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O dobro ou nada.

O dobro ou nada.

| Desfavor | | 30 comentários em O dobro ou nada.

Muito dos alimentos que consumimos atualmente contém um tempero todo especial: o sofrimento animal. Considerando que alguma empresa consiga garantir que não maltrata nenhum animal usado como matéria prima para seus produtos alimentícios, Sally e Somir tem formas bem diferentes de considerar quanto isso vale. Os impopulares soltam os bichos.

Tema de hoje: Você pagaria o dobro por um alimento que foi produzido sem sofrimento animal?

SOMIR

Sim. Desde, é claro, que eu tivesse algum grau de certeza sobre a afirmação de quem está vendendo esse produto. Em casa de publicitário, a cara dos anunciantes é sempre de pau. Mas, como estamos tratando de uma premissa que já resolve essa dúvida, que o alimento realmente foi produzido sem sofrimento animal… oras, tem seus méritos.

E por sorte, essa é uma pergunta pessoal. Eu posso me dar ao luxo de pagar mais caro por alguns alimentos por convicções pessoais, mas acho absurdo cobrar isso de quem tem dinheiro muito contado para a comida. Eu pagaria, mas sem extremismos: cada um faz o que puder. E nem sejamos tão radicais, não é pagar o dobro por tudo: porque se sua dieta SÓ tem produtos animais você é mais macho que eu, mas deve peidar de forma absolutamente letal. Mas ainda não lidamos com o ponto principal… realmente faz diferença para o mundo se o animal não sofreu antes de virar ou produzir nossa comida?

Vamos tirar logo do caminho o argumento mais emocional: podendo escolher entre comer o que quer com sofrimento animal e sem sofrimento animal, só mesmo psicopatas escolheriam a primeira. Acredito que todos nós concordamos que num mundo ideal, é pra você comer foie gras quando quiser sem que nenhum ganso tenha que sofrer no processo. O sofrimento do bicho pode até ser parte integrante do sabor desejado, mas ele, por si, não é o objetivo. É um preço que se paga.

Mas não sejamos emocionais demais: é um preço, não um impedimento. A natureza não é de tirar o pé do acelerador quando o lance é o sofrimento dos animais em seus habitats naturais. Na vida selvagem as mortes são lentas e agonizantes. E mesmo considerando que humanos são razoavelmente menos cruéis com suas presas do que um leão, por exemplo, ainda não é como se nossa comida não viesse manchada pelo sofrimento de outros seres vivos. Não estou no time dos vegetarianos dizendo que me recuso a fazer parte da cadeia alimentar, até porque ESSE preço de nunca mais comer carne eu não pago. Pra mim é caro demais.

Percebem que na verdade é uma questão “comercial”? O quanto você paga numa ideia. Quem tem alguma noção das condições nas quais nossos alimentos de origem animal são feitos paga o preço da crueldade a cada vez que enche a barriga. Quem não admite ser parte do problema paga outro preço: o de não se alimentar de nada que considere cruel na fabricação. Quem come carne e quem não come carne já paga seu preço.

E se eu te dissesse que você pode ter o melhor dos dois mundos? Comer o que quiser sem culpa alguma? Sério que não pode custar mais caro? Tudo tem seu preço nessa vida, produtos feitos de formas que consideramos mais éticas são mesmo mais caros. A humanidade está baseada num sistema de exploração tanto de animais como dos próprios humanos para manter tudo muito barato (pelo menos para produzir). Quaisquer atalhos escusos encontrados são tomados sem a menor cerimônia. A verdade é que o sofrimento de seres vivos (gados e escravos humanos) está modificando para baixo virtualmente todos os preços desse mundo. Nossa economia é baseada nisso.

E a questão passa a ser a seguinte: em que modelo de mundo você quer investir? Porque é isso o que fazemos a cada compra focada apenas em preços: financiamos um modelo de negócios baseado em exploração. Claro, é vantajoso no curto prazo, mas não se esqueçam de uma verdade: nada é de graça nessa vida. Quando você prefere o barato ao ético, passa uma mensagem. Dá dinheiro para quem te oferece benefícios imediatos ao invés de quem está prestando atenção a alguma coisa além de lucro. Pode parecer sentimentalismo fazer um boi sofrer menos antes de virar um bife, mas as tecnologias e métodos desenvolvidos para se fazer isso vão gerando mudanças no mundo, ou pelo menos evitando desastres.

Comprar alimentos sem agrotóxicos, pode, por exemplo, financiar um atraso do distúrbio do colapso das colônias. Cada compra é um financiamento, se você parar para pensar. Temos poder de mudança social nas nossas mãos, a questão é saber o quanto você pretende gastar nisso. Alternativas sem base em exploração merecem receber recursos, a não ser que você ache que está bom demais viver num mundo cheio de escravos e prefira não mover um dedo. Custa mais caro fazer a coisa certa? É claro! Esse é exatamente o conceito.

Se eu não corro o risco de passar fome ao escolher produtos que não tenham se originado de sofrimento animal, o preço maior em dinheiro pode compensar o preço de ser conivente com os maus tratos nos bichos. E se não fizermos escolhas mais “abstratas” como essas quando pudermos, podem ter certeza que o mundo continua avançando lentamente e todas as empresas que puderem explorar pessoas ou animais para vender mais barato vão continuar fazendo sem o menor problema.

Repito: é evidente que tudo vai custar mais caro num mundo onde se queira erradicar sofrimento animal e humano na produção de bens de consumo. Os preços que vemos atualmente são “irreais” de um ponto de vista ético. Em muitas indústrias nem é possível disputar sem esses abusos para manter os preços competitivos, mas se alguma marca pudesse me convencer que não faz celulares com escravos, por exemplo, eu me disponibilizaria a pagar bem mais por ele. Se eu posso financiar quem eu acho que faz as coisas direito, eu tenho poder sobre esse mundo.

Quem escolhe o mais difícil não é gado.

Para dizer que enquanto não estiverem te explorando está tudo certo, para dizer que eu sou maluco de achar tudo muito barato, ou mesmo para dizer que vai continuar pastando no assunto: somir@desfavor.com

SALLY

Não. Não pago, por mais impopular que seja esse posicionamento. Não me sobra dinheiro e se tiver que escolher entre comer o que eu quero e um animal sofrer ou me privar de alimentos (ou de outros bens que considero necessários, por gastar mais caro com alimentos) em troca de bem estar animal, fico com a primeira opção. E, muito cuidado com a hipocrisia, quase todo mundo age assim.

Se eu dobrar a minha conta de despesas com comida, vou ter que cortar de algum lugar. Não quero. Uma bosta que animais tenham que sofrer para que eu me alimente, mas isso vem no pacote de viver em um país subdesenvolvido, escroto e atrasado. Esse pacote incluí muitas outras babaquices que me afetam diretamente e eu lido com elas. Bem, se aprendi a lidar com coisas que me prejudicam diretamente, como não ter segurança pública, acho que consigo lidar com o fato de uma galinha ou uma vaca terem uma vida e/ou morte indigna.

Eu consigo lidar com criança morrendo fome na ruas, com gente morrendo com dor na fila de um hospital por falta de atendimento médico e com coisas piores. Quão hipócrita eu seria se fizesse do sofrimento animal algo grave o suficiente para comprometer meu orçamento? Se é para sacrificar dinheiro e me colocar em algum tipo de privação, bem, seria para ajudar essas pessoas que citei. Nada contra quem prefere os animais, talvez eles sejam até melhores que o ser humano. Cada qual tem sua causa. A minha é gente, não desmereça a minha que eu não desmereço a sua.

Comida é um grande prazer para mim. Em alguns momentos da minha vida, inclusive, o único que resta. Pesando na minha balança, não me parece válido sacrificar um prazer para que uma galinha morra serena de velhice e só depois seja comida. Deixa eu contar um segredinho: crueldade humana está por todos os lados, todos os dias. Não dá para evitar. Achar que pode salvar os animais é uma forma comum de projeção de quem sofreu com a crueldade humana e se projeta nesses animais, Freud deve explicar. Respeito, mas querer impor isso a terceiros é bem pau no cu.

Se eu aceito tipos piores de crueldade e aprendo a viver com eles, como seres humanos morrendo de fome ou por falta de tratamento médico, porque me faz um monstro aceitar que pratiquem crueldade contra animais para que eu me alimente? Francamente, não me parece coerente. Amo atum, vou continuar comendo mesmo sabendo que o bicho morre a pauladas e metade do que tem ali é golfinho ralado, que foi para a rede junto, por engano. Amo patê de fígado de ganso, apesar de saber a sacanagem que fazem com o bicho para fazê-lo. Amo e não quero abrir mão. Acha feio? Será que você é realmente tão diferente de mim?

É isso, a crueldade está em todos lados e a aceitamos de forma bem pacífica em situações muito piores, com semelhantes nossos, mas com animais, por ser modismo, por ser socialmente aclamado graças a algumas formadoras de opinião com históricos de abuso em suas vidas pessoais que se projetam em um frango, vira o fim do mundo. Desculpa, nunca ninguém abusou de mim e eu não tenho sentimentos mal resolvidos canalizados para animais. Não quero salvar o mundo e se quisesse, começaria pelos humanos. Chegamos à metade do texto. Nesse ponto a maioria já está me odiando. Ao menos foi esse meu cálculo. Bacana, quanto maisme odiarem até aqui, mais efeito terão os próximos parágrafos. Vamos lá.

Não tenho vontade (sim, a palavra é “vontade”, não vou usar desculpas) de me privar de alguns alimentos que acho deliciosos, ainda que gerem sofrimento animal no seu preparo. Antes de se indignarem, olhem para seus iphones, seus tênis Nike, suas roupas da Zara e tantos outros feito às custas de sofrimento HUMANOS, DE CRIANÇAS em trabalho escravo nos porões do oriente. Por qual motivo quem me joga pedras tem um iphone? Por ser negador, por querer muito um iphone e tapar o sol com a peneira. Pois bem, o que eu quero muito não é um iphone, é comida gostosa e se você se sente no direito de corroborar com sofrimento de uma criança, bem, no mínimo não deve me julgar por causar dor a um frango.

Não quero impor minha escolha a todos, é apenas uma opinião e quem quiser fazer diferente, que o faça. O problema são essas pessoas que convergem para o sofrimento humano se achando no direito de me dar lição de moral por causa de um coelho. Vamos ser coerentes? Vamos ser proporcionais? Joga fora seu iphone, suas roupas de marca, seus tênis e tudo mais feito com trabalho escravo que aí sim eu deixo você me passar sermão envolvendo uma vaca.

Não vai acontecer, as pessoas nunca vão visualizar o tamanho da sua incoerência, porque isso as colocaria em uma posição incômoda de ter que abrir mão de algumas coisas que elas não querem. Elas tem o direito de não querer abrir mão de seus bens materiais, mas eu não tenho o direito de não querer abrir mão de comida. TÁ SERTO, com “s” mesmo.

É o país da hipocrisia, da falta de coerência recompensada, da estupidez automática por repetição. Vai lá e paga mais por um produto “sem sofrimento animal” (que, no final das contas, não duvido que seja mentira) e ignora que quase todos os medicamentos e vacinas que você usa PRECISAM do sofrimento animal para existir. Eu disse PRECISAM pois ainda não se inventou outro jeito, tomara que um dia cheguemos lá, mas hoje, sinto informar, bicho sofre horrores, as piores torturas, para que tenhamos remédios eficientes. E mesmo quando não façamos me necessidade, tem a escolha que afeta aquela criança escrava está lá catando parafuso do seu celular ou sola do seu tênis.

Vai achando que por pagar o dobro por um alimento está salvando os bichinhos, vai. Nesse exato momento milhões de animais estão sofrendo as piores torturas para que nós possamos usufruir de medicamentos. Crianças estão morrendo de fome. Pessoas estão senso assassinadas. Pessoas estão morrendo por falta de atendimento médico. Crianças estão em um porão escuro montando algo que você vai comprar. Você não vai salvar o mundo nem os animais, aceita que dói menos. Você COLABORA PARA A CRUELDADE diariamente. Aceita que dói menos. E olha pro próprio rabo antes de encher o saco dos outros.

Para depreender que eu sou gorda pelo meu amor à comida, para me xingar provando de forma cabal o quanto doeu ou ainda para relativizar uma simples pergunta de “sim” ou “não” mostrando que, além de imbecil, você é covarde: sally@desfavor.com


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