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Vontade de sumir.

Vontade de sumir.

| Somir | | 24 comentários em Vontade de sumir.

Às vezes eu tenho vontade de jogar tudo pro alto e fugir. Ir para algum lugar longe, onde ninguém me conhece e eu não tenha responsabilidade alguma. Viver a vida de acordo com o que se apresenta à minha frente e não dar a mínima para o futuro. Mas eu nunca faço. E aposto que 9 de cada 10 pessoas que leram este parágrafo se identificaram na hora, a que sobrou provavelmente nem está prestando atenção. Acho que todo mundo sente essa vontade eventualmente… mas por que não fazemos?

Se pararmos pra pensar, desde que você abdique da segurança (mesmo que mínima) da sua vida atual e aceite as consequências de simplesmente sumir, não está amarrado fisicamente a nada. Nada te impede de sair pela porta mais próxima e vagar por esse mundo. Se tiver dinheiro, vai de avião, se não tiver, arrisca uma carona! Sério, é só levantar a bunda de onde estiver e fugir agora mesmo. As pessoas ao seu redor nem vão ter tempo de reação.

Agora, se você vai se dar bem nessa aventura, garantia nenhuma. Quanto mais precária sua situação atual, maiores os riscos. Com certeza existem vantagens de estar num lugar conhecido cercado por pessoas com as quais se está habituado. E eu só estou falando dos riscos de curto prazo de sair sem rumo por aí. Com o passar do tempo, sua estrutura de sustento tende a ruir e te deixar sem nenhuma rede de segurança. A não ser que você tenha sorte, é muito complicado se manter viável nesse mundo sem fincar raízes. Ok, talvez seja simples entender porque não fugimos mesmo.

Para dizer que esse texto foi…

Não, espera. Talvez eu esteja me entregando fácil demais. Tem gente que faz mesmo essas coisas e se dá bem. Questão de troca: sem cama quente, mas com liberdade. Não tem quem resolva abandonar tudo para viajar pelo continente de bicicleta? Ou que vá passar a vida cuidando de vítimas de guerra em países longínquos? Com certeza existe algo de muito redentor em abandonar o sistema no qual vivemos para fazer uma maluquice dessas.

Teoria: no fundo a maioria de nós mal acredita na sociedade na qual vivemos. Nem mesmo a escolhemos. Caímos nesse mundo, aprendemos algumas regras de convivência compatíveis com as pessoas mais próximas geograficamente… e aí precisamos arranjar um jeito de ganhar dinheiro para comprar comida e qualquer outro badulaque que nos seja interessante. Ninguém te pergunta mesmo se é isso que você quer. E mesmo que perguntasse, existem poucas vagas nas funções dos sonhos da maioria de nós. Se fosse colocar no Barcelona todos os meninos que sonham jogar lá, precisaríamos de uns mil campeonatos espanhóis acontecendo em paralelo para acomodá-los. E os que ficassem na reserva fariam cara feia…

Só por educação, eu pergunto: é isso mesmo o que você quer? A vida, do jeito que ela se apresenta atualmente, é algo que você escolheria caso tivesse outras opções viáveis? Nem digo de ganhar mais, porque se você sonha com mais dinheiro para aproveitar melhor a vida está basicamente escolhendo esse sistema mesmo. Você pode até não ser muito bom jogando esse jogo, mas pode apostar que está cobiçando o mesmo troféu de quem está se saindo melhor. Estou perguntando algo ainda mais abrangente: essa forma de viver a vida baseado no seu valor como mão-de-obra seria a sua opção original? Nesse modelo capitalista, você investe sua liberdade para receber dividendos em bens materiais e reconhecimento social.

Você poderia ter fugido a qualquer momento, mas provavelmente está no meio de alguma coisa que toma seu tempo livre em troca de dinheiro ou aceitação. Não é papinho hippie não: nem estou dizendo que isso é algo reprovável, é um modo de vida com bases tão sólidas que basicamente o mundo inteiro já se converteu. Na dúvida sobre o propósito da vida, acumule riquezas. Pronto, já tem um objetivo! Sai da cama sabendo o que fazer, mesmo que nem sempre dê para cumprir a tarefa.

Mas a ideia fica nebulosa quando começamos a considerar esses surtos de fuga tão comuns. A vontade de fugir é frustração com o sistema no qual vivemos ou é um momento de claridade no meio de uma vida vivida no automático? Até mesmo quando você está fazendo algo que gosta tem seus momentos de querer uma pausa. Não é obrigatoriamente falta de vontade de continuar fazendo pra sempre. Mas sempre existe o risco de estar numa situação miserável e não conseguir perceber isso claramente. Estou louco quando quero gastar minhas economias viajando para um país distante só para estar lá ou estou louco quando não quero?

Infelizmente, eu não sei. Nunca me perguntaram se era isso que eu queria, então, não deu pra formular direito a ideia. Claro, ter raízes, emprego, relacionamentos estáveis e tudo mais pode ser bem agradável, mais do que suficiente para tornar válida a existência da maioria. Até porque imagino que para muitos de nós aqui, mesmo que não estejamos nadando em dinheiro, provavelmente demos muito mais sorte que a média, sem ter que escolher nada. Só nascemos com condições mínimas para ficarmos nos preocupando com “problemas de primeiro mundo brasileiro” nas horas vagas. É consideravelmente mais fácil aceitar um destino imposto se ele presume estar livre das agruras mais imediatistas com as quais a maioria da população mundial tem que conviver. Se eu tivesse que escolher, com certeza escolheria manter a condição de não passar fome ou de não ser perseguido por extremistas armados. Podia ser melhor, mas com certeza podia ser bem pior.

Mas mesmo assim, não sei se escolho essa vida como contrapartida para a relativa estabilidade que me foi apresentada. Não sei quem definiu que o sistema seria assim, mas com certeza essa pessoa não me pediu nenhuma sugestão. Essa “ética protestante” de se matar de trabalhar como norma para ter a alforria de uma ou duas folgas por semana nem parece tão necessária assim. Acredito que já tenha escrito sobre isso: tenho a impressão que muitos dos trabalhos disponíveis nesse mundo servem mais para as pessoas terem algo pra fazer do que para propriamente servir a um bem maior. É quase como se o sistema existisse só para manter-se vivo.

Aliás, parece um círculo vicioso até nisso: você não foge porque se o fizer, deixa de ser válido numa sociedade que te fez querer fugir para começo de conversa. Tem algo de errado aqui, só pode ter. Ou estamos sob pressão demais fazendo o que queremos, ou estamos fazendo o que não queremos. Difícil enxergar o meio termo. Continuo sem saber quando que eu estou louco, quando quero ir embora ou quando quero ficar. Alguém sabe?

Para dizer que está só esperando o chamado para o Suriname, para dizer que vai fugir desse texto e só voltar amanhã, ou mesmo para demonstrar que é das antigas e lembrar do Júnio por causa do título: somir@desfavor.com


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