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Fundo do baú.

Fundo do baú.

| Somir | | 15 comentários em Fundo do baú.

Numa loja de antiguidades:

CLIENTE: Boa tarde!
ATENDENTE: No que posso te ajudar?
CLIENTE: Estou pensando em comprar alguma coisa mais retrô para usar de decoração na sala de casa.
ATENDENTE: O que você tem em mente? Um móvel, um bibelô?
CLIENTE: Ainda não sei… eu queria alguma coisa que gerasse conversas, sabe? Meus amigos sempre dizem que minha casa é muito sem graça. Sabe como é, eu nunca tive que decorar a casa até pouco tempo atrás.
ATENDENTE: Entendo… temos uma seleção linda de cadeiras e mesas do século dezenove, muito bem conservadas.
CLIENTE: É… preferia algo que as pessoas pudessem ficar olhando, sabe?
ATENDENTE: Por que não um desses vasos chineses? Combinam com qualquer decoração.
CLIENTE: Não sei… e esse baú?
ATENDENTE: Hmmm… esse eu… eu vou ter que confirmar o que é. É que eu comecei a trabalhar aqui faz pouco tempo, o antigo dono teve que se aposentar e me colocou no lugar não faz nem uma semana.
CLIENTE: Tudo bem. Mas eu achei ele bem diferente. Tem uns desenhos curiosos na madeira…
ATENDENTE: Deixa eu ver se acho no inventário da loja. Está tudo nesses livros empoeirados…

A atendente passa alguns minutos folheando os livros.

ATENDENTE: Olha, não achei nenhum baú aqui. Será que não está à venda?
CLIENTE: Eu tinha mesmo que gostar do que eu não posso ter…
ATENDENTE: Hahaha. Deve ser para guardar coisas da loja. Quem sabe dentro dele tem mais alguma coisa que te interesse?
CLIENTE: Agora eu fiquei curioso para saber o que está aí dentro!
ATENDENTE: Se você prometer não contar para ninguém, a gente pode abrir!
CLIENTE: Fechado! Quer dizer… aberto!
ATENDENTE: Hahaha!

A atendente sorri, e logo sai detrás do balcão para se aproximar do baú. Ela troca olhares com o cliente, que sorri de volta.

ATENDENTE: Vamos ver… olha, tem algo escrito. Mas não sei em que língua.
CLIENTE: É latim. Baú… do… tempo perdido?
ATENDENTE: Você fala latim?
CLIENTE: Eu sou cheio de surpresas!
ATENDENTE: Estou vendo…
CLIENTE: Eu ensino História. Acabei aprendendo um pouco.
ATENDENTE: Não brinca! Eu comecei a fazer História na faculdade, mas tive que trancar.
CLIENTE: Mundo minúsculo!
ATENDENTE: Né? Vamos ver o que tem no baú?
CLIENTE: Claro! Primeiro as damas.

A atendente ri antes de levantar a trava do baú. Assim que levanta a tampa, o interior parece se iluminar. Ela se assusta, soltando a tampa.

ATENDENTE: Que susto!
CLIENTE: Tinha uma luz lá dentro.

Ele se abaixa e fica ao lado dela. Confiante, abre o baú mais uma vez, e dessa vez mantém a tampa aberta. A luz aumenta de intensidade abruptamente, num flash branco que ofusca a visão de ambos. Depois disso, escuridão.

ATENDENTE: Acabou a luz?
CLIENTE: Faz sol lá fora. Onde você está?
ATENDENTE: O que está acontecendo?
CLIENTE: Não sei, mas tenta segurar na minha mão.
ATENDENTE: Cadê? Cadê… achei!
CLIENTE: Você também não está enxergando nada, certo?
ATENDENTE: Não, nada. A gente ficou cego? Ai meu Deus!
CLIENTE: Calma, calma, está clareando… está vendo?
ATENDENTE: Sim. Não solta da minha mão…
CLIENTE: Hã? Está ficando mais claro… estou vendo… árvores?
ATENDENTE: Eu estou vendo uma sala de aula? É de quando eu estudei… História.
CLIENTE: Eu estou no campus! Da universidade onde eu me formei. Mas… estou vendo um prédio que não existe mais.
ATENDENTE: Aquele que foi demolido para construir o novo centro de pesquisas?
CLIENTE: Isso! Estudamos no mesmo lugar então?
ATENDENTE: Eu me lembro! Estou dentro desse prédio agora.
CLIENTE: Mas eu ainda estou sentindo sua mão.
ATENDENTE: E eu a sua.
CLIENTE: Eu estou do lado de fora… e você dentro?
ATENDENTE: O que está acontecendo? Eu, eu estou me levantando. Mas não consigo controlar nada.
CLIENTE: Eu sinto a brisa, o cheiro das árvores… estou sentado num banco.
ATENDENTE: Estou saindo da sala, carregando um monte de livros. Eu me lembro! Foi o meu último dia…
CLIENTE: O que aconteceu?
ATENDENTE: Eu não estava conseguindo pagar, cheia de problemas… eu lembro desse dia, tudo deu errado. Eu perdi as forças para continuar. Por que eu estou lembrando desse dia horrível?
CLIENTE: Estou lendo um livro. Um que eu precisei para minha conclusão de curso. É… eu lembro desse dia.
ATENDENTE: Estou saindo. Cheia de livros nas mãos, atrasada para devolver na biblioteca. Estava tão cansada…
CLIENTE: Foi nesse dia que eu conheci ela. Argh, não, não esse dia.
ATENDENTE: Ela quem?
CLIENTE: Minha ex-mulher. Foi a pior besteira que eu fiz.
ATENDENTE: Estamos vendo dias ruins de nossas vidas?
CLIENTE: E eu não posso fazer nada? Ah, droga! Ela está chegando… ela vai me perguntar sobre o que eu estou lendo e vamos começar a conversar. Não! Não! Não faz isso!
ATENDENTE: Eu não aguento mais viver esse dia. Eu não consigo nem ver para onde eu estou indo… ai!
CLIENTE: Foi você que tropeçou? Eu estou vendo… você!
ATENDENTE: Eu não me lembro de ter caído assim. Que vergonha… ninguém vem me ajudar? Vão ficar rindo?
CLIENTE: Eu… eu estou me levantando. Estou… estou indo até você.
ATENDENTE: Eu estou chorando… não chega perto.
CLIENTE: Não posso evitar… estou te dando a mão.
ATENDENTE: E eu não estou me sentindo invisível pela primeira vez em… sei lá quanto tempo.
CLIENTE: Você está sorrindo e chorando ao mesmo tempo.
ATENDENTE: Ai, que vergonha.
CLIENTE: Estou… eu… você está sentindo isso?
ATENDENTE: Estou. Você está limpando grama do meu ombro. Se abaixou para pegar meus livros, estou dizendo que não precisa.
CLIENTE: Minha ex! Haha! Minha ex está olhando pra gente. Está mudando de direção, está indo embora!
ATENDENTE: De nada.
CLIENTE: O dia está melhorando, melhorando muito.
ATENDENTE: Você está tentando dizer algo…
CLIENTE: Eu sei, eu estou gaguejando. Mas eu quero te chamar para tomar um café.
ATENDENTE: Eu topo!
CLIENTE: Você falou isso ao mesmo tempo que eu ouvi.
ATENDENTE: E você nem terminou a frase! Eu nem sei o que eu topei! Ridícula! Hahaha!
CLIENTE: Seja como for, estou muito feliz agora.
ATENDENTE: Eu também.
CLIENTE: Nossa, eu nem perguntei seu nome!
ATENDENTE: Marcela.
CLIENTE: Julio.
MARCELA: Está tudo escurecendo?
JULIO: Sim… está sentindo minha mão ainda?
MARCELA: Estou.
JULIO: Calma, está vontando… eu estou… eu estou me sentindo muito bem.
MARCELA: Eu também… está meio escuro ainda e… ai! É você? Em cima de mim?
JULIO: Estou vendo seu rosto e… ah…
MARCELA: Nós estamos?
JULIO: Estamos. Esse é o quarto da minha casa.
MARCELA: Ai que vergonha!
JULIO: Quer soltar minha mão?
MARCELA: Não. Agora não… agora não…
JULIO: Concordo… só mais um pouquinho…
MARCELA: Não fica escuro agora! Não!
JULIO: Porra!
MARCELA: Onde estamos?
JULIO: Isso parece… Roma!
MARCELA: Que lindo!
JULIO: Estamos vendo ruínas.
MARCELA: Eu estou com a minha cara… atual.
JULIO: Eu também.
MARCELA: Olha, tem gente vindo falar com você. São seus alunos, pela idade deles…
JULIO: Mas alguns estão vindo até você também. Ei, nós dois somos professores!
MARCELA: Mas eu nunca…
JULIO: Eu acho que te ajudei a continuar estudando.
MARCELA: Estou vendo meu celular… estamos em… hoje?
JULIO: Vimos nossa vida se tivéssemos nos encontrado. Só pode ser.
MARCELA: Baú do tempo perdido! Então é isso que ele faz.
JULIO: Parece uma vida feliz, não?
MARCELA: Parece sim.
JULIO: Será que ainda… ainda dá tempo?
MARCELA: Só tem um jeito de descobrir.
JULIO: Estou ficando meio zonzo.
MARCELA: Está tudo bem?
JULIO: Minha cabeça está doendo.
MARCELA: Estou te vendo passar mal… você desmaiou!
JULIO:
MARCELA: Ai meu Deus! Você não está respirando… o que aconteceu? Alguém me ajuda… alguém me ajuda! Julio! Julio!

Tudo escurece mais uma vez. Quando a luz retorna, Marcela e Julio estão de volta à loja de antiguidades, mãos dadas. Ambos de pé.

MARCELA: Você está bem?
JULIO: Sim.
MARCELA: O que foi aquilo?
JULIO: Algo que eu tratei há alguns anos. Eu tinha um tumor no cérebro, mas era operável. Se não fosse minha ex me dar uma pancada violenta na cabeça durante uma briga, eu nunca teria percebido.
MARCELA: Está tudo bem agora?
JULIO: Sim. Desse mal eu não morro mais.
MARCELA: Então… se a gente tivesse ficado juntos, você morreria hoje?
JULIO: Eu… eu acho que sim.
MARCELA: Eu ia te matar! Eu não sei o que fazer…
JULIO: Fácil. Fecha esse baú e vamos tomar um café.

FIM?

Para dizer que não ter um final horrível te pegou de surpresa, para dizer que isso foi muito gay, ou mesmo para dizer que só vai ler amanhã porque postei no dia errado: somir@desfavor.com


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