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Pergunta torturante.

Pergunta torturante.

| Desfavor | | 21 comentários em Pergunta torturante.

22:02 – Você está de posse de um terrorista que sabe onde está uma bomba prestes a explodir e matar muitos inocentes.
22:26 – O terrorista se recusa a dizer aonde está a bomba.
23:00 – Você descobre que a bomba vai explodir em exatamente uma hora.

Tema de hoje: Você torturaria o terrorista para ele dizer onde a bomba está?

Tic. Tac. Tic…

SOMIR

Tivemos outro dilema moral não faz muito tempo. Também envolvia sacrificar uma pessoa para o bem de várias outras. E eu vou dar uma resposta parecida: sim, eu torturaria o terrorista.

Mas não, não é o mesmo dilema. Daquela vez eu acreditava estar fazendo o certo por um bem maior. Dessa vez eu digo que faria o errado. Tortura costuma estar numa escala de repulsividade ainda maior que o assassinato, pessoas que passaram por essa experiência raramente não desenvolvem traumas pesados e duradouros. Causar sofrimento deliberado em outro ser humano que não te ameaça pessoalmente no momento é provavelmente a epítome da podridão de nossas mentes.

E mesmo assim, eu faria nesse caso. Sabendo que é errado. Sabendo que deixaria marcas perenes em mim. Mas essa série de complicações provavelmente é muito específica de gente… como eu. E provavelmente muitos de vocês. Mas não sejamos inocentes: a tendência é que a maioria das pessoas fizesse isso sem o menor problema. Não canso de ver e ouvir por aí gente dizendo que deveriam torturar qualquer um que roubasse uma galinha nesse mundo! O ser humano médio é bem brutalizado.

Só é um dilema de verdade porque somos eu a Sally argumentando e conhecemos vocês o suficiente para saber que tem muitas cabeças pensantes nos acompanhando. Em qualquer outra situação, eu faria a Sally sofrer uma derrota retumbante com poucas linhas:

“Bandido faz o que quer, bandido tem o que merece. Se não tivesse colocado bomba, não seria torturado. Eu vou ter dó de um filho da puta que está disposto a matar um monte de inocentes? Ele que se foda! Vai apanhar e sofrer até fazer alguma coisa certa e salvar toda essa gente. Eu não sou o bandido! Eu não fui na casa dele torturar ele, eu não estou fazendo nada contra um inocente! Ele fez merda, ele tem que pagar por isso. Torturo sim! E se fosse alguém da sua família ameaçado pela bomba? Você não ia querer alguém como eu do lado do bandido?”

E sei não se eu disfarçasse esse mesmo argumento num texto mais habitual… mas eu não vou fazer isso. Eu quero te convencer do meu ponto de vista, mas vai ser nos termos que eu me proponho. Não é assim que a humanidade deve se portar, temos que tomar decisões éticas complexas e pouco intuitivas para realmente avançarmos como sociedade. Tortura é imperdoável. Mas quem disse que eu quero ser perdoado pela minha decisão? Tem uma diferença gigante entre confundir certo e errado e fazer o errado conscientemente.

A sociedade depende de ideais éticos difíceis para alcançar bons resultados. Mas as escolhas racionais resultantes desses ideais geram uma grande pressão no sistema como um todo. A repetição de ações pouco intuitivas para o naturalmente violento ser humano é arriscada. Ou gera uma reação poderosa no sentido inverso, ou começa a modificar demais nossa natureza. Ou a panela de expressão explode, ou o que está lá dentro para de cozinhar. Nem muita pressão, nem pressão de menos.

Justamente por isso precisamos saber quais são os pontos onde vamos interferir nesse processo. Quando a pressão é demais para você? Quando é hora de levantar o bico e deixar um pouco do vapor sair? Eu quero viver numa utopia de paz e respeito pelos direitos humanos, mas sempre vai existir algum ponto fora da curva que exige atenção e não pode ser tratado de acordo com nossos ideais. Essa é uma preocupação válida e de forma alguma me faz deixar de lado opiniões pregressas sobre tratamento digno até mesmo de quem quebra a lei. Mas eu também acredito que uma parte integrante de ter um ideal é conhecê-lo. Jamais trate suas crenças de forma dogmática. Permita e compreenda a existência de exceções em suas regras, elas vão estar lá mesmo que você as ignore.

Eu não torturaria alguém por prazer. Eu não torturaria alguém por vingança. Eu não torturaria alguém por ganhos financeiros. Mas eu torturaria alguém para evitar que uma bomba matasse vários inocentes. Evidente que tudo em tese, talvez eu não tivesse estômago para fazer isso na hora H. Talvez eu prefira acreditar que eu talvez não tivesse estômago para fazer isso na hora H. Seja como for, há uma regra, mas há uma exceção. A exceção não me faz achar menos aberrante o ato de torturar, mas me parece uma troca aceitável. Eu creio que pagaria esse preço para evitar a culpa de ter as mortes dessas pessoas na minha conta. E porra, eu me sentiria heróico (provavelmente em segredo). Sim, é egoísta. Claro que é egoísta.

Quando você conhece a regra e a quebra com toda deferência necessária, a falácia do escorregador vira ainda mais falácia. E percebam que eu estou sempre falando de mim, e não de um possível cargo que me colocaria nessa situação. Se eu estivesse representando o Estado, eu não torturaria. O Estado não tortura ninguém, e se perdermos essa noção, temos os horrores que tivemos por toda a América Latina nas últimas décadas. A redução ao comportamento bárbaro é algo pessoal e intransferível. Eu acho que me demitiria antes de fazer, ou talvez até desistisse. Eu como indivíduo posso tomar o caminho errado porque eu posso ser punido depois e julgado de forma imparcial, o Estado não.

Eu faria. Aceito o julgamento por essa opinião. Mas antes de ir, eu só quero deixar mais uma coisa para vocês pensarem: tome muito cuidado se você não consegue enxergar o dilema. Se uma opção parece fácil demais, alguma coisa não está suficientemente amadurecida no seu ponto de vista. Digo isso para os que fariam sem hesitar principalmente, mas… mesmo se você está seguro demais que não faria… tem certeza que você entendeu direito o que está em jogo?

Para dizer que só leu o parágrafo falso e concordou, para dizer que eu ando vendo muitos filmes, ou mesmo para dizer que eu sou muito BM nesses dilemas: somir@desfavor.com

SALLY

A situação: você está em poder de um terrorista que colocou uma bomba em algum lugar desconhecido. A bomba será detonada em uma hora. Você, sozinho, sem atuar em nome do Estado ou de ninguém, tem o terrorista nas mãos e ele se recusa a dizer onde está a bomba. Você o tortura para obter essa informação? NÃO.

Eu poderia passar muitas linhas falando da hediondez da tortura, mas nem vou, pois os valores hoje estão tão escaralhados que vai ter quem ache aceitável cometer uma atrocidade para salvar vidas se eu levar para o lado dos valores. Então, vou ser muito mais direta: eu não sou capaz de torturar alguém assim, de “cabeça fria”. Não basta achar que é a melhor solução, você tem que ser capaz de torturar alguém.

Talvez alguém que tenha matado um ente querido meu, um parceiro que tenha sido flagrado me traindo ou qualquer situação em que o sangue ferva abrissem essa porta que hoje está trancada. Não vou dizer que eu nunca torturaria alguém, todos nós temos um lado negro que só conhecemos verdadeiramente quando aflora e, por sorte, eu não vivi grandes tragédias na vida para conhecer a plenitude do meu. O que posso dizer é que nessa situação, diante da morte de desconhecidos, não se destravaria o mecanismo que me impede de torturar, eu não seria capaz.

Sejam adultos. Não basta pensar no que acha mais correto ou no que parece ser a solução mais proveitosa. Você seria capaz de torturar uma pessoa? Escutar seus gritos, ver suas feridas? E tudo isso para, quem sabe, nem conseguir uma resposta? Eu não sou capaz. Eu tenho uma trava moral/ética que me torna impossível torturar alguém se eu não estiver totalmente fora de mim. É uma porta perigosa torturar em nome de algo bom.Hoje se abre essa porta, amanhã se tortura por menos.

Cresci em um lar ateu, o que me rendeu muito sofrimento no país com a maior concentração de católicos do mundo, mas se tem uma coisa de bom que essa criação me deu foi não sentir culpa cristã. Nunca na minha vida senti essa culpa cristã. Já vi ateus que cresceram em lares católicos não conseguirem se livrar dessa culpa, mesmo sabendo racionalmente que ela não deveria estar ali. Eu não tenho essa culpa cristã de pensar que as pessoas vítimas da bomba morreram por minha causa. Isso é coisa de herói de quinta de roteiro barato.

As pessoas morreriam por um único motivo: um terrorista idiota colocou uma bomba. Ponto. Não sou o Batman para combater o crime. No caso, se quiserem, basta me dar uma fortuna similar à dele que tem jogo. Por enquanto, não sou heroína. Foda-se a culpa cristã, eu não tenho a menor obrigação de me violentar para salvar vidas. Vamos colocar a coisa da seguinte forma: você toparia ser estuprado para que 50 pessoas não morressem? Eu não toparia. E torturar alguém representa uma grande violência contra mim mesma, não vou fazer isso enquanto tiver juízo e escolha.

“Ahhh mas as pessoas vão morrer!”. Sim. Vão morrer. O mundo é um lugar horrível e tem disso, gente doida que mata sem motivo. Não sou a sacrificar minha sanidade, meus valores e meu bem estar para salvar 50 cabeças que em nada vão mudar o cenário mundial. Outros 50 morrerão no dia seguinte vítimas de outro atentado. Eu não vou salvar o mundo. Eu não quero salvar o mundo. Já falei, se me querem heroína, providenciar uma fortuna.

Pode parecer egoísta, mas não me serve de nada 50 estranhos vivos e eu para sempre sem conseguir colocar a cabeça no travesseiro lembrando do que eu fiz. Em tese parece muito simples torturar alguém, mas na prática é feio, é sujo, é traumático. Não tem desculpa racional que apague esse momento sórdido da existência humana. Não, obrigada. Sou muita coisa ruim e errada, mas torturadora eu não sou e espero nunca ser.

Acho tortura uma das coisas mais baixas que um ser humano pode fazer. Eu mataria alguém, mas não seria capaz de torturar. Tortura é basicamente uma grande covardia. “Mas matar pessoas com uma bomba também!”. Ok, se o terrorista quer ser um covarde filho da puta, ele que fique à vontade. Eu não sou. E também não sou uma pessoa que justifica seus erros apontando o erro dos outros. E você também não deveria ser, evolua.

Se é que houve uma falha, falhou quem estava sendo pago e tinha treinamento, meios e experiência para cuidar da segurança daquela sociedade, do local onde a bomba foi colocada. Eu sou uma nobody que não te a menor obrigação de arrancar informação nenhuma, muito menos de sujar as minhas mãos para isso. A situação não estava nas minhas mãos, estava nas mãos de quem tinha o dever de zelar pela segurança da sociedade. Eles falharam e não eu. Tortura não é resposta nem solução para nada, muito pelo contrário, te rebaixa ao nível de quem fez a merda.

O terrorista tortura? Certamente, aos montes. Mas ele, para mim, é um doente. E eu tenho a noção muito clara que eu não sou. Se eu for me rebaixar a casa ato vil que as pessoa cometem, vou me transformar em um monstro, afinal, eu (infelizmente) vivo no Brasil. Se o terrorista tortura, é problema dele. Eu não sou uma terrorista e o que ele faz não me serve de aval para fazer ou deixar de fazer nada. Se deixar guiar pelos atos dos outros é medíocre, eu me guio pelos meus valores, foda-se o que o resto do mundo está fazendo ou pensando disso. Quem passou por uma faculdade sem beber vai me entender.

Se o preço é esse, eu perder minha paz, minha humanidade, ficar para sempre com um peso na consciência, eu não pago. Não por estranhos, desconhecidos. Tenho muito orgulho de afirmar que, apesar de todos os meus defeitos, uma torturadora eu não sou. Trabalho com a hipótese de tortura em um estado de insanidade temporário tomada por violenta emoção, mas de tortura como meio, como escolha? JAMAIS.

Para me chamar de hipócrita por já ter te sujeitado a assistir obras da Tom Produções, para dizer que tortura por prazer mesmo que não exista bomba ou ainda para ter pela primeira vez a dimensão do quanto Somir é mais perigoso do que eu apesar de ser tão calminho: sally@desfavor.com


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