravilhoso “bom dia” da pessoa, pois sim, ela se acha tão interessante.

E com isso, surge um novo fenômeno que me preocupa: o fim da ausência. Não temos mais o direito de estar ausentes. Se você por um acaso tem faniquito (como eu tive recentemente) e desliga seu celular um final de semana todo, as pessoas ficam histéricas querendo saber o que aconteceu com você. Dá mais trabalho explicar que você está bem e só queria um pouco de paz na segunda-feira pela manhã do que aturar a paunocuzação .constante com celular ligado. Pensei bastante e eu não quero abrir mão do meu direito de estar ausente.

No grupo do trabalho eu não mando, mas no meu telefone pessoal sim. E essa palhaçada acabou. Comecei a excluir não apenas do meu celular, como da minha vida, gente que não me permite estar ausente. Confesso, a faxina me trouxe alívio. Plus: é bom que as pessoas sintam a minha falta, valoriza meu passe e elas tem a oportunidade de vislumbrar seu eu faço falta ou não, o que pode ser determinante para decisões futuras que elas tomem a meu respeito. Não tem maior verdade do que aquela que diz que as pessoas só dão valor quando perdem.

Infelizmente durante a semana minha qualidade de vida cai vertiginosamente por causa do trabalho, ocasião onde não se pode desligar o celular. Mas os finais de semana são meu HappyPlace. São os momentos onde eu rendo, onde eu melhor consigo trabalhar e me sentir verdadeiramente em paz. Eu quero o direito de estar ausente e eu vou brigar pelo direito de estar ausente. E digo mais: eu acho que o fim da ausência não gera apenas um tremendo mal estar em mim, vai gerar também muita confusão e aberrações sociais.

Assim como pessoas usam Facebook para emular uma vida muito mais feliz e abastada do que a que realmente tem (e assim, aplacar muitas frustrações – em vez de fazer força para mudar a vida real fingem a vida que verdadeiramente queriam), as pessoas estão usando whatsapp para emular uma vida social que não tem. Desculpa, mas à exceção de quem mora longe (pois aí não tem outro jeito), se você falou comigo apenas pelo whatsapp nos últimos meses, não considero como se tivéssemos contato.

Amizade não se sustenta apenas por whatsapp. Hoje em dia parece que as pessoas se dão por satisfeitas, que consideram socialização válida, que consideram seu dever para com o amigo cumprido, apenas batendo um papo no whatsapp. Bem, estas pessoas estão agora fora da minha vida. Sem mágoas, lhes desejo bem, só não atendem meus requisitos para receber o privilégio de serem meus amigos ou de tomarem meu tempo disponível recebendo respostas minhas. Ou é real ou não é. Fingir que é real virtualmente não me satisfaz.

Mesmo para essas pessoas que se sentem amadas ao receber whatsapp, a conta vem. Ahh… chega uma hora que a conta vem. Já começo a observar algumas pessoinhas estressadas por manter a demanda social de whatsapp, dando sinais de F.O.M.O. A pessoa começa a surtar por não querer ficar por fora de nada, por querer saber tudo que estão falando em todos os grupos, por querer participar de tudo e, com isso, começa a se portar de formas nada saudáveis. Leva o celular para a cama e cada vez que ele apita, ela olha, mesmo que esteja dormindo ou prestes a pegar no sono. Não é o celular que serve à pessoa, é a pessoa que serve ao celular. Uma vida em função de um celular? Não, obrigada. Eu quero ser livre. Drogas escravizam, sejam elas cocaína ou tecnologia. O que faz a droga não é o objeto ou a substância e sim o uso que você dá a elas.

É muito grave não saber sentir a ausência de alguém. É duplamente grave: Primeiro por não saber ficar sozinho com você mesmo e com seus pensamentos, um procedimento necessário, indispensável, para refletir, crescer, se conhecer melhor. Segundo por desaprender a lidar com a ausência do outro, que eventualmente vai existir mais cedo ou mais tarde, nem que seja na forma da morte. Vejo novas gerações sofrendo quase que de forma patológica de angústia por separação. Acho péssimo. O que me leva a um novo twist no texto: o “me time”.

Na falta de expressão melhor, peguei emprestada essa dos americanos: “me time”. Em uma tradução livre, seria o tempo diário que você reserva para você mesmo. Não sei vocês, mas eu tenho uma necessidade (atenção ao termo: é necessidade) de “me time” diária. Já tive relacionamento que envolveu coabitação e lhes digo que não é fácil explicar a necessidade do “me time”. E sem direito à ausência, não há “me time” possível. Para mim, sem “me time” não há qualidade de vida. Por isso eu faço questão absoluta do meu direito à ausência, para preservar o meu sagrado “me time”.

Não há tempo só meu se o whatsapp está apitando. Não há tempo só meu se tem alguém que não para de falar comigo. Não há tempo só meu se eu não posso estar sozinha comigo mesma, em silêncio fazendo aquilo (ou fazendo nada) que eu quiser. E é graças a esse “me time” que eu atribuo o rendimento em escrita que vocês (até mesmo Somir) tanto elogiam (spoiler: frequentemente chego a escrever dez textos por dia). Isso só é possível porque eu paro ao menos uma hora do meu dia para olhar para dentro de mim mesma, me conhecer melhor e refletir sobre o mundo.

Como se fosse pouco ter que viver sendo atormentada por uma infinidade de debilóides que mandam coisas desinteressantes e me acionam por qualquer merda, isso só reforça meu sentimento de não pertinência a este país, a esta cultura. Quando abro o celular e vejo uma foto que não me causa a menor graça, além de ficar puta por ter sido interrompida, ainda lamento o quão fora da curva estou. Desesperança. Sensação de que vou morrer sozinha. Sensação profunda de inadequação e não pertinência. Meu nível de desprezo/desinteresse por outros seres humanos está tomando proporções que assustam a mim mesma. Neste carnaval vou sair fantasiada de Dodô.

Mas calma, queridos Impopulares. Se eventualmente algum de vocês está com medo de ter sido inconveniente comigo, podem relaxar. Se você está aqui é porque eu te acho interessante, caso contrário já estaria banido, pois eu não recebo na minha casa quem eu acho desinteressante. No dia em que eu te achar desinteressante você vai saber, apesar de que, duvido muito, a gente seleciona a ferro e fogo. Vocês são meu criadouro de amigo em cativeiro. Muito amor. Falando sério agora: não subestime a importância da ausência e do “me time”. Tá dado o recado.

Para dizer que pela falta de linearidade parece um texto do Somir, para sofrer comigo, para sofrer por mim: sally@desfavor.com


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