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Vida feia.

Vida feia.

| Somir | | 14 comentários em Vida feia.

Um dos meus maiores problemas com o conceito de “Céu” é a felicidade eterna. Imagine não ter mais nenhum problema e sentir-se satisfeito o tempo todo, para sempre? Imagino que é o muita gente nesse mundo imagina ser o prêmio ideal para uma existência conflituosa e muitas vezes injusta, mas… para sempre? Se não existe mais o feio, tudo é bonito ou tudo é medíocre? Eu aposto mais na segunda hipótese.

Já falei desse tema num Des Contos antigo sobre um futuro (talvez nem tão distante) onde todos seriam geneticamente perfeitos e saudáveis. A moda entre os adolescentes então seria adicionar cicatrizes e defeitos em seus corpos. Mas eu não trabalhei o conceito como mera rebeldia, porque acredito que seja mais do que isso: no fundo mesmo, temos tanta atração pelo feio e pelo trágico como temos pelo belo e o romântico. A única coisa que muda é a prevalência deles na nossa realidade.

A vida é “feia” na média. O orgânico tem seus momentos de agrados sensoriais, mas até a modelo mais atraente é capaz de interditar um banheiro! Todo mundo é mais ou menos repulsivo por igual por dentro. Estética é um conceito complexo e secundário na vida. Primeiro tem que funcionar, depois pode ser agradável, mas sem obrigação nenhuma.

O que eu argumento aqui é bem mais do que “é conhecer o feio que torna algo bonito em comparação”, é uma teoria (provavelmente maluca) que tudo o que envolve vida é atraente mais ou menos por igual, a única coisa que nos especializou na busca pelo belo e pelo justo (conceito personalíssimo) é a lei de oferta e demanda. Não há nada de intrinsecamente belo em um crânio aberto num acidente de carro, mas a estrada sempre fica mais lenta pelos carros desacelerando para ver melhor o desastre.

Porque nesse contexto de tratar repulsa como uma atração mal resolvida muita coisa começa a fazer sentido nesse mundo. Desde aquela pessoa que adora ver pústulas cheia de pus estourando até mesmo coprófilos derivando enorme prazer de seu fetiche. Talvez tudo isso seja nosso em geral. Talvez todo mundo possa aprender a gostar das coisas mais horríveis e nojentas que a humanidade faz (e frequentemente nos deixam confusos). Eu sei, eu sei… é uma ideia de difícil digestão. Mas nada tema, é só uma ideia. A vida e tudo o que gira ao redor dela nos é extremamente atraente. Inclusive a parte horrível. E não estou falando só do que é físico…

Uma das minhas palavras preferidas no mundo é “schadenfreude”, do alemão. Significa o sentimento de derivar prazer da tragédia alheia. Não se traduz perfeitamente para o português, mas traduz bem algo muito humano. Eu vou mais longe aqui: não enxerguem esse prazer como algo necessariamente odioso, não é só querer ver outra pessoa que você não gosta sofrendo. É muito do que eu estou propondo sobre a atração pelo feio, pelo trágico. A história triste te faz sentir mais vivo, a empatia gera um prazer de “existência”, mesmo no sofrimento.

O que há de feio e trágico na vida é muito do que nos prende a ela. É onde achamos um chão, um terreno comum com quem enfrenta os mesmos desafios e nos faz nos sentir um pouco menos sozinhos. Uma das condições mais torturantes da consciência é o isolamento: tudo é resultado de estímulos interpretados. O Universo está todo na sua cabeça e não há nenhuma escapatória disso. Bom, pelo menos se você exige um mínimo de método científico no que escolhe acreditar. É no entendimento da morte, por exemplo, que finalmente se começa a notar a vida. O que nos incomoda nos dá suporte.

Repulsa (psicológica) é uma construção nossa para manter a busca pelo raro viva. Claro que o corpo humano é feito para rejeitar muita coisa que faz mal, a evolução cuida disso. Sem a rejeição ao feio, talvez ficássemos presos demais ao “utilitarismo” e jamais tivéssemos nos tornado o que somos agora. A busca pelo que é belo e justo nos move rumo aos destinos mais complexos, nos faz gastar muito mais energia do que o estritamente necessário. Humanos gostam muito de sal e açúcar porque nossos antepassados penavam para conseguir, por exemplo. E quem se esforça mais para conseguir alguma coisa com certeza tem mais chances de seguir em frente na evolução.

Se ainda não parece que estou indo para alguma direção com esse texto, tento esclarecer: estou separando tudo entre comum e raro. Beleza, feiúra, felicidade e tristeza… queremos o raro. Somos descendentes diretos de quem procurava o raro, e essas maçãs não caíram longe da árvore. A mesma lógica de quem se encanta pela beleza funciona para quem se encanta pela feiúra (e o nojento). E eu, talvez dessensibilizado pelos horrores da internet, começo a desconfiar seriamente que não há vantagem clara para nenhuma das preferências, desde que exista o fator da raridade.

Por isso eu volto e explico a única instância de “feia” com aspas neste texto. Justamente ao falar da vida em média. A média é comum, não é bonita nem feia. Seja lá o que te move, não aposte que está nessa média. O horrendo nos prende à existência, o encantador nos mostra que ela pode ser melhor. O resto – a grande maioria – é apenas a sopa primordial que permite o nascimento de ambos. O “Céu” é algo estranho por tirar de nós o médio, justamente a vida. Evidente que eu não estou escrevendo o texto apenas para enfraquecer um conceito de crenças que acho ridículas, mas muitos de nós nos perdemos às vezes com ideias parecidas.

Ideias de perfeição. Excesso de limpeza, por assim dizer. Seja no que os sentidos te trazem, seja no que a mente faz com esses estímulos. No final das contas, o “Céu” é um conceito limitado no que pode nos oferecer. A busca pelo o que é belo, nobre e justo com certeza deve fazer parte do que nós somos, mas negar a atração do lado feio da vida é furtar-se da capacidade de “estar aqui” para vivenciar o que buscamos. A escrotidão da vida é aquele cheiro pungente que nos acorda de qualquer sono.

E uma das condições primordiais para sentir o que a vida nos oferece… é estar vivo. Vivemos num mundo tão abarrotado de pessoas esperando por um prêmio depois da vida que acabamos ancorados numa noção de que o feio é passageiro, que tudo vai melhorar consideravelmente e isso aqui não passa de um pedágio. O que talvez explique bem a dificuldade de evoluir e lidar com os próprios problemas. Abandonar o conceito de beleza e felicidade perenes – mesmo que como prêmio do além-vida – significa também colocar os pés no chão e assumir-se responsável pela busca. Justamente a função da “feiúra”.

A vida? A vida é média.

Para dizer que eu claramente não sei mais do que estou falando, para dizer que sente-se motivado e desmotivado ao mesmo tempo, ou mesmo para dizer que eu devo rir muito quando escrevo essas coisas: somir@desfavor.com


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