Diário do fundo do poço.
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Diário do fundo do poço, parte 1:
Pensando bem, não é tão ruim assim. Existem lugares piores para se estar. Se não chover forte demais, eu posso ficar aqui por um tempo. Fazia muito tempo que eu não ouvia o som da minha própria respiração. É bom estar vivo, sempre bom lembrar disso. Acho que se me concentrar bastante, ouço meu coração batendo. Vou ficar em silêncio por um tempo, tudo bem?
Diário do fundo do poço, parte 2:
As pessoas dão nomes para as mais diversas coisas, não? Eu tive um amigo, em outra vida, que nomeou um copo. Sim, um copo! Bebia demais, o safado, saudades. Ele tinha um copo especial, especial para ele porque para qualquer um de nós parecia só mais um dentro os outros cinco iguais que repousavam por sobre o bar em sua casa. Mas era incrível, ele sabia qual era aquele copo, de olhos fechados até. Água ele tomava em qualquer um, vinho também, mas uísque… só naquele copo. Mas a parte da água é pura anedota, nunca o vimos tomando. Uísque, por sua vez…
O nome? Guerra e Paz. Se ele tinha lido o livro? Claro que não. Era do tipo que desistia de uma matéria de revista no segundo parágrafo. Mas isso nunca impediu alguém de emular profundidade, não? Guerra e Paz era sua relação com o uísque. Nos momentos que precisava de força, recorria ao copo, quando precisava relaxar, idem. Esse é o tipo da dualidade que leva alguém ao alcoolismo, creio eu. Espero que esteja bem.
Ah, falo disso porque eu também tenho um nome para um objeto incomum. Batizei um tijolo de Lolita. Talvez inspirado pelo tema da literatura russa, mas tem algo nele que me evoca essa exata sensação. É um tijolo que está um pouco pronunciado em relação aos outros. Provavelmente até na medida certa para encaixar meus dedos. Mas ele repousa a poucos centímetros acima do limite do meus braços. Eu quero alcançar, não consigo… ou não quero. Mesmo que eu alcance e consiga usá-lo para me erguer, ainda vou estar longe demais da saída.
Um obsessão que eu sei que não vai me levar a lugar algum. É até provável que eu escorregue, caia e me machuque mais ainda. Mas… eu só quero alcançar. Talvez seja minha última ilusão de escolha.
Diário do fundo do poço, parte 3:
Quanto tempo alguém pode viver aqui? Eu sei que as pessoas morrem rápido sem ar, e ele chega aqui. Sei que água faz falta em poucos dias, mas desse mal eu com certeza não morro. O problema é a comida. Energia. Energia que eu gasto a cada vez que respiro ou bebo água. Não é fascinante morrer por tentar viver? Eu li uma vez que nosso corpo é feito pra morrer. Já pensou nisso? Que desperdício.
Se bem que eu começo a entender os motivos… não gostaria de ficar aqui por toda a eternidade. Às vezes nossas fraquezas nos libertam… meus pais eram pessoas muito fortes. Fortes até demais. Detestavam-se, era visível. Eu perdi meu quarto com seis anos de idade e fui forçado a dormir no mesmo que uma irmã que só conseguia dormir com todas as luzes acesas porque ao invés de admitirem seu fracasso, os dois enfrentaram a situação com todas as forças que tinham. Ficariam juntos mesmo dormindo em quartos separados e trocando meia dúzia de palavras por dia.
Custasse o que custasse. Eu demorei meses para me acostumar com aquela luz toda. Nem fazia sentido levar meus adesivos de estrelas para o quarto novo, sem escuridão eles não tinham a menor graça. Meu pai herdou o meu quarto. Tudo bem, foi ele que pagou mesmo, era meu em termos. Mas… não era mais fácil ter desistido? Morreram poucas semanas de diferença um do outro, acho que a raiva mútua que os mantinha vivos.
Já não lembro mais quantos dias estou aqui. Eu posso jurar que Lolita está se despindo do musgo só para me provocar.
Diário do fundo do poço, parte 4:
Sabe o que mais irrita? É ver a luz lá no alto. Mesmo de noite, a Lua encontra seu jeito de mostrar a diferença entre onde estou e onde eu gostaria de estar. É o jeito como ela reflete nos tijolos lá de cima… a cor muda, dourado durante o dia e prateado de noite. E depois de algumas horas de sol, eles estão sequinhos. Eu sei que não vai durar, mas lá em cima… lá em cima as coisas mudam, tem um ciclo. Começam e terminam…
Aqui está tudo sempre igual. O musgo cresce sem impedimentos, fungos e insetos notívagos sem preocupação alguma, sorte deles. Eles estão onde deveriam estar, eu que não. Ou, pelo menos eu tenho noção disso, não fosse aquela luz quem sabe eu cresceria também? Abraçaria a escuridão, aceitaria meu habitat e faria raízes, raízes profundas que me sustentariam por quanto tempo eu quisesse.
Mas com exceção dos dias chuvosos, onde um teto de chumbo obscurece a visão e me dá alguma esperança, a luz está sempre lá. Eu já tentei fechar os olhos, mas fica tudo vermelho. Não é a mesma coisa.
Diário do fundo do poço, parte 5:
Eu deveria ter morrido. Estou pele enrugada e ossos! Só meu pescoço fica acima da água, as pernas se recusam a cooperar. Por sorte encontrei uma posição confortável para olhar as estrelas durante a noite. Na noite passada eu vi uma brilhar mais forte, me deu vontade de rezar. Mas não seria hipócrita? Eu até acredito que tem alguém olhando aqui para baixo, mas eu nunca fui muito de olhar pra cima até agora. Se eu estava bem sem ouvir ou dar ouvidos até agora, acredito que já fiz minha escolha.
Não deixa de ser uma escolha, não? Minha primeira namorada tinha olhos verdes, francamente não tinha muito mais o que apreciar ali, mas eu me lembro de me sentir muito sortudo por ter conquistado uma mulher de olhos verdes, o que nem faz muito sentido pensando hoje em dia. Não é tão raro assim, é? Na maioria das vezes eu nem entendia muito bem o que ela dizia, mas parecia tão especial por causa daquele olhar… eu gostava de me ver refletido ali. Não ouvia nada, e duvido que ela dissesse algo de importante, ainda mais naquela idade que só queremos nos afirmar. Monólogos acompanhados. Amor adolescente. Ela me deixou por um rapaz que bebia muito, mas era bem mais descolado que eu, talvez até por isso. Azar dela, depois de brigarmos na saída de um bailinho, ficamos amigos.
Fico pensando se eu vou ver as estrelas desaparecerem mais uma vez. Se vou ter raiva o suficiente para mais um dia, para rever Lolita e seu tentador verde. Só sei que estou cansado.
Diário do fundo do poço, parte 6:
Hoje alguém apareceu. Pouco tempo depois eu fui retirado. Acho que o próximo vai ter que ser num lugar mais distante ainda…
Oi Somir. Não sei se pode me ajudar. Estou procurando um des Conto que eu gostei muito.
Conta a história de um cara que caiu em um poço e um zelador (acho eu) que veio salvar ele. O plot era que o cara a ser salvo passou o texto todo sendo irônico e o salvador dele não percebeu, deixando o cara lá no poço mesmo. Tentei colocar ”poço” na pesquisa mas não achei. Tu se lembra do titulo desse des Conto?
Era um “Enquanto isso…”, realmente péssima ideia dar o mesmo nome para tantos contos.
https://www.desfavor.com/blog/2013/11/des-contos-enquanto-isso-13/
Profundo …
Ha!
Somir!!!!
Aproveitando tua onda de aparente bondade populista motivada pelo concurso….
Quando vai sair o fórum do desfavor?
“Desforum”(?)
Já saiu, já morreu. Era o Desfavórum, passei semanas montando e organizando tudo: mas quase ninguém postava conteúdo novo, mesmo depois de meses no ar.
Se é pra eu e a Sally escrevermos e as pessoas lerem e comentarem, o blog está de ótimo tamanho. Não me vejo refazendo não.
Perdi essa época, triste
Eu também. Que pena…
Sempre é escolha? Será?
Para algumas pessoas, me parece mesmo. Nem todo mundo vai correr em direção à luz, pudera: existem vantagens de ambos os lados.