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Pequenos perigos.

Pequenos perigos.

| Desfavor | | 59 comentários em Pequenos perigos.

Mais uma da não hipotética série “Filhos dos Outros”: imagine-se vendo uma criança desconhecida prestes a fazer algo perigoso em lugar público. Imagine também que você não está em condições de filmar. Sally e Somir discutem até onde o problema alheio é alheio. Os impopulares fazem manha.

Tema de hoje: Intervir se uma criança estranha estiver fazendo algo perigoso em público?

SOMIR

Sim. Ok, provavelmente se eu estiver na situação de única testemunha, sabem como é… difusão de responsabilidade em multidões é uma força poderosa. Mas estando ao meu alcance e eu sendo provavelmente a melhor opção para evitar que uma criança se arrebente ou morra, sim, eu intervenho. Nem que seja um berro.

Trabalhemos com o conceito de imediatismo dessa cena: é reflexivo notar o perigo mesmo se é outra pessoa correndo-o. Lembro de uma vez que estava no alto de um precipício com mais vários turistas, eu estava fazendo o certo deitado sobre a borda apenas com a cabeça para fora, observando a paisagem. Um maconheiro genérico resolveu vir até a mesma borda, mas “corajosamente” de pé diante de uma queda inescapavelmente fatal. Ele parou do meu lado, fez uma graça e perdeu o equilíbrio. Naquela fração de segundo, meu braço pareceu se movimentar por conta própria para tentar segurá-lo. Ele logo se reequilibrou. Eu tenho certeza que a humanidade só ganharia se esse cidadão caísse mesmo, mas naquele momento eu não pensei se era um cretino ou não, eu só tive o reflexo.

Porque essa merda está conosco, querendo ou não. Alguma coisa nos move para reagir ao perigo até mesmo com o outro. Um senso de preservação “genérico” que ignora méritos, só nos faz notar outro ser humano em perigo. E aí entra o conceito de fazer parte da máquina humana: as reações que você teria com o filho dos outros deveriam ser condizentes com as reações que você queria que os outros tivessem com os seus. Eu pessoalmente não quero filhos, mas isso não me exclui totalmente, já fui criança. Não me lembro, mas já posso ter sido protegido por algum adulto estranho na rua.

Pensando na criança, fazer o quê? Assim como eu fui um completo imbecil inconsequente quando pequeno, todos são. Questão de maturidade. Criança faz merda. Não precisa ser muito simpático aos fedelhos, assim como eu nunca fui, mas há de se entender que não é um bêbado barbado correndo no meio da rua, é alguém que tem desculpas muito melhores para colocar a vida em risco, até por não entender ainda direito essa coisa de mortalidade… não acho criança necessariamente coisa linda de deus, mas aceito que se alguém pode ganhar passe livre para fazer merda nesse mundo, que sejam elas! O cérebro em formação explica.

Agora, é claro: cadê os pais que não estão cuidando? Isso é sério. Não faltam pais cretinos por aí que colocam os filhos no mundo para se distrair com todo o resto. Criança é um sacrifício, criança exige atenção. Tem que estar sempre tomando conta ou deixando com quem se acredite responsável. Criança solta é coisa dos meus tempos (no interior) e talvez de criança de condomínio fechado, o resto precisa de supervisão constante. Estão sempre em ambientes pouco controlados. É feio deixar o filho xexelento sair correndo desembestado do nada na rua? É. É ainda pior que sejam aqueles tipos malditos que só berram e nem correm atrás? Muito. Mas, é culpa do fedelho ou fedelha? Se eu tivesse pais assim, também correria.

Novamente, não advogo se jogar na frente de um caminhão para salvar alguém que estatisticamente provavelmente não vai curar o câncer ou desenvolver a dobra espacial, mas, porra, nem que seja para dar um tapa na orelha para distrair. Já está lá, vai tomar a decisão fria de ver uma criança sofrendo? É o quê? Vídeo-cassetada? Isso deve ficar guardado na cabeça por muito tempo. Eventualmente deve pesar a ideia de que a criança pode ter morrido porque você não levantou um dedo! Tudo bem que o problema não é meu, é dos pais possivelmente ausentes, mas… eu não prego omissão na hora de lidar com situações limite assim.

E sempre existe o risco da criança estar sem supervisão por motivos maiores do que mera preguiça paternal. Crianças correm mais que adultos em situações ideais. Elas negociam obstáculos melhor pelo menor tamanho, não cansam por virtualmente nada… e sempre tem a possibilidade de ter acontecido algum problema com os adultos responsáveis que os impossibilita de reagir naquela fração de segundo onde se percebe no dilema do texto de hoje. Ao invés de julgar os pais e decidir se a vida daquela criança merece ou não ser continuada, não seria mais simples dar um berro e avisar que algo está acontecendo?

Eu vivo julgando os outros, até me divirto assim, mas sério que isso é mais importante que vidas? Não importa quem seja, é importante pra alguém. E se você pode resolver esse problema sem ter que mudar muito seu rumo, qual a dificuldade? Ajuda-se a criança. Se quiser, dê bronca nos pais. E mesmo que esses pais sejam efetivamente relapsos e coloquem essa criança em risco outras vezes, sua parte nessa história já acabou. Controlamos o que temos acesso, e é racional não considerar tudo caso perdido antes de ter uma noção melhor sobre os fatos.

Vai pelo reflexo. Vamos manter esse reflexo funcionando, porque um dia pode ser você ou uma criança querida precisando do reflexo. Tem muita coisa da humanidade que eu adoraria mudar, mas esse senso de preservação coletivo não é um deles. Existem outros jeitos de reduzir a população mundial, bem mais úteis do que deixar uma criança virar pizza no asfalto por vez.

Intervenha. Nem que seja para gritar com uma criança com proteção social…

Para dizer que prefere ficar filmando mesmo, para dizer que normalmente você é o perigo para as crianças, ou mesmo para dizer que eu sou um bom samariotário: somir@desfavor.com

SALLY

Ao perceber que uma criança desconhecida, em um ambiente público, está fazendo algo perigoso, você intervém? NÃO.

Mães são bichos complicados. Eu não tenho medo de bandido, eu não tenho medo de barata, mas eu tenho medo de mães. São criaturas que me parecem loucas, jamais vou entender o que acontece com o cérebro de uma mulher quando ela se torna mãe. Justamente por isso, tento não intervirnesse setor: cada um cria e cuida dos seus filhos como quiser, já fiz minha cabeça, isso não é problema meu e eu não vou me meter. Boas intenções não valem de nada, as reações costumam ser as mais assustadoras.

Já me meti para intervir em situações onde eu julgava perigosas para crianças e me arrependi. Mães entendem tudo como crítica à sua maternidade e ficam especialmente sensíveis e histéricas quando se trata de seus filhos (vide o texto sobre o lado negro da gravidez). Colocou no mundo? Vigia, vigia 24h por dia, e boa sorte, pois criança se você vira as costas um segundo, faz merda. Boa sorte vivendo assim, guardiã de alguém sem discernimento por anos. Não tenho a menor intenção de me meter para aliviar uma tarefa que não é minha, para ainda, correr o risco de despertar putez. Filho de conhecidos eu cuido e salvo, filhos de estranhos não. Estranhos que se virem.

Você empresta dinheiro a um estranho quando ele está endividado? Não, né? “Mas é diferente, não tem risco de vida”. Ok, e se o filho de um estranho estiver passando fome, com risco de vida, você empresta dinheiro a um estranho? Não. A pessoa botou filho no mundo, a pessoa que se vire, certo? Pois é, meu tempo vale até mais que meu dinheiro. Não me meto e não sinto um pingo de culpa por não me meter. E acho muita cara de pau de mães reclamar que uma estranha não se meteu a fazer algo que era sua obrigação.

Mais: na hora de exaltar as maravilhas e as delícias da maternidade, as mães enchem a boca. Então segurem o ônus também. Não intervir para corrigir um desleixo da mãe não faz de mim uma má pessoa, faz delas, e somente delas, mães incompetentes, que permitiram que sua cria fique em situação de perigo. Não está em mim essa obrigação. Joguem pedras, hoje eu vim para apanhar mesmo!

A criança efetivamente se machucou? A mãe é tão merda que deixou seu filho ficar em uma situação tão de risco que até uma estranha desinteressada como eu tinha percebido? Beleza. Vou socorrer. Aí não tem encheção de saco, ninguém te perturba por socorrer um ser humano já ferido, muito pelo contrário, te agradecem. Com isso eu posso lidar. Deixar uma criança sangrando até a morte não é algo que eu gostaria de ter no meu currículo. Todos nós temos o dever moral de socorrer uma pessoa que se machuca, mas não acho que tenhamos o dever moral de exercer vigilância paternal sobre uma criança.

Pessoas que tem filhos terão alegrias que eu sequer posso começar a imaginar. Terão um sentimento de amor que eu nunca vou experimentar em toda a minha vida. É a premissa Homem Aranha: com grandes poderes, grandes responsabilidades. O amor e a alegria de ter um filho não são divididos comigo, por qual motivo as pessoas acreditariam que eu vou participar do ônus que essa criança gera? Não vou.

“Mas Sally, você não vai se sentir culpada por deixar uma criança se machucar?”. Não, pois sua premissa está errada. Eu não estou deixando nada, quem está deixando são os pais, ou o irresponsável ao qual erroneamente os pais confiaram a guarda da criança. Não está em mim. Se eu começar a me responsabilizar por estranhos, em breve estarei amargurada por cada problema que acontecer com desconhecidos. Tracei uma linha clara: não me preocupar com aqueles que tem quem zele por eles. A criança tem pai e tem mãe? Mamãe está focada no celular enquanto a criança se pendura da varanda? Na boa? Foda-se.

Eu tenho uma visão mais global da coisa. Se uma criança cai da varanda e vira patê enquanto mamãe estava no smartphone, isso vira notícia e milhões de outras mamães vão pensar duas vezes antes de ficar no smartphone em vez de olhar seus filhos. Essas cagadas evolutivas dão um sacode na sociedade e fazem a mandada correr um pouco mais rápido. Eu vejo uma utilidade na coletividade para uma tragédia assim.

Por exemplo, hoje eu vejo pais mais atentos em não esquecer seus filhos dentro do carro, alguns shoppings até colocam avisos nas cancelas de entrada, na forma de uma gravação, lembrando os pais de não esquecerem seus filhos dentro do carro. Sim, existe um utilitarismo global em uma criança se foder muito, ajuda a prevenir que outras crianças sejam negligenciadas naquela área.

Eu já tenho problemas o suficiente, filho dos outros não é problema meu. Aprendi a cagar baldes para filho dos outros e foi libertador conseguir fazer isso. Culpa eu tenho das coisas pelas quais eu sou responsável, e definitivamente filhos dos outros não são minha responsabilidade. Qualquer coisa que eventualmente aconteça com os filhos de desconhecidos não se tornam culpa minha pelo simples fato de que eu poderia ter evitado mas não evitei. Estranhos não podem contar comigo na equação para cuidar de seus filhos.

E, de mais a mais, Darwin estava certo. Tem que deixar morrer os genes idiotas, para que eles não proliferem pelo mundo. Pronto, acabei. Comecem a me xingar…

Para torcer para este texto viralizar tanto quando o da gravidez, para dizer que não só não socorre como ainda colabora para colocar os filhos alheios em risco ou ainda para se admirar por Somir ter um instinto maternal maior do que o meu: sally@desfavor.com


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