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O dilema do trem.

O dilema do trem.

| Desfavor | | 29 comentários em O dilema do trem.

Esse é famoso, mas não custa repetir: você se encontra às margens de um trilho onde um trem desgovernado vai atropelar cinco pessoas amarradas aos trilhos. À sua frente, uma alavanca que muda o trem de direção e o coloca em outro trilho onde uma pessoa está amarrada. É impossível desamarrar as cinco pessoas a tempo.

Tema de hoje: Você puxa a alavanca?

SOMIR

Sim. Poucas coisas são mais básicas e confiáveis que a matemática. Um é menos do que cinco. Se uma ação reduz a quantidade de vítimas de um acidente inescapável, essa é a ação mais lógica. Claro, lógica a partir de um conjunto de ideias e conceitos resultantes da evolução humana em estruturas sociais como as que temos. Não puxar a alavanca é renegar tudo o que nos trouxe até aqui. E por mais que misantropia possa ser “charmosa” para alguns públicos, não deixa de ser um tiro no pé.

Até um animal irracional é capaz de entender o conceito de quantidade, não com o refinamento da mente humana, mas com certeza a gazela vai tentar correr para o lado onde enxerga menos leões… a matemática das quantidades vai tão fundo que mesmo elementos inanimados reagem às concentrações diferentes no ambiente. É natural fazer escolhas dessa ordem, até por isso a tendência é que eu tenha o maior suporte médio na minha escolha em qualquer grupo quantificável de seres humanos.

Puxar a alavanca faz mais parte da ordem natural das coisas que não puxar. Os detratores desse ponto de vista normalmente acreditam que estão isentos de culpa se não interferirem na situação, o que passa longe de ser a verdade: a decisão consciente de não puxar a alavanca viola a lógica matemática do universo. É muito mais racionalizada (porque “racional” é uma palavra forte para ela – mais sobre isso depois) porque presume a compreensão da evidência da possibilidade de redução de danos e mesmo assim exerce uma força no sentido contrário.

Quem não puxa a alavanca toma uma decisão fria e calculista de matar cinco pessoas ao invés de uma. Quem puxa toma a decisão (menos fria e calculista, admito) de salvar cinco pessoas. Matar as cinco pessoas é subverter a idéia de manutenção da espécie e se colocar conscientemente fora do processo evolutivo. Usar essa mentalidade para desenvolver tecnologias que afastam o ser humano da evolução orgânica é uma coisa, usá-la para decidir a extinção da vida de membros da sua espécie beira à psicopatia. Uma perigosa alienação de propósito.

A inação não é o método natural do universo. Até porque o objetivo final da entropia é eliminar a própria existência de informação e significado. A realidade só existe através da ação. Acabou a ação, acabou o universo! Puxar a alavanca é fazer parte do movimento contínuo da existência, não tem nada a ver com ego ou desejos de poder. Um animal social tende a proteger seus iguais. E como somos capazes de compreender a ação e suas implicações, puxar a alavanca é só mais um exemplo desse comportamento.

E para ser sincero, eu entendo como uma pessoa pode chegar na conclusão contrária. Não me é alienígena e incompreensível, não estou diante de uma visão muito mais complexa das coisas: é só uma pessoa gastando muita energia cerebral para chegar a uma conclusão errônea. O ponto de vista da Sally pode parecer mais filosófico e profundo, mas ainda sim seu argumento é uma baranga com belas roupas. Se a base está podre, não adianta enfeitar.

Não puxar a alavanca é uma intervenção consciente com piores resultados matemáticos. “Você quer ganhar um centavo ou mil reais?”. A pessoa pode dar argumentos lindos sobre humildade para defender a escolha do centavo, mas continua sendo uma decisão com mais cara de surto emocional do que lógica. A partir do momento em que você se encontra diante da alavanca e tem a possibilidade de alterar o resultado da cena, tudo o que você fizer é intervenção. E se já interveio, qual o melhor resultado que você pode alcançar? Matar uma pessoa ao invés de matar cinco.

Sei que pode ser meio óbvio, mas não custa explicar: as seis pessoas amarradas ao trilho são completas estranhas para você e não há forma simples de identificar medidas alternativas de importância. Pelo menos não antes do trem matar alguém. É muito comum usarem argumentos emocionais e colocarem pessoas conhecidas e queridas no lugar do um que morre se a alavanca for puxada, mas isso é modificar o dilema. E mesmo que quem te faça essa proposição sentimentalista não perceba como está simplesmente inventando outra questão (o que é um tipo de falácia), ainda está apelando para uma decisão emocional por não ter argumentos sólidos (também uma falácia).

Se fossem cinco estranhos num trilho e a Sally em outro, eu não puxaria a alavanca, por exemplo. Mas espero que vocês percebam que toda a estrutura do problema mudou radicalmente. É outra pergunta! O dilema SÓ funciona se todos forem estranhos e indiferenciáveis.

Mais uma coisa: e se eu tivesse que empurrar um estranho no trilho para salvar cinco pessoas? Bom, aí eu não empurraria. Isso seria impor um sacrifício para outra pessoa que eu também poderia fazer. No dilema do trem original, eu não posso tomar o lugar da pessoa solitária no trilho nem se quisesse, pois se puxar a alavanca não sobra tempo para soltá-la. E se não puxar, o trem me mataria e mais as cinco pessoas (pior resultado matemático possível!). Não estou dizendo que eu me mataria para salvar estranhos, só estou dizendo que eu não faria a escolha de sacrificar outra pessoa se eu também posso me sacrificar. Se a pessoa quiser pular na frente do trem, ela pula. Não seria ético, e seria assassinato descarado (acho que nem a lei me salvaria).

E assim como a mentira exige mais do cérebro que a verdade, não puxar a alavanca te força a renegar a ordem do universo e da própria existência racional e social da humanidade para conseguir tal resultado. O esforço é maior e o resultado é pior… ONDE que isso faz sentido?

Adoro ser do contra, mas prefiro ir onde a lógica aponta.

Para dizer que eu só poderia ter admitido ser conformista e economizado vários parágrafos, para dizer que tentaria achar um jeito de matar todos, ou mesmo para dizer que não é um dilema à toa: somir@desfavor.com

SALLY

Hoje vamos usar um clássico: o “dilema do trem”. São escolhas trágicas motivadas por um trem desgovernado que fatalmente vai matar pessoas. A versão que escolhemos para a coluna de hoje é a seguinte: um trem desgovernado vai atropelar cinco pessoas, mas você tem a chance de mudar a alavanca, trocar o trem de linha e fazer com que ele atropele apenas uma pessoa. E aí? Você mexe na alavanca?

Uma pesquisa realizada pela revista “Times” informou que 97% das pessoas mexeria na alavanca, então, sinto que hoje eu serei trucidada. Não importa, acho que eu não mexeria. O utilitarismo tem seu encanto e parece bastante racional matar uma pessoa para salvar cinco, desde que EU ou alguém que eu preze esteja dentro dessas cinco, pois o envolvimento emocional justificaria o ato. Sendo cinco desconhecidos, não.

Por mais que pareça lógico matar uma pessoa para salvar cinco, estamos diante de um argumento muito perigoso. Vamos majorar os números? Quem rouba um real rouba mil reais. Quem mata um para salvar cinco, mata um milhão para salvar cinco milhões. É com base nesse argumento que o ser humano cometeu genocídios diversas vezes na história. Estamos falando de pessoas inocentes que morrerão. Me causa um pouco de repulsa contar o valor da vida humana de forma numérica. O que você pensaria de um Chefe de Estado que, para salvar um grupo de pessoas, mata outro grupo inocente? Pois é.

Quem defende o utilitarismo tem uma pontinha de hipocrisia dentro de si. O utilitarismo prega que a melhor solução é aquela que deixa mais pessoas felizes e que gera menores danos. Daí eu te pergunto: sendo um trem desgovernado que poderia matar cinco pessoas se seguisse caminho, ou quatro se o caminho fosse modificado ou apenas uma, se você se jogasse na frente do trem, a melhor solução seria…? Se jogar na frente do trem ninguém quer. Utilitarismo no cu dos outros é refresco.

Mas tudo bem, não vamos exigir de uma pessoa que se mate em troca do bem estar coletivo. Outra variável mais light vai provar meu ponto: o trem desgovernado pode atropelar cinco pessoas se seguir o caminho, quatro se for desviado para outro trilho e apenas uma, se você empurrar um desconhecido que está na beira dos trilhos e vai frear o trem. Você empurra o desconhecido?

É puro utilitarismo, vai tirar uma vida para salvar cinco, assim como no nosso exemplo original. Eu não empurro o desconhecido na frente do trem, então, por uma questão de coerência, também não puxo a alavanca, já que no fim das contas, dá no mesmo. Para mim, a moral não está na consequência e sim no ato da minha escolha.

Se o trem atropelar aquelas cinco pessoas seguindo seu curso, a responsabilidade não está em mim. Um defeito, uma falha mecânica, um erro humano, um fatalismo. Não importa, não está em mim. Mas, se eu mexer na alavanca, a morte daquele um inocente será pelas minhas mãos. Não, obrigada. Toda vida humana é igualmente valiosa e eu não quero ser responsável pela morte de ninguém. Quem sou eu para escolher quem merece viver e quem merece morrer? Seria bem arrogante da minha parte.

É banalizar demais a complexidade humana presumir que os cinco que estão de um lado e o coitado que está do outro são idênticos e por isso cinco valem mais do que um. Não é de moedas que estamos falando, são vidas humanas. Podem ser cinco ignóbeis pagodeando e um brilhante cientista do outro lado. Nunca saberemos. Essa presunção de que para salvar cinco pode matar um não entra na minha cabeça. Matar um inocente nunca é uma opção. Nunca tem que ser, a menos que seja para sobreviver ou garantir a sobrevivência de alguém que me é querido.

Legalmente, se você puxasse a alavanca, provavelmente não seria condenado pelo crime de homicídio. A lei brasileira concorda com o utilitarismo: melhor morrer um do que morrerem cinco. A lei é pensada para a sobrevivência social, quanto menos gente morrer, melhor. Mas eu, como pessoa, não tomo minhas decisões pensando na sobrevivência social, vide minha falta de filhos. Eu tenho meus valores próprios, pessoais, construídos a partir da minha experiência e da minha ética. Eu sou melhor e mais complexa do que esse pensamento 5 > 1.

Tem mais coisa em jogo do que os 5 x 1, dentre elas a clara noção de que eu não tenho o direito de decidir quem vai viver e quem vai morrer, sobretudo usando um critério tão banal como o numérico. Acredito que as pessoas abracem o critério numérico com muito alívio para se autoperdoar por ele ser absoluto: ninguém contesta que cinco é mais do que um. Critérios concretos, absolutos, trazem um conforto enorme. Mas parecem esquecer que ele é medíocre demais para basear uma resposta importante como essa. Repito: você mataria um milhão de inocentes para salvar cinco milhões? Tiranos de todas as épocas se escoraram nesse argumento para promover verdadeiras carnificinas.

Meu ponto de vista: a morte de um único inocente é inaceitável. Não pactuo com isso, não relativizo. A morte de um inocente não passa a ser aceitável só porque outros cinco inocentes morrerão. São todas inaceitáveis e eu não vou corroborar para nenhuma delas. A morte de um inocente não é uma opção, e muito me admira pessoas que conseguem flexibilizar esse pensamento. É uma porta que nunca deveria ser aberta.

Se você puxa a alavanca e mata um inocente, mas não empurra o inocente diretamente no trilho, desculpa, mas você é um hipócrita. O ato de empurrar uma pessoa que vai ser morta na nossa frente nos faz visualizar concretamente o que estamos fazendo: tirando a vida de um inocente. E quando isso acontece, quando saímos do plano da abstração, quando visualizamos, recuamos e não fazemos.

Pois bem, eu não preciso de sangue, tripas e ver um corpo dilacerado para visualizar que matar um inocente é errado, por mais trágica que pareça a escolha. Hoje, eu não faria. Em outros tempos sim, inclusive empurraria também, com convicção. Hoje não mais. Deve ser isso que chamam de amadurecimento, ou então estou ficando frouxa com a idade, coisa que também costuma acontecer.

É hora do ser humano aprender a se solidarizar mesmo na abstração. Você chora e paga um almoço para uma pessoa que está na rua passando fome, mas não sente o mesmo pesar e angústia por milhões de crianças no mundo que estão passando fome, pelo simples fato delas não estarem diante dos seus olhos. Tá errado. Mesmo sendo um mecanismo necessário para sobreviver sem enlouquecer, não percam a noção: está errado.

Até onde você vai para salvar vidas inocentes? Eu não topo tudo para salvar vidas inocentes. Eu não torturaria uma pessoa. Eu não mataria uma pessoa. Eu acredito que exista uma linha que não deve ser cruzada, ainda que isso custe a vida de algumas pessoas inocentes. Joguem pedras, hoje entrei para perder.

Para concordar comigo só para sair da massa dos 97% e bancar o elitista intelectual, para sacanear o Somir por ele pensar como o povão ou ainda para reclamar do tema escolhido: sally@desfavor.com


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