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Carta aos ginecologistas:

Prezados Ginecologistas,

Sou uma mulher com mais de 30 anos, solteira e não quero ter filhos. Não quero ter filhos desde sempre e, desde sempre, esse direito me foi negado, nunca pude exercê-lo na plenitude que me deveria ser disponibilizada.

Métodos anticoncepcionais sempre me foram oferecidos, porém todos insuficientes, cada qual à sua maneira. Vocês, melhor do que ninguém, sabem que a eficácia plena da pílula anticoncepcional depende de uma série de fatores bastante chatinhos, que vão desde tomar o comprimido todo santo dia no mesmo horário até bizarrices inevitáveis ao longo de uma vida, como não tomar determinados medicamentos ou não ter diarreia.

São inúmeros os imprevistos que podem fazer uma pílula anticoncepcional falhar, e a maioria das brasileiras sequer está ciente deles. É mais comum do que se pensa ver filhos de pílulas mal tomadas. Sem contar os eventuais malefícios que hormônios podem causa a um organismo. Se não hoje, com pílulas mais moderas, 20 anos atrás. Pílula anticoncepcional não é e não pode ser resposta para tudo. Sempre existiram opções que me convinham mais, mas, infelizmente a decisão final nunca foi minha, apesar de sucessivos esforços e trocas constantes de médicos.

Camisinha, como os senhores sabem, é ótima para evitar doenças sexualmente transmissíveis, mas um péssimo método contraceptivo. Com um índice de falha de cerca de 10% (se mal utilizada, muito maior), ela jamais será garantia para um casal estável que faça sexo regularmente. A cada cem vezes que a mulher fizer sexo, correrá o real risco de engravidar em DEZ delas. É uma roleta-russa que, em algum momento, ao longo dos anos, pela pura lei da probabilidade, vai dar errado. E quando der, aborto será ilegal, sujeitado a mulher à maravilhosa escolha de pagar caro por clandestinidade e risco à saúde, ou um filho, um compromisso eterno indesejado. Parece justo?

DIU, principalmente se contiver hormônio, também é tratado como um bicho-papão. Aquela lenda urbana de que não se coloca DIU em mulher que não teve filhos pegou forte. Já ouvi ameaças como perfurações, infecções e até mesmo algum tipo de atrofia da camada do endométrio, aquela responsável por segurar o óvulo fecundado dentro do útero. Ah o endométrio… nunca vi o meu, mas já o odeio. Injeções trimestrais? Vão diminuir o endométrio também! E pode demorar anos para que ele se recupere! E se você se arrepender? E se quiser ter um filho e tiver atrofiado seu endométrio nessa idade, sem tempo para ele voltar ao normal? Você não é casada, e se você casar e seu marido quiser ter filhos? Sim, acreditem, já ouvi isso e coisa pior.

Eu respondo: sim, tudo de ruim pode acontecer e eu posso criar uma situação irreversível da qual me arrependa. Ok. Masao menos a escolha foi MINHA. Se eu me arrepender o problema é MEU.

Eu entendo limitações de escolha para menores de 18 anos, mas para uma mulher adulta? Desculpa, essa escolha é minha, apenas minha. E vocês, por décadas, estão me privando dela, fazendo a escolha por mim, decidindo o que acham melhor para mim, projetando seus desejos e medos em mim, sem nem ao menos me conhecer. Se meu marido quiser filhos e eu não, olha que fácil, deixa de ser meu marido! Que cabeça é essa de achar que uma decisão como essa será unilateral?

Se eu me arrepender, doutores, eu arco sozinha com os custos desse arrependimento. E sempre, sempre, a qualquer momento da minha vida, poderei adotar uma criança. O mesmo não se diz da mulher que opta por ter um filho, essa sim não tem direito a arrependimento. No entanto, não vejo os doutores preocupados com este aspecto, alertando as mulheres para pensar bem antes de engravidar.

Absurdo mulher ter obrigação de ter filho, e um desdobramento disso é não permitir que a mulher escolha, sozinha, qual o melhor método anticoncepcional para ela. Absurdo ginecologista interferir com qualquer juízo de valor quando uma mulher lhe comunica essa decisão: “Mas porqueeee?” ou “Você vai se arrepender” são sim formas de violência. Não lhes compete. Vocês não são terapeutas e nem ao menos conhecem minha vida e minha história para soltar uma excrescência como essa. Emitir juízo de respeito sobre essa decisão é sim desrespeitoso com a paciente.

E nem vou contar as coisas que ouvi quando sugeri algum método mais radical, cirúrgico, como a ligadura de trompas. Parecia que estava pedindo para amputarem uma perna! É quase impossível encontrar um médico que ligue as trompas de uma mulher sem filhos, apenas por ela não querer ter filhos. E argumentam, argumentam e argumentam. Não tenho o direito de não querer. Não tenho direito ao método anticoncepcional mais seguro, pois os doutores não se conformam que essa seja minha decisão final. Repito a mesma frase, há mais de vinte anos, e ela é refutada por pessoas que sequer me conhecem, e estas pessoas decidem por mim o que será feito do meu corpo. Não tenho o direito de querer correr um risco de uma decisão irreversível, pois eles decidiram que eu não sou capaz dessa decisão e vão me ignorar.

Se eu quiser usar anticoncepcionais hoje, tenho que, forçosamente, fazer uso de hormônios. Não importa quanta certeza eu tenha de não querer filhos. Foram vinte anos de hormônios totalmente desnecessários que eu não sei ao certo qual impacto terão no meu organismo a longo prazo. Foram vinte anos sem a certeza absoluta de não engravidar, uma paz de espírito que eu teria apreciado. Foram vinte anos onde eu vivi a contracepção do jeito de vocês, doutores, e o impacto disso sou eu a sentir e também é irreversível.

Não me parece justo. Fica aqui meu apelo para que não façam isso com mais ninguém. Se a pessoa se arrepender, o problema é dela, apenas dela, assim como se a pessoa se arrepender de ter filhos (sim, lamento informar, mas acontece). Parem de tratar mulheres como retardadas incapazes de escolhas sérias.

O curioso é que ninguém faz isso com um homem. Não tenho dúvidas que se homem engravidasse aborto já era legalizado e DIU vendia até em carrocinha de cachorro quente. Famosos jogadores de futebol fazem vasectomia aos 20 anos sem problemas. Homens sem filho fazem vasectomia sem serem recriminados. Ninguém interfere na escolha do método anticoncepcional masculino, assim como não exerce juízo de valor sobre sua escolha.

É hora de quebrar com esse ritual sádico de pressionar mulher a ter filho, direta ou indiretamente. Sim, é possível ser uma mulher feliz e completa sem filhos. E se vocês acham que não, recolham-se e deixem suas pacientes decidirem. Somos maiores de idade e temos discernimento, se nos arrependermos, que seja, melhor ter o direito à escolha e se arrepender do que ter alguém decidindo por você.

Aliás, cá entre nós, doutores, eu acho que uma mulher que opta por não ter filhos tem muito mais discernimento que outras que acabam fazendo filhos pelos motivos mais equivocados: um mero descuido, para “prender” um homem, para ser socialmente aceita e tantos outros. Doutores, em um mundo abarrotado onde nem água para todos teremos, quanto menos crianças, melhor. Pensem grande. Liguem trompas. Coloquem DIU. Manda assinar um terminho de consentimento dizendo estar ciente da irreversibilidade do procedimento e manda ver, que esse mundo já está abarrotado. É bom senso: em qualquer procedimento, a última palavra é do paciente, a menos que este queira algo que vai de encontro com sua saúde. Não ter filhos não prejudica a saúde de ninguém, muito pelo contrário.

É hora de ter culhões. É hora de dar à paciente o que ela quer, e não o que os doutores acham que é melhor para ela. Aos médicos que me disseram, com 20 anos de idade, que eu me arrependeria e iria querer ter filhos, eu digo: ESTAVAM ERRADOS. Continuo não querendo. Com que moral, com que autoridade, com que fundamentos se sentiram no direito de dizer o que eu iria querer ou deixar de querer da minha vida? Menos, doutores, bem menos, que vocês não são mais os semideuses da década de 80, a profissão de vocês está quase tão sucateada quanto a minha. Vamos descer do pedestal e priorizar o que a paciente quer e não o que vocês acham melhor.

O mais curioso é que, oficialmente, é vendido às mulheres que elas tem escolha. Não, não tem. Se o médico achar que ela é muito jovem para ligar as trompas, ele não faz. Se achar que não vai colocar DIU por nunca ter filhos, não coloca. O único método anticoncepcional minimamente eficiente (apesar de altamente traiçoeiro) é a pílula, talvez amplamente prescrita pelo “incentivo” dos laboratórios. Sejam honestos, sejam sinceros, não vendam como se tivéssemos escolha se quem, no final das contas, faz essa escolha pela paciente, são vocês.

Um médico ginecologista que não dá à sua paciente o método anticoncepcional que ela quer é um médico que não atende ao melhor interesse de seus pacientes e, na minha opinião, um péssimo médico. Um bom médico não se faz só de livros e estudo, mas também de saber escutar o que seu paciente lhe diz, coisa que anda em falta hoje em dia. Parem de escolher por suas pacientes, isso é feio, é pequeno e arrogante.

Para recomeçar a mimizar pela escolha de não ter filhos, para enviar isso para seu ginecologista ou ainda para me oferecer um DIU: sally@desfavor.com

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