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Charlie Charlie

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| Somir | | 34 comentários em Charlie Charlie

Como eu não tenho redes sociais, sempre fico sabendo dessas coisas quando já estão muito famosas. O tal do desafio do Charlie Charlie viralizou, e muita gente se diz conversar com espíritos mexicanos através de um papel e dois lápis. Se eu vou desmistificar isso? Claro que não, é muito óbvio o truque (e o mecanismo de acreditar) e acredito que pelo menos aqui estamos todos acima disso. Mas… e se fosse verdade mesmo?

Digo, e se espíritos de falecidos se comunicassem com as pessoas na frequência que se acredita nisso? Que tipo de babaca voltaria para balançar lápis (ou mexer em copos) para o deleite de gente impressionável? Sei que meu grau de ceticismo é consideravelmente maior que a média, aposto que muitos de vocês tem histórias sobre fantasmas e coisas do tipo, mas… por que não se analisa mais as implicações práticas desses contatos?

Pensem comigo: você morreu. Contra toda a lógica conhecida que rege nosso Universo, de alguma forma sua consciência se manteve. Temos pelo menos duas hipóteses iniciais: ou você é capaz de se comunicar com outras consciências desencarnadas ou não é. Se é, é provável que exista alguma forma de organização social pós-morte. Se não é, bom, a morte começa a me parecer bem assustadora, porque significaria que você se tornaria um observador impotente ou um mero parasita comunicativo de pessoas vivas.

Vamos continuar trabalhando com a hipótese de organização. Você tem acesso a outras pessoas que já morreram, algumas talvez com milênios de experiência em estar mortas a mais do que você. Pelo o que a maioria dos estudiosos e crentes da área dizem, há sim hierarquia. Faz sentido, considerando que faz parte de nossos costumes. O que novamente é meio escroto: nem depois de morrer você fica livre de ter superiores e ordens? Talvez para quem acredite em divindades seja mais fácil, afinal, acreditam em chefes perfeitos. Mas sem um pedágio de absolutismo religioso, essa coisa de vida após a morte parece uma roubada se tem algum tipo de estratificação social remanescente.

Mais uma encruzilhada no caminho: a morte confere uma espécie de iluminação automática ou continua-se tão burro quanto era no final da vida? Se aprende-se algo só por isso, o Universo é mágico. E se é mágico, toda a lógica que desenvolvemos não serve para nada, a resposta de qualquer pergunta sempre pode ser “mágica!”. Vamos tentar nos ater a um Universo compreensível, ou seja, um onde informação/matéria/energia não é criada nem destruída, mas sempre modificada. Cidadão morre e continua na mesma, tendo que aprender muita coisa nova de seu novo ponto de vista.

Estamos trabalhando com organização e aprendizado. Morrer é mais ou menos como voltar pra escola. E por algum motivo, muitas dessas consciências são vistas como comunicáveis por pessoas vivas. Pentelhar vivos e continuar lidando com assuntos “terrenos” faz parte dessa escola? Se faz, o objetivo é voltar eventualmente para o convívio dos vivos como alguém mais sábio? Mas isso não seria um problema com a coisa de nascer sem memórias? Ou quem volta para psicografar livro brega na verdade está matando aula?

O meu maior problema com espíritos é que eles em média não são mais inteligentes. Quer dizer, não mais do que qualquer um de nós seria. Eles não criam coisas muito diferentes, não inovam, não dão conselhos mais acertados do que qualquer outra pessoa ao seu redor. Sim, em alguns casos saem belas frases e pensamentos supostamente atribuídos a pessoas que já morreram, mas… de boa? Auto-ajuda tem em qualquer canto. Não é possível que pessoas com interesses diferentes como pesquisa espacial não tenham feito alguma coisa sem a obrigação social de corpos.

Porque isso me assusta muito: se a morte te colocar alguma limitação intelectual, eu vou virar um fantasma e passar a eternidade com raiva de tudo. Muita raiva. Se espíritos são reais, por que eles são tão medíocres? Eu aceito minha mediocridade pelos limites da vida. O cérebro funciona até certo ponto e muitas coisas nos impedem de buscar todo o conhecimento disponível. Ficar na mesma SEM corpo? Que espécie de tortura é essa? Imagina ter que se comunicar balançando um lápis para adolescentes impressionáveis…

E essa coisa de ficar olhando pelas pessoas queridas? A morte é uma fantasia voyeur para muita gente. Que horror a ideia de ficar espiando os outros em seus momentos de intimidade, que ideia nojenta imaginar que tem alguém te olhando. Será que tem um antepassado seu te vendo cagar? Será que esse é o fetiche dele? Pode parecer muito mundano pensar numa bobagem dessas, mas ninguém parece se tocar dessa parte. Certeza que algum espírita ou algo do tipo tem uma resposta para isso que é tão reconfortante quanto vaga. Colocam um viés mágico de coerência no conceito de permanência e isolam todas as ideias preocupantes de escrutínio.

Sem mágica para tornar tudo possível do jeito perfeito para todos, o conceito de vida após a morte com o material disponível baseado em relatos e crenças dos vivos soa uma bagunça depressiva. Uma prisão. Se espíritos se comunicam e não conseguem adicionar NADA de relevante para o mundo (que outras pessoas vivas não conseguiriam do mesmo jeito), das duas uma: ou todo mundo fica limitado depois de morrer, ou só o resto do resto que se comunica. Foi mal, mas não é nenhum orgulho ficar baixando para dar conselhos e sugestões que não evoluem com o tempo. Pode baixar o que quiser em mim de retaliação, mas é muito loser voltar.

Se eles não ficam mais inteligentes, como acreditar que ficam menos mundanos? Que não continuam com os mesmos defeitos e impulsos de quanto ainda tinham corpos? (sim, eu sei que pessoas espertas que estão na área vão me dizer que continuam sim e faz parte do jogo) Claro que eu estou apenas entretendo a ideia pelo argumento, não acredito em espíritos, nunca vi e nunca vou ver porque não tem o elemento de auto-sugestão. Não me incomoda que algumas pessoas se dediquem a conhecer mais sobre isso, mas por que eu sôo tão deslocado ao não enxergar lógica alguma no conceito? Difícil entender algo que precisa ser acreditado. Eu consigo montar uma estrutura muito melhor para os mortos do a que eles parecem ter, e eu deveria ser burro pra caralho perto de alguém sem amarras de corpo e de tempo. Aliás, se algum deus existir, eu também sei fazer melhor, só para avisar. Querendo trocar de lugar, só me avisar que eu arrumo essa porra toda em questão de semanas.

A primeira reação a qualquer coisa que envolva vida após a morte deveria ser ceticismo até por auto-proteção. Mas por algum motivo, é raro achar gente que pense assim. Sabem o que incomoda? Que mais gente não se cague de medo de não conseguir evoluir intelectualmente. Que achem que um espírito escrevendo livro de auto-ajuda é algo para se pautar no futuro. É muito medíocre.

Ou mesmo que mexer um lápis seja um sinal de que há algo de maior nessa existência. Não, é ridículo. É prova, no máximo, de que tudo não passa de uma grande piada.

Para dizer que vai mandar o Charlie puxar meu pé, para dizer dar uma resposta reconfortante e vaga para perguntas claras, ou mesmo para dizer que preferia outro plantão Pilha: somir@desfavor.com


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