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Filhos do átomo.

Filhos do átomo.

| Somir | | 20 comentários em Filhos do átomo.

Normalmente quando eu tenho uma discussão um pouco mais “elevada” com pessoas religiosas, eu escuto perguntas do tipo “Então você acha que tudo isso aqui é só um acidente?”. E por tudo, querem dizer tudo mesmo: universo, vida, pensamento abstrato… Lembro-me de responder que sim para a maioria delas, afinal, eu não acredito num criador. Mas, pensando bem… está na hora de mudar essa resposta. Não, isso tudo aqui não é só um acidente.

Tem uma frase que eu adoro sobre o Universo: “Dado tempo suficiente, o hidrogênio vai começar a se perguntar de onde veio e para onde vai”. Até onde eu sei, é atribuída ao astrônomo britânico Edward R. Harrison. Adoro essa frase porque ela dá um senso de propósito à existência sem nos tornar peões de um confuso jogo cósmico. Para quem é horrível em química, o hidrogênio é o átomo mais simples e leve que existe: um nêutron, um próton, um elétron.

Nove entre dez átomos do Universo são hidrogênio. Ele corresponde sozinho a três quartos de toda a matéria ‘normal’ que existe. Basicamente todo o resto é… bom, é hélio. O segundo elemento mais leve. Aí sim, sobram uns dois por cento com todos os outros elementos. Toda a matéria visível do Universo já pouco do total, e desse pouco, somos resultados de ainda mais pouco.

Quando a gravidade concentra muito hidrogênio em algum lugar, só então começamos a ver a produção de outros átomos. Basicamente tudo ao seu redor foi cozido na fornalha de uma estrela antes de ser servido. Não devo estar contando nenhuma novidade para vocês a essa altura do campeonato (pelo menos espero que não, porque isso é meio obrigatório de saber), mas quanto mais você pensa no assunto, menos aleatório parece.

Confesso que a ideia de mero acidente também me deixava confuso quando discutia com pessoas que enxergavam propósito consciente em nossa existência. Parece tão… vazio. Não é intuitivo para cérebros tão acostumados com o conceito de causa e consequência. Se você vê uma bola de futebol voando na sua frente, a tendência é que você procure por quem a tenha chutado! O trabalho da física na explicação dos fenômenos que vemos é excelente, mas não é como se não entendêssemos o que estava acontecendo antes disso. Quase sempre queremos saber o porquê de algo.

Essa parte de querer saber é razoavelmente fácil de entender. A parte de criar um “humano gigante” para fazer tudo isso, nem tanto. O conceito de divindade deve ser tão interessante para tanta gente porque gera propósito e causa para tudo o que nos acontece sem necessariamente confrontar o que nossos cérebros acham lógico. O criador responde quem chutou aquela bola! Ninguém viu, mas se a bola está voando, presume-se… aliás, é justamente o que fazemos na versão mais mundana desse exemplo. Presumimos.

Tem coisas que a gente nunca pensa direito até parar em cima do assunto por algum tempo: o conceito do criador não é tão maluco assim. Claro, depende muito de não conhecer o suficiente sobre a ciência já disponível, mas dentro de um conhecimento limitado sobre a ciência moderna… é, tem sua lógica. Se formos pensar mesmo, quem primeiro sugeriu que o Sol girava ao redor da Terra estava tirando leite de pedra com o conhecimento que tinha na época. Estava errado, sim. Mas não deixa de ser impressionante. Só o conceito de girar ao redor já era um passo incrível na direção certa.

O conceito de criador do Universo também tem algo de brilhante: um começo externo à nossa própria existência. É uma abstração interessante que aparentemente animal algum consegue conceber. Mas mais ou menos como na polêmica entre Geo e Heliocentrismo, só conseguimos avançar mesmo esse conhecimento quando nos tiramos do centro de tudo. E é aqui que eu volto ao hidrogênio.

Um átomo nem é a menor subdivisão da matéria, mas é um ponto suficientemente bem posicionado entre o concreto e o abstrato. E é por isso que eu estou me concentrando nele… é mais ou menos como se ele fosse o ponto divisor entre física quântica e tradicional. Provavelmente nosso limite ‘prático’ de compreensão, quanto mais longe vamos dele, mais complexas as coisas ficam (para ambos os lados, o maior e o menor). O hidrogênio é imensamente abundante no Universo, e tudo o que conhecemos é uma variação dele.

E se nosso senso de propósito mudasse para o hidrogênio? Ele nos criou para que pudéssemos entendê-lo. O hidrogênio precisava de ferramentas, e nós somos excelentes para esse trabalho. Esse ‘deus’ criou as estrelas, que por sua vez criaram os elementos mais pesados, que por sua vez criaram planetas, que por sua vez criaram a vida… tudo com processos que apesar de ainda termos muito para compreender totalmente, não parecem nem um pouco misteriosos. Causa e consequência. Alguém chutou aquela bola!

O Universo é incomensurável, mas é bem simples. Seguindo tudo o que já aprendemos sobre ele, presume-se que eventualmente tenhamos só uma partícula fundamental e uma lei geral. Um hidrogênio universal, por assim dizer. Quando chegarmos nesse ponto (se chegarmos) vamos ter respondido tudo ‘em tese’. Na prática pode se provar bem difícil fazer o caminho todo numa simulação e prever o futuro com perfeição… o Universo não deixa de ser uma grande máquina que já está fazendo essa simulação (máquinas consomem energia para fazer um trabalho e desligam quando a energia acaba – o Universo idem).

Mas em tese, teremos achado a resposta para o motivo de tudo acontecer. Provavelmente o Big Bang era inevitável, uma propriedade simples da existência. Só que eu sei o que você está pensando: faltou responde o porquê. Por que começou? Quem chutou a bola? E é aqui que eu argumento sobre mudar a perspectiva: ao invés de usar a da vida, usar a do hidrogênio. Somos uma reação. Uma configuração única da matéria causada por calor aplicado nas horas certas. Mas mesmo assim, o caminho inevitável do hidrogênio num Universo com as leis da física vigentes.

Com as condições desenvolvidas nessa rocha flutuante, o hidrogênio começou a pensar. E o caminho entre um átomo e uma consciência avança numa velocidade progressivamente mais rápida. Na série Cosmos (a nova com o Neil deGrasse Tyson) tem uma ótima analogia dessa velocidade toda: se o Universo tivesse um ano de idade, nós teríamos surgido no último minuto do último dia. E há menos de um segundo atrás, pisamos na Lua. O hidrogênio achou um jeito de acelerar absurdamente sua sede por propósito. Do que adianta conhecer todo o Universo se você não o entende?

Eu acredito que somos um caminho, não um destino. O hidrogênio não pode se replicar. Todo ele foi criado em mais ou menos três minutos algum tempo depois do Big Bang. E nunca mais. E se o hidrogênio estivesse na verdade querendo se replicar? Só uma inteligência incrivelmente avançada conseguiria replicar o processo de criação do hidrogênio, provavelmente através de um outro Big Bang. O Universo nos passou uma tocha. Ele quer deixar descendentes antes de morrer. Porque ele vai morrer.

A vida não deixa de ser mais uma propriedade da matéria/energia. Tudo o que nos faz vivos não é vivo. Somos hidrogênio. Uma combinação incrível de inúmeras possibilidades evolutivas dele, mas ainda somos hidrogênio. E é claro, o hidrogênio é uma combinação incrível de inúmeras possibilidades evolutivas de partes ainda mais básicas. Somos hidrogênio, mas também somos complexidade ‘desnecessária’. A matéria não precisa estar na nossa forma, mas está. Muita energia precisou ser gasta para nos montar como somos.

De uma certa forma, somos um esforço do Universo. Uma tarefa que ele está realizando contra todas as probabilidades. Um grito no escuro, desesperado para encontrar mais alguém. Nossos órgãos e sentidos são os órgãos e sentidos da própria existência. Isso tudo não é um acidente! A vida também não precisa ser complexa do jeito que é, se vida fosse o único objetivo, bactérias seriam mais do que suficiente. Mas as bactérias trabalharam duro para nos criar. Bilhões de anos de mutações e extinções para chegar aqui.

Seja qual for a lei fundamental da existência, ela claramente nos permite. Não é um acidente. Mas… não é consciente também. O mais difícil de aceitar que não é o Sol girando ao redor da Terra é o que isso significa: que a resposta não é mais o que faz sentido para o observador. Que existe outro ponto de vista privilegiado de onde se pode depreender mais sobre a existência… e não estamos nele. Acreditar na consciência do Universo de acordo com nossos padrões (vulgo o humano gigante chutando a bola, vulgo deus) é colocar tudo o que existe dentro do confinamento da mente humana. É deixar de procurar o ponto de vista privilegiado…

Nós somos o caminho da consciência do Universo. Ele depende de nós para ser vivo. Talvez para encontrar outro e se multiplicar? Os compostos de carbono não estão vivos até… estarem. A vida precisa ser construída por complexidade. Hidrogênio por hidrogênio. O Universo não nos deu a vida, nós que vamos dar a vida para ele. Nós somos a consciência, nós somos o propósito. Nós somos o hidrogênio, nós somos o Universo.

Quem criou tudo? Nós criamos porque precisávamos existir. E eu estou falando de todas as formas de vidas conscientes que existem, nesta rocha flutuante ou em outras. O que o hidrogênio fez, você fez também. Sua história tem 13.8 bilhões de anos e MUITO trabalho para chegar até aqui.

Não foi acidente.

Para dizer que hoje eu estou especialmente confuso, para dizer que ainda prefere ter sido criado para rezar numa igreja, ou mesmo para dizer que eu não sei sobre o que estou falando (pois é…): somir@desfavor.com


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