
Filtros.
| Somir | Somir Surtado | 5 comentários em Filtros.
Já ouvi falar que um grande mestre do xadrez deve ser capaz de enxergar umas sete jogadas no futuro, pelo menos. E não se enganem achando que isso significa pensar em sete coisas em sequência, segundo um famoso cálculo sobre o jogo, temos em média 30 jogadas disponíveis por turno. Na verdade cada uma dessas jogadas multiplica muito as possibilidades a serem analisadas a seguir: cada um dos seus lances significa 30 respostas possíveis do adversário, e depois de 7 jogadas estamos na casa das trilhões de possibilidades. Então, provavelmente essa ideia depende muito de filtros. Pensar sem nenhum deles enlouquece.
Quanto mais você tenta colocar sua mente no futuro, maiores as chances de se perder no ruído das possibilidades. É uma questão física: simplesmente não há “poder de processamento” disponível na mente humana para alcançar tamanha gama de situações e reações quanto as que lidamos diariamente. Até mesmo computadores precisam de filtros, na maioria dos softwares (bem feitos) existem códigos que ficam analisando se o programa está consumindo recursos demais do processador (o cérebro do computador), e a sua função não é incentivar essa mente artificial a se esforçar mais, e sim colocar um fim nessa análise excessiva.
Às vezes o ideal é parar de pensar. Pelo bem de toda a máquina. Se não houver algum filtro que reduza a confusão e faça a mente se concentrar apenas no que vale a pena analisar – vulgo o que é capaz de analisar – a “tela azul” (o termo é cada vez mais estranho para novas gerações) aparece até mesmo no nosso processador orgânico. A mente humana não é tão diferente de um computador, até porque computadores foram criados por humanos.
E muito se engana quem acha que pensar demais é problema de gente muito inteligente, mesmo quem subutiliza o conteúdo do próprio crânio está propenso à loucura do processamento excessivo. É tudo questão de tamanho da amostra: se a pessoa não está treinada para usar o cérebro de forma intensa, vai travar bem mais cedo. Mas num universo de números superlativos, é certeza que qualquer processador criado vai encontrar um desafio insuperável eventualmente. Ser atropelado por possibilidades é inerente a pensar.
O “travamento” da mente humana não significa apenas inação, ele também pode desencadear péssimas respostas quando se retorna desse estado com a necessidade de se tomar uma decisão. Tudo aquilo que você precisava considerar de verdade para tomar uma atitude desaba junto com os escombros das ideias que faziam peso extra na mente. Se você teve ficou sobrecarregado com o que deveria pensar e o que não deveria, vai acabar se rendendo a um chute, uma resposta intempestiva puramente reativa.
Por isso, os filtros. O que eu chamo de filtros aqui são condições para deixar de pensar em alguma coisa em prol de outras mais importantes. Mais ou menos como aquele código mencionado anteriormente que manda o software parar de alugar o processador se não for receber uma resposta. Um filtro da mente humana pode ser simples como não se embrenhar na possibilidade de uma pessoa querida ser abduzida por alienígenas como algo complexo e sutil como analisar o contexto de uma frase que alguém te disse para não depreender dela algo que lhe pareça danoso. Trabalhamos com filtros o tempo todo.
Só que diferentemente do processo básico e natural de analisar possibilidades, o uso de filtros depende de algum conhecimento prévio sobre o que se está analisando. Ou pelo menos de algo parecido o suficiente para se traçar paralelos. E curiosamente, isso causa dificuldades para todos os graus de capacidade intelectual: quem tem pouco conhecimento não consegue colocar os filtros que evitam o travamento cedo demais, quem tem muito pode se perder até mesmo na escolha deles. Até por isso tendemos a considerar alguns desses filtros mais valiosos que os outros e nos acostumando a escolhê-los em praticamente qualquer situação. A idade traz sabedoria, mas também uma considerável perda de elasticidade.
Se isso aqui fosse um texto de auto-ajuda, eu tentaria definir alguns filtros mais úteis e sugerir que vocês os usassem para ter uma vida mais feliz. Na verdade, seria até fácil reescrever a mesma ideia como uma “pérola de sabedoria” e empurrar conceitos como temperança, confiança e desapego como exemplos de filtros para não tomar decisões danosas na vida. Mas para isso existe o resto do mundo. Como eu não tenho o filtro do altruísmo ditando os rumos desse texto, prefiro falar sobre o perigo de tratar filtros como pensamento pré-fabricado e torná-los suas opiniões.
Como estou definindo o filtro como algo que elimina carga desnecessária de pensamento, eles podem se misturar sorrateiramente com suas opiniões. Opinião não é necessariamente conhecimento prévio, é um conjunto de análises que não precisa estar baseado em fatos consolidados. A minha já conhecida opinião que religião atrasa a humanidade é baseada em conhecimento prévio sobre situações históricas de intolerância e repressão de pensamento livre, mas também depende de “futurologia”; considerando que sem ela teríamos uma população mais propensa a buscar soluções práticas para os problemas que enfrenta, com mais foco em ciência e razão. E por mais que eu goste da ideia, é uma análise especulativa sobre o futuro. Existem bom motivos para acreditar que a religião seja um freio que evite a nossa auto-destruição. Eu sei que essa possibilidade existe, mas escolho apostar em outra. Seja como for, a minha opinião sobre religião não pode ser chamada de filtro, ela não impede que eu desenvolva uma análise inútil sobre a realidade, só reforça um modelo de mundo que me soa mais agradável.
Opinião não é filtro, e vice-versa. A opinião modifica sua percepção do mundo através de uma lente idealista, o filtro é essencialmente prático. Mantendo o tema, um filtro seria não calcular junto com o resto a possibilidade da existência de uma divindade, por exemplo. Por mais que a existência de deuses navegue num “triângulo das Bermudas da lógica” e não possa ser provada ou refutada com certeza, o filtro resultante da ideia pode-se basear em conhecimento prévio e reprodutível sem fazer presunções “queridas” sobre o futuro. É uma noção presente, tendo eu certeza ou não dela. E sim, para muita gente é exatamente o contrário: considerar a não-existência é tão estranho ao modelo de percepção do mundo que vale a pena filtrar possibilidades que considerem isso.
A diferença pode parecer sutil – ainda mais sendo escrita por alguém que não preza pela didática – mas não é. Opinião é escolher servir um prato que você gosta, filtro é focar num que você sabe fazer direito. Se você deixa de pensar em algo porque quer que a realidade adapte-se à sua vontade, está transformando opinião em filtro. Se você deixa de pensar em algo porque te parece que não vai te dar uma resposta útil, aí sim é um filtro. Não existe prazer inerente ao filtro, ele é uma confissão íntima de incapacidade. Mera ferramenta para conseguir analisar as próximas jogadas sem o ruído da infinidade de possibilidades que formam nossa vida.
O prazer deveria ser resultante de fazer o trabalho e conseguir tirar o melhor da situação. Sair do processo com mais do que entrou. E por que isso parece tão complicado? O gerenciamento de seus filtros é um processo que muitos fazemos automaticamente, sem jamais dar a ele o valor necessário; até por isso vemos tanta gente cuspindo argumentos limitados e tomando decisões abismais mesmo tendo, em tese, capacidade para muito mais. Justamente o que precisava ser considerado, não é.
E por tabela, isso também explica muitas das visões incongruentes que às vezes fazem morada dentro do mesmo crânio. Um filtro mal colocado corta relações entre ideias antes mesmo que elas possam ser criadas. Filtros devem ser consistentes entre os mais diversos temas que precisamos tratar na vida cotidiana: hipocrisia não deixa de ser um conceito abandonado cedo demais numa sequência de pensamento. Talvez quando aquele tema venha à tona, venha poluído por opiniões travestidas de filtros.
Parar de pensar num assunto é uma ferramenta importantíssima em nossas vidas, limando o desperdício de processamento e nos tornando mais focados no que realmente nos importa. Mas é sempre um processo que exige atenção: aquela probabilidade está sendo descartada por ser mesmo desnecessária ou porque ela nos incomoda? Que o cérebro vai continuar processando e filtrando de qualquer forma, ele vai, é assim que as coisas funcionam, mas isso não quer dizer que seja algo que possa ser deixado puramente no automático.
De uma certa forma, o ideal é não filtrar a análise dos filtros. Não precisa estar sete jogadas na frente, mas é bom saber as regras do jogo. Até porque a próxima pode ser um xeque-mate…
Geralmente evito comentar os textos do Somir quando os leio. Apenas quando os estudo.
Fez lembrar o desafio do Garry Kasparov contra o Deep Blue, em que o mestre russo ganhou em 1996 e perdeu em 1997. Em 1997, Kasparov alega ter perdido porque quem operava a Deep Blue (técnicos e outros mestres do xadrez contratados pela IBM) fazia o filtro das jogadas sugeridas pelo programa.
Eu adoro esses textos que não entendo a metade! Hahaha, zoeira. Vou pensar melhor nisso nas próximas 7 vezes…
Muito bom! Mas seja mais didático! Pelo bem da humanidade! kkk
Esse texto me lembrou o filme O jogo da imitação sobre o Alan Turing.
Ele desenvolveu uma máquina para tentar descobrir o código necessário para ler as mensagens nazistas na guerra. Através de filtros, ele conseguiu direcionar os cálculos e assim, economizar processamento de dados. Desse modo, a máquina prosperou.
repito muito bom texto
O que você chama de filtro, se eu entendi direito, eu chamo de: A arte da sublimação.