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No das outras…

No das outras…

| Desfavor | | 46 comentários em No das outras…

+Nos últimos dias, a gravidez de uma menina de 10 anos, que foi estuprada pelo padrasto no Paraguai, ganhou destaque na mídia internacional. A mãe denunciou o caso às autoridades e pediu permissão para a realização do aborto. De acordo com o jornal O Globo, o pedido foi negado e a mãe acabou presa, em caráter preventivo, acusada de ser cúmplice do abusador e de ter faltado com os cuidados devidos na atenção à menor.

Paraguai, que lugar atrasado… opa, peraí…

+Segundo o levantamento feito com mil pessoas com mais de 16 anos em 70 cidades de todas as regiões e classes sociais, sete em cada dez brasileiros são contra a qualquer forma de aborto. (…) Mas o dado mais chocante da pesquisa é outro: 44% dos brasileiros são contra o aborto nos casos em que a mulher foi estuprada.

Vamos falar de aborto de novo? Vamos! Desfavor da semana.

SOMIR

Tem coisas que eu simplesmente não entendo. Mais do que a decisão do juiz paraguaio, é como isso ainda é tema de discussão. Como é que não conseguimos desenrolar toda essa história de direitos reprodutivos até hoje? Como é que ainda é algo que realmente gera tanta polêmica?

Há algum tempo atrás eu usei uma abordagem parecida para falar sobre casamento gay. Se todo esse esforço para regular a genitália alheia fosse direcionado para algo como exploração espacial, eu estaria escrevendo este texto de Marte! A humanidade é obcecada por reprodução e tudo o que é (ou parece) relacionado. Milênios se passam e ainda estamos girando ao redor disso, e ainda por cima, em falso.

Se tinha algum ponto em tempos onde cada nascimento contava muito, esse não é mais o problema. O planeta lotou, não vamos mais ter problemas com falta de gente provavelmente por mais alguns milênios. E eu aposto que bem mais cedo do que isso já tenhamos tornado a morte obsoleta na espécie humana. Mas ei, estou indo demais para o futuro. Vamos ficar no agora mesmo.

Nosso mundo não combina mais com a mentalidade de espremer o máximo de descendentes de qualquer um que atingir idade reprodutiva, então qual a lógica de continuar forçando a barra nesse sentido? Deixa as pessoas mais livres para não ter filhos, seja em relacionamentos onde as gônadas sejam iguais, seja em permitir que uma mulher escolha se quer ou não ter um filho.

Mas a humanidade realmente anda a passos de formiga e sem vontade (sim, eu sei quem eu acabei de citar, tenso…), porque a mentalidade que impera é a do intervencionismo na reprodução alheia. Existem mil desculpas diferentes, mas evidente que tem a ver com a incapacidade das pessoas de pensar sobre seus pontos de vista. A opinião pronta que as religiões ditaram há milhares de anos ainda serve para boa parte da humanidade.

Não precisa ter motivo para ser contra o aborto, não precisa de motivo para achar que uma mulher estuprada tem que ter o filho do mesmo jeito… é muito mais fácil dizer que só está seguindo regras. Todo mundo pensando igual seguindo ideias que mal compreendem e francamente, nem se importam. Contra o aborto até ter que mandar a filha para uma clínica clandestina.

O problema dessas opiniões sem substância é que elas não valem nada. A pessoa age de forma contrária a ela num piscar de olhos porque nem fazia muito sentido na sua cabeça para começo de conversa. O brasileiro é atrasado e machista? Eu apostaria mais em ignorante. Até para ser atrasado e machista tem que pensar um pouquinho… é difícil pensar sobre uma gravidez resultante de estupro e ainda sim formar uma opinião racional sobre mantê-la.

A maior parte das pessoas não é liberal ou conservadora, a maior parte das pessoas nem pensa sobre o que está acontecendo ao seu redor. Não tem incentivo mesmo… repetir algo que já veio pronto de uma figura de autoridade como um padre ou um pastor combina muito mais com a mente flácida do ignorante do que o grau de escrotice necessária para punir a vítima achando tudo muito certo. É difícil montar esse argumento!

O problema é que ao mesmo tempo em que aceitamos esse total desinteresse por ter uma opinião racional, vivemos num sistema onde esse povo tem poder de decisão. Estão chamando um caminhoneiro bêbado para julgar o concurso de patinação artística! Se em dois minutos de conversa sobre um tema com alguém que sabe sobre o que está falando você fica irritado e/ou confuso, grandes chances de você ser completamente inútil para decidir qualquer coisa sobre ele.

Sei que estou batendo no problema básico de qualquer democracia, mas eu abri o texto falando sobre um problema generalizado na sociedade humana. Num mundo onde tanta gente enche a boca para se dizer humilde, falta humildade para reconhecer que não tem qualquer capacidade de participar de discussões complexas. Ou mesmo bom senso de entender que algumas coisas não nos dizem respeito. O que eu, que não engravido, tenho que decidir sobre o que as mulheres vão fazer na gravidez? Posso passar anos discutindo o assunto e até tentando convencê-las a seguir por um caminho ou outro, mas não é minha decisão.

É bizarro que o Estado se preste a esse papel ridículo de chancelar opiniões de uma maioria de completos ignorantes. E normalmente não faz: tanto que mesmo que se a maior parte da população brasileira dissesse que é favorável ao armazenamento de nitroglicerina em áreas densamente povoadas, a lei NUNCA mudaria para acomodar essa visão. As pessoas estão claramente falando besteira! Foda-se a vontade delas. Agora, quando o assunto é reprodução e quem vai pagar o pato é mulher ou homossexual, aí sim a Ciência é jogada pela janela, o bem estar da população é irrelevante e a vontade dos analfabetos (inclusive dos funcionais) é soberana! Se é para regulamentar os órgãos reprodutivos alheios, o mais importante é o que o povão acha (ou acha que acha).

“Olha, essa gente estudada até pode entender mais de química e física do que eu, mas quando o assunto é cu e buceta dos outros, EU sou autoridade!”

É o caralho.

E só isso.

Para dizer que gostou do final boca suja, para dizer que preferia que eu estivesse em Marte mesmo, ou mesmo para dizer que essa coisa de escolha é algo que colocam em nossa cabeça: somir@desfavor.com

SALLY

Desfavor tem sete anos (incompletos) de existência. Através dele pude perceber de forma concreta muitas mudanças sociais e comportamentais. O cotidiano registrado diariamente me permitiu acompanhar de perto muitas viradas de pêndulos desde seu primeiro momento. E, de fato, muita coisa mudou. Até mesmo coisas que eu não achava que mudariam tão cedo. Mas tem algo que não mudou. Bem, talvez tenha até piorado: a forma como a sociedade lida com aborto.

Em 07 de março de 2009 escrevemos um Desfavor da Semana sobre uma menina de nove anos que engravidou após ser sexualmente abusada pelo padrasto. A criança teve que fazer um aborto e o Arcebispo de Olinda não teve melhor ideia do que excomungar a menina de nove anos por ter atentado contra as regras da igreja. Uma barbárie, não? O estuprador continuava amparado no rebanho e a vítima excomungada. Anos se passaram e a coisa parece estar no mesmo pé quando o assunto é aborto.

Esta semana uma notícia chocou o mundo: no Paraguai, uma menina de dez anos engravidou após abuso sexual praticado pelo padrasto. Só que dessa vez não foi a igreja a levantar o “Não pode”, foi o Judiciário. Isso mesmo, não foi permitido à menina fazer um aborto, pois, segundo leis paraguaias, ele só é permitido para salvar a vida da mãe. E pelo visto a interpretação de “salvar a vida” é bem medíocre.

Quando o preconceito vem dos aplicadores da lei, uma sociedade está verdadeiramente fodida. O Judiciário, dos três poderes, é o que mais pode abrir portas e derrubar barreiras. Tanto o Executivo como o Legislativo funcionam em bando, é preciso uma maioria de muitos para votar e lá dentro encontramos um verdadeiro balaio de gatos, pois o povo não sabe votar. No Judiciário não, basta a interpretação corajosa e bem fundamentada de UM (ou de alguns poucos), que nem deveria ser tão difícil, já que se exige um notório saber para estar lá, e não o voto de uma cambada de idiotas sem critério. O avanço social nos tempos modernos quase sempre se inicia pelas mãos do Judiciário, se ele não for tão paumolenga, corrompido e cuzão como o nosso.

O Judiciário, sobretudo da América LatRina, se mostra retrógrado em relação a aborto. Apesar da lei ser categórica em afirmar que a vida se dá com o nascimento (o feto ter alguns direitos assegurados desde a concepção, quase tudo se condiciona ao nascimento com vida), isso não é aplicado. A lei brasileira tem mais do que embasamento para autorizar o aborto. Um aglomerado de células sem batimento cardíaco, sem sistema nervoso, sem porra nenhuma que o torne humano não é visto pela lei como gente.

Eu mesma cheguei a ganhar processos tidos como perdidos em caso de aborto por anencefalia nos meus tempos de advogada com o seguinte fundamento: se a lei de transplante de órgãos autoriza desligar os aparelhos de alguém, matar a pessoa e retirar seus órgãos em caso de MORTE cerebral, quão contraditório seria não autorizar a morte de alguém que nem cérebro tem? Ahhhhh os bons tempos onde ainda dava para argumentar de forma inteligente no direito brasileiro. Não existem mais. Se você acha que existem, se poupe de ter que recomeçar depois dos trinta, largue essa bosta de faculdade porque hoje o que ganha causas não é argumentação.

E o preconceito não vem só de dentro do Judiciário. Está instalado na cabeça do brasileiro médio, não importa o quão contraditório seja. As pessoas não entendem que aborto legalizado não é aborto obrigatório, só vai fazer quem quiser. A união gay não foi legalizada? Isso te obriga a sair dando o rabo? Mas não, as pessoas querem escolher seu próprio estilo de vida e impor esse estilo a todo o resto, porque o seu estilo é o único certo e verdadeiro. Tá puxado, viu?

SETE, em cada dez brasileiros são contra o aborto em QUALQUER CIRCUNSTÂNCIA. QUALQUER. Estupro, risco de morte para a mãe, inviabilidade do bebê… qualquer situação bizarra, insustentável que você consiga imaginar. Falta bom senso e também coerência aos brasileiros, já que é um país com altíssimo índice de realização de abortos, ainda que informais e clandestinos. Daí se depreende que esse povo é, basicamente, hipócrita: prega que não pode, que é feio, que é contra, mas na hora do vamos ver, muita gente faz.

Cruzando estatísticas de quantos abortos são feitos por ano (ok, admito, eu não tive competência para fazer, tive que pedir ajuda de uma pessoa da área), cerca de ME-TA-DE das pessoas que se diz radicalmente contra já fez ou já esteve envolvida ou conivente com um aborto. Vergonhoso. Calma que piora: nas classes mais baixas está o maior número de pessoas (51%) que se diz contra o aborto mesmo em caso de estupro, justamente os mais vulneráveis a este crime.

Eu sempre digo que se homem engravidasse, aborto já era permitido faz tempo no Brasil. Também sempre digo que se célula for vida, quem come ovo é criminoso. A estagnação ou, porque não, a involução social no que diz respeito ao aborto me chateia muito. É aquele tipo de ignorância que está por todos os lados, por todas as classes, e sempre permeado por hipocrisia. Conheço pessoas que se manifestam combativamente contra aborto apesar de já terem colocado sua filha para fazer um. Pessoas que discursam bonito quando pagaram três mil reais para sua amante abortar. Nojento.

Não vou aqui nem começar a argumentar as dezenas de motivos para não criminalizar o aborto. Quero focar em outra coisa: se ninguém concorda, ninguém faz, todo mundo acha monstruoso, por qual motivo temos um índice altíssimo de abortos realizados, que na verdade deve ser ainda mais alto e não sabemos em função da informalidade? É só ISSO que eu quero que me expliquem. O resto é convicção pessoal e entrar nela não me interessa.

Entra ano, sai ano, esse assunto continua estagnado, sem fazer progresso, quem sabe até regredindo. Todo o papinho que sustenta o discurso contra o aborto é contraditório: só Deus tem o direito de tirar uma vida, mas quando vão linchar um bandido, os contra o aborto bem que vão lá dar umas porradinhas para matar um rapaz que roubou um celular. Só Deus, né? Ahãn.

Ultrapassa o machismo. É uma forma de burrice, de cegueira social, de falta de bom senso em detectar e se envergonhar com uma contradição. Não quer fazer um aborto? ÓTIMO, NÃO FAÇA. Nem sei se eu mesma teria coragem de fazer. Mas porra, não força sua crença goela abaixo do resto do mundo. Pode ser? E lei brasileira autoriza a matar em outros momentos, se informem. Ou ao menos parem de ser hipócritas e comecem a agir de acordo com sua cagação de regras: filha de 15 anos engravidou? Assume. Amante engravidou? Assume. Esposa foi estuprada e engravidou? Assume e cria o filho de outro homem. É, não vai acontecer.

Para perguntar com deboche se semana que vem falaremos de pena de morte, para dizer que tudo já foi dito e apenas repetimos ou ainda para dizer que do jeito que as coisas estão deveria ter programa de milhagens para aborto: sally@desfavor.com


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