
A carta.
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Transcrição do interrogatório de José Alves Pereira: 23:18 – 02/04/2015
INVESTIGADOR: Comece do começo. Por que você estava com o Valter Silva naquela rua às 03:42 da manhã?
JOSÉ ALVES: Não me lembro disso. Sou eu na filmagem?
INVESTIGADOR: Você conhecia a vítima?
JOSÉ ALVES: Conheci alguns dias antes, numa investigação para uma recuperação. Conversamos algumas vezes sobre um tal de… de… eu juro que sei o nome… o nome era… ele tinha uma… um… eu… eu não lembro.
INVESTIGADOR: Você não está se ajudando.
JOSÉ ALVES: Eu não sei dizer… eu posso escrever. Eu posso escrever?
INVESTIGADOR: Tudo bem.
Relatório escrito de José Alves Pereira: 23:52 – 02/04/2015
Eu trabalho com recuperações amigáveis, como já disse. Nada de ilegal no meu ramo de atuação… eu atendo clientes que precisam reaver itens que não foram pagos por seus compradores. Desde relógios até aviões, eu já recuperei de tudo um pouco. Mas o caso que interessa vocês é sobre a carta, não é mesmo?
Bom, fui contratado pelo senhor Antunes (se é que esse é o nome dele, foi o que ele me disse) para recuperar uma carta que ele tinha vendido para um tal de Domingos. Não sei muito porque não é boa prática no meu negócio ficar enchendo os clientes de perguntas. Eles querem de volta, eu tento o possível dentro da lei para conseguir.
E a única informação que eu tinha era um endereço. Bairro antigo, central, mais famoso hoje em dia pelos viciados nas ruas do que pela rica história. O lugar eu descobri ser uma pensão, um prédio de esquina caindo aos pedaços e frequentado por todo o tipo de sujeitos estranhos. Fiz o meu trabalho inicial de investigação e ouvi de um dos locais que havia sim um Domingos por lá, mas ninguém o via há semanas. A dona da pensão, depois da persuasiva voz do suborno, acabou me revelando que ele tinha pago por três meses assim que chegou.
Mas nem sinal dele. Sabia qual o andar e o quarto, mas esperei mais alguns dias rodeando o local antes de tentar qualquer outra coisa. Nesse meio tempo, acabei ganhando a confiança de um dos moradores. Um jovem consumido pelas drogas, mas consideravelmente esperto em seus momentos de lucidez. O nome dele era Valter. Valter me contou que havia visto Domingos há algum tempo atrás entrando na pensão pela madrugada. Disse que ele carregava uma grande sacola de papel manchada de sangue. Podia ser algo problemático, podia ser nada. Eu não achei ter motivos para avisar a polícia naquela época.
Mas Domingos continuava ausente. E pelo o que eu entendi, vocês me disseram várias vezes que eu não poderia ser punido por nada que escrevesse aqui, certo? Às vezes não dá para ser totalmente obediente à lei nesse negócio: tive que dar uma espiada no quarto de Domingos. Foi fácil abrir aquela fechadura antiga, ainda mais no meio da noite sem ninguém para bisbilhotar. A primeira coisa que notei ao abrir a porta foi um cheiro podre. Não era muito forte, mas com certeza incomodava às narinas.
O quarto tinha uma configuração estranha dos móveis. Parecia tudo empurrado em direção às paredes, muitos empilhados. No chão, alguns rastros vermelhos que eu logo presumi serem sangue. No centro do quarto, símbolos estranhos desenhados em giz, se era algo satânico algum especialista vai saber melhor do que eu. Os símbolos formavam um círculo ao redor de uma… carta. Um envelope amarelado, aparentemente selado com cera, mas já aberto. A carta estava saindo um pouco de dentro.
Minha primeira reação foi acelerar o passo para pegá-la. Tinha que ser aquela que fui contratado para reaver! Mas quanto mais me aproximava, mais o cheiro incomodava. Meu estômago embrulhou… e o mais estranho era o frio. Sério, a cada passo a temperatura parecia cair alguns graus. Quando já estava em cima daqueles símbolos, sentia-me dentro de um freezer! Vacilei um pouco, mas imaginei que estava só impressionado com o que parecia ser um ritual como tanto vi em filmes de terror.
Fui até a carta, minha mão endurecida pelo frio. Não tive dificuldades de retirá-la dali, mas logo em seguida eu pareci perder todo o controle sobre minhas mãos: levei-as à altura do meus olhos e desvendei a carta de dentro do envelope. Essa nem era a minha vontade! Saber o que estava escrito ali feria a ética do meu trabalho.
Mas de nada adiantou ficar naquele dilema moral, revelei a carta e pus-me a lê-la ali mesmo. Como eu já disse, eu tenho a memória de ver a carta com algo escrito, mas quanto mais eu me concentro, menos nítido fica o seu conteúdo. Não tenho a menor ideia do que estivesse escrito ali, mas sei, de verdade, que eu a li. As memórias ficam confusas depois disso, só me lembro mesmo de estar de volta para fora do círculo de símbolos, sentindo aquele cheiro ruim. E sim, como eu disse, já era de manhã.
Atordoado pelo lapso de memória, resolvi sair dali. Voltei para casa e dormi um sono profundo até a noite. Ligando a TV, eu vi a notícia sobre o rapaz encontrado morto naquele mesmo bairro, e quando vi que o nome dele era Valter e a foto colocada na tela sendo do mesmo Valter que eu conheci na pensão, entrei em pânico. Aquela situação estranha com a carta, uma noite esquecida e um conhecido morto logo em sequência? Claro que eu comecei a desconfiar se não tinha algo a ver com isso.
Pelo o que vocês me disseram, uma loja na vizinhança tinha uma câmera que me filmou empurrando o Valter rua abaixo umas duas horas depois do que eu lembro de ter lido a carta. Foi assim que vocês me acharam, não? Eu juro que não sei o que aconteceu, já colaborei com as digitais, com o DNA, já entreguei a roupa que estava usando, já passei todas as informações que tenho. Eu estou fazendo tudo o que posso para ajudar vocês a solucionar esse caso, tenho certeza que eu não sou assassino, muito menos no tipo de arrancar órgãos e drenar o sangue de uma pessoa inocente. Se eu fosse vocês, eu procuraria pelo Domingos.
E é isso o que eu sei até agora. Não sei mais o que escrever. Minha mente está ficando confusa…
A palavra deve ficar viva
Um sacrifício de sangue
Para a palavra renascer
Uma noite a mais
FIM
O galo já esta aqui em casa. Pronto para ser degolado. ‘A palavra vai renascer’!
Eu nem tinha me ligado que era texto de sexta, pensei que era coisa de PT e Petrobras, ainda bem que era um Des Conto!
Estilo “O Chamado”… Se eu tirar xerox da carta me livro da maldição? haha…