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Vidas encharcadas.

Vidas encharcadas.

| Sally | | 54 comentários em Vidas encharcadas.

Talvez eu deva começar a beber. Não bebo pelo simples motivo de não gostar. O gosto não me atrai, a sensação não me atrai. Enfim, não bebo por escolha pessoal independente de família, religião, culpa ou proibição. Simplesmente não bebo.

Mas, por um grande azar, cresci em um país onde beber é status. É regra, é rotina. E como tudo que se torna regra, gera desdobramentos. Uma teoria que venho amadurecendo faz tempo: O fato da bebida e da bebedeira serem vangloriados no Brasil afeta diretamente a forma como as relações humanas se constroem nos momentos de lazer.

Deixa eu explicar melhor. Acho que o fato de ser socialmente aceitável e até mesmo socialmente estimulado beber em qualquer evento como forma de mostrar alegria, disposição e entrosamento fez com que o brasileiro emerdifique o conteúdo da sua vida social.

Pense comigo: você faria todos os programas que faz (festas, churrascos, shows e etc) se tivesse que encarar o evento sóbrio? Provavelmente não. Como foi que chegamos a este ponto? Bem, se uma festa, reunião ou evento fosse pautada na boa conversa entre os presentes, as pessoas teriam uma cobrança maior para serem agradáveis, educadas e bem informadas. Mas não. É pautado na bebida, desde sempre. Logo as pessoas podem se permitir uma mediocridade intelectual, que será suprida pelo torpor do álcool.

O foco do programa, qualquer que seja o evento, não costuma ser as pessoas. Mesmo que seja o aniversário de alguém, normalmente o foco não é o aniversariante (como está sua vida, como ele está se sentindo, o que deseja para seu futuro ou celebrações de suas conquistas). O foco é beber. Talvez dançar ou paquerar, mas tudo isso tem um carro-chefe: a bebida. Quando uma pessoa bebe, invariavelmente seu controle de qualidade cai. Para tudo. Lugares que uma mente sóbria, e, portanto, mais exigente, achariam desconfortável, enfadonho ou até insuportável, uma mente entorpecida tolera e abstrai.

Assim, décadas de entorpecimento vinculado com a vida social tornaram as pessoas insensíveis para detectar a insuportabilidade de certos programas, grupos ou eventos. Frequentar estes lugares e pessoas de forma reiterada criou um hábito e este hábito, por sua vez, criou a obrigação social de fazer deste um programa padrão. Por ser um padrão, as pessoas se sentem compelidas a ir, e para suportá-lo, bebem. É preciso sair para conhecer gente, ninguém bate na porta da sua casa aleatoriamente. E nessa a pessoa se vê compelida a sair e beber pois o lugar para conhecer gente é insuportável.

Será que alguém atura o carnaval de Salvador, pulando de abadá no meio daquela gente suada sem uma gota de álcool? Será que alguém sustenta horas de conversa jogada fora em uma mesa de bar sem bebida? Será que alguém banca uma noitada em uma boate sem beber nada? Eu acredito que as pessoas que frequentem estes lugares e se divirtam igualmente, bebendo ou não, sejam uma minoria, muito minoria mesmo.

Antigamente eu achava que as pessoas bebiam para conseguir se divertir. Hoje tendo a achar que bebem para poder suportar o programa. O que não me entra na cabeça é: se precisa beber para suportar o programa, porque vai? Porque não fica em casa, lendo um livro, vendo um seriado ou não procura outro tipo de lazer que atenda melhor? Geralmente vão para conhecer pessoas, mas porra, conhecer uma pessoa que frequenta um ambiente que se detesta é furada. Essas pessoas devem gostar muito pouco de si mesmas para se colocar nessa situação, ou talvez não percebam o mecanismo, sei lá.

O fato é que bebendo para de alguma forma anestesiar os sentidos e tolerar pessoas, lugares e situações chatas a sociedade brasileira merdificou as relações pois o controle de qualidade caiu. Todo mundo parece mais legal quando o interlocutor está bêbado. Joinha. Com isso ficou fácil se divertir em baladas e festas. O grande problema é que não dá para passar a vida todo bêbado, em algum momento a realidade bate à porta. E aí começam os conflitos entre o mundo real e o mundo entorpecido da noite anterior.

Quem aqui não tem “amigos de balada” que são muito divertidos para badalar mas que são intragáveis em uma conversa sóbria de dez minutos? Eu não tenho, mas a maior parte das pessoas tem. Quem aqui nunca saiu com uma pessoa e no dia seguinte, sem a generosidade que o álcool acarreta, a achou insuportável? O fato de estarem sempre, invariavelmente, bebendo em ocasiões sociais nivela por baixo as escolhas, sejam de lugar, sejam de pessoas. Qualquer chatonilto fica tolerável. Depois ninguém banca essa escolha no período de sobriedade, e em vez de perceber a armadilha em que se colocou, reclama que as pessoas andam um saco, que dá azar, que só tem maluco no mundo.

Ora, se seu anti-virus está desligado, não venha reclamar que o computador foi infectado. Temos um discernimento próprio, composto dos nossos valores, escolhas de vida e personalidade que nos ajudam a peneirar quem queremos em nosso convívio e quem não. Se você entorpece esse sistema de segurança e ele deixa passar elementos que não atendem ao controle de qualidade, de quem é a culpa?

As pessoas não estão nos dando o que tem de melhor, não estão se esforçando para serem cultas, agradáveis e elegantes, porque o álcool faz um desempenho abaixo da média ser aceitável e tolerável. E, meus queridos, não se enganem, independente do que você ou eu pensemos, o grande filtro do comportamento humano é a sociedade. Quando a sociedade não reprimia, até no meio da rua se cagava. Então, enquanto a sociedade entender como aceitável se entorpecer em eventos de lazer, neguinho não vai se esforçar para mostrar o seu melhor, pois o seu mais ou menos já pode ser aprovado por uma mente alcoolizada.

Não quero de forma alguma defender proibição de álcool, por favor. Só acho que sua obrigatoriedade em tudo quanto é evento de lazer está, como qualquer exagero, trazendo prejuízos sociais. Talvez se as pessoas bebessem menos, ou ao menos não bebessem sempre que saem de casa a lazer em grupo, tivessem um filtro melhor e não atraíssem para si a quantidade de dejetos humanos que atraem. Pense nisso. Talvez a culpa não seja do azar, do karma, da macumba. Talvez seja sua, por entorpecer seu controle de qualidade quando está interagindo e conhecendo pessoas.

Não compreendo o ponto de ter apenas essa interação entorpecida como fonte de contato social. Saiu: tem que beber. Sinal que tem alguma coisa muito errada. Vale uma reflexão. Quem nunca viu uma pessoa que teve que tomar um antibiótico, consequentemente parar de beber (poucos realmente param, mas enfim…) e por isso desanimou de sair? Sem bebida a pessoa não aguenta o programa, os acompanhantes, o lugar. Percebem o sinal de alerta piscando?

Reparem que pessoas que não bebem costumam ser menos propensas à badalação. É que realmente fica difícil, nos padrões do Brasil, tolerar uma badalação sem beber. É tudo realmente muito chato, muito medíocre, vazio e sem sentido. Grávidas que tem a decência de não beber dificilmente acham graça em repetir os programas que faziam até bem pouco tempo. Maturidade em função da gestação? Não creio, falta o álcool para minar seu controle de qualidade e aumentar sua tolerância.

O grande problema é: o que nós, pessoas que não bebem por opção, podemos fazer diante de um quadro desses? A vontade é de isolamento. Um pijama, um seriado, um pote de sorvete ou um balde de pipoca e pronto. Mas o ser humano é um ser social, em algum ponto, mesmo que demore, sentimos falta de contato humano. Devemos beber, para que também nos seja suportável o insuportável e assim minar nosso controle de qualidade em nome da necessidade social? A resposta fácil é dizer que não. O difícil é manter esse não de pé.

É um “não” que mina relacionamentos, amizades e até mesmo as chances de conhecer alguém caso a pessoa esteja solteira. É praticamente fechar as portas da sua vida social. Talvez a resposta seja a internet, uma fonte que, em um primeiro momento foi secundária mas hoje está se tornando a principal responsável pelo nosso lazer e, porque não, por nossa vida social. Não me parece a melhor das escolhas, ainda vejo algo de patético em ter internet como fonte primária de relacionamento e lazer, mas certamente é melhor do que frequentar lugares que te exigem entorpecer seus sentidos para arrancar algo de prazer ou sequer aturá-los.

Nada vai mudar, pois ninguém vai refletir sobre a grande contradição que é precisar entorpecer os sentidos para suportar algo que não é uma imposição e sim uma opção. Mas em um mundo ideal as pessoas poderiam romper com esse círculo vicioso e elevar o nível social. Em uma sociedade que valorize o contato sóbrio, a conversa, a troca de ideias, as pessoas seriam obrigadas a ser um pouco mais educadas e instruídas. Quem sabe um dia.

Para pinçar uma frase fora de contexto e se ater a ela nos comentários, para mostrar seu analfabetismo funcional e dizer que é um texto contra o álcool ou ainda para responder com uma piada sem graça por estar bêbado: sally@desfavor.com


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