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Passando de fase.

Passando de fase.

| Somir | | 16 comentários em Passando de fase.

Meu primeiro contato com um videogame foi com um Atari. Confesso que nunca entendi muito bem o que estava fazendo apertando um botão e vendo quadradinhos coloridos se mexendo na tela. Distraía, pelo menos. E, cacete, como era difícil conseguir qualquer senso de progresso ali. Devo ter jogado basicamente só as telas iniciais da maioria dos jogos que tínhamos em casa. Mas tinha algo de positivo aí: mesmo na mais tenra infância, já começava a entender que algumas coisas não eram para o meu bico.

Ou pelo menos, não por enquanto. Quando tinha a chance de ver pessoas mais velhas jogando, percebia que elas iam bem mais longe que eu. Por sorte criança se amarra numa repetição e eu não via nada demais em ficar batendo cabeça sempre nos mesmos estágios dos jogos. Era bacana ver os outros fazendo melhor, de verdade. Não passava pela minha cabeça que eu era um zero à esquerda por não conseguir, era só uma coisa que os adultos faziam e eu ainda não.

Uma limitação minha.

Os videogames do passado eram bem mais cruéis que os atuais. Nem digo difíceis, porque uma coisa é decorar física e mentalmente como passar um estágio num jogo antigo tipo Mario, outra completamente diferente é lidar com a overdose de informação e possibilidades dos jogos atuais. Ambas são difíceis para o cérebro. Mas os jogos que eu joguei na infância e adolescência eram bem mais cruéis.

Muitos deles feitos por gente sacana que dificultava tudo mesmo para mascarar quão rasos eram esses jogos. Vinte fases parecidas com milhares de outras fases dos outros jogos disponíveis. Diversidade não foi o forte das primeiras gerações dos consoles caseiros. Queriam te forçar a alugar o jogo mais vezes (quem comprava jogo era playboyzinho), ou te fazer gastar mais fichas quando era jogo de fliperama.

Muito se engana quem acha que os jogos de outrora eram mais complicados porque se respeitava mais a inteligência dos consumidores. Negócio é negócio hoje e há vinte, trinta anos atrás. Sem contar que muitos dos programadores dos jogos eram sem noção mesmo: foda-se que vai frustrar terrivelmente uma criança, o jogo tinha que ser daquele jeito e azar de quem jogasse. Eram tempos menos… atenciosos… por assim dizer.

Quando eu finalmente ganhei um videogame para chamar de meu, já era algo bem mais avançado que o Atari. Um Mega Drive japonês! E naquela época isso contava muito: os jogos compatíveis com o meu videogame só falavam a língua da terra do sol nascente. As maravilhas da ‘gambiarragem’ eletrônica me permitiram jogar jogos em inglês depois de algum tempo, mas no começo, ou era em japonês, ou era em japonês.

Não, não estou tentando explicar o início da minha fascinação com as loucuras nipônicas aqui, tem um ponto: com inglês você meio que se vira mesmo não conhecendo a língua, mas com japonês? Garanto que não entendia bulhufas do que estava nas telas ou mesmo nos manuais que vinham com os jogos. Mas ei, era o que tinha! E a não ser que você tivesse a sorte de conhecer alguém fluente na língua, não tinha como depreender o que estava escrito, estivesse onde estivesse. Ideogramas deixam cérebros ocidentais em pane.

Mesmo assim, nerd nasce nerd e nada me impediu de jogar tudo o que podia. Entende jogando, chuta até acertar, se vira aí! E não tinha para quem correr. Mesmo com as revistas de jogos, você dependia da sorte de falarem do jogo que você estava jogando, e mais, que fosse uma matéria ensinando a jogar, porque a maioria só os apresentava.

E considerando o número de jogos médio que uma criança tinha ao seu dispor naquela época, era acertar na loteria achar informação sobre um dos poucos que você tinha. No meu auge, eu tinha umas 10 fitas. E nem gostava de todos. Mas logo no começo, o videogame veio com uma fita. E foi ela que eu joguei por meses antes de ter a chance de sequer ver outra. O jogo era simples, um avião atirando em milhões de inimigos voando em sua direção. E, cacete… como eu era ruim nele.

Devo ter jogado a primeira fase umas cinco mil vezes, e se cheguei à quarta umas dez vezes, foi muito. Recentemente descobri pelo Youtube que eram cinco no total. A quinta eu vi só em vídeo mesmo. Tudo culpa de um conceito que foi eliminado dos games com o passar do tempo: o de começar de novo. Os jogos de hoje te empurram em frente e te dão opções de salvar seus progressos. Os jogos que eu jogava te davam algumas chances, e se você não conseguisse vencer, começava desde o começo, como se nunca tivesse tocado na fita antes.

Sim, eu sei que está parecendo um apelo barato à nostalgia de muitos de nós criados nessa mesma época, mas eu quero reforçar o ponto que coloquei lá no começo: a limitação. Se eu tivesse que escolher entre os jogos cruéis do meu tempo e coisas incríveis como o Minecraft que as crianças tem hoje, trocaria meu passado pelo presente num piscar de olhos. Não sou muito nostálgico, aposto que vocês já perceberam.

Mas mesmo assim, tem um motivo egoísta e preguiçoso nessa escolha pelo presente: preferia ter lidado com menos frustrações e ter à minha disposição jogos feitos para me divertir (e não para me testar). Mas será que eu não estou escolhendo entre os vegetais e o fast-food aqui? O caminho mais curto e mais prazeroso sempre vai ter seu apelo, mesmo que perca nutrientes no caminho.

Eu ouvi um sonoro NÃO quando quis jogar feito os adultos no Atari, outro quando quis entender uma língua que não tinha aprendido, e ainda mais vários outros quando quis jogar outra coisa mais fácil do que a que eu tinha. Os videogames me ajudaram a aprender sobre frustração e impotência. Aquela dificuldade toda – embora não tenha sido planejada com fins educativos – educou.

O Atari me ensinou que é normal não saber fazer algumas coisas. E que às vezes leva tempo para aprendê-las. O Mega Drive japonês jogou na minha cara que eu não era tão inteligente assim, e ainda me mostrou que mesmo ralando muito tem coisas que você só consegue pela metade sem o suporte correto. Aquele jogo maldito do avião me ensinou a curtir o que eu tinha e tentar tirar o máximo disso. Confesso que algumas dessas lições eu esqueço ou ignoro de tempos em tempos, mas elas estão lá. Eu passei por essa fase.

Quando começou a era dos videogames mais modernos, vulgo os com gráficos 3D, já não tinha muito mais disso para se basear. Os produtores de jogos ficaram mais profissionais e não puniam tanto os jogadores, era mais fácil ter acesso à informação sobre os jogos, e graças à pirataria que comia solta, opções não faltavam. Já era o embrião dessa era moderna.

Quem passou pela fase difícil curtiu muito mais o ‘estágio bônus’ da indústria dos games atual. E talvez tenha aprendido a não fazer coisas como jogar fora o celular velho toda vez que sai uma nova versão. Muito embora as crianças de hoje tornem-se mais inteligentes do que sequer poderíamos sonhar em nossa era de escassez, isso não acontece sem uma troca. As lições do Atari e seus sucessores não fazem parte da criação das novas gerações.

O “não” saiu de moda. O “não tem” virou um conceito alienígena. O “se vira” então… só vão entender se alguém fizer um passo-a-passo e publicar no Youtube. Como o South Park soube criticar muito bem há pouco tempo atrás, as crianças de hoje talvez achem até mais graça ver outros jogando os jogos pela internet do que jogar elas mesmas. Talvez seja aquela sensação que eu experimentei ao ver os adultos jogando o Atari e conseguindo fazer alguma coisa, ao contrário de mim. É um belo atalho para a sensação de conquista, sem ter que lutar por ela.

Talvez a principal diferença é que eu tinha que jogar e quebrar a cara para experimentar. E tinha que sobreviver às frustrações. A maioria de vocês também. Não existia atalho… não somos melhores pela capacidade de resistir à tentação, mas demos sorte de aprender isso logo cedo, e com personagens coloridos pulando numa tela do mesmo jeito que as crianças de hoje tem. É tudo muito bacana com os games modernos, os tablets, a conectividade entre tudo… mas falta frustração. A fase é muito bem feita, mas estão esquecendo de colocar um chefe no final!

P.S.: Mas que eu mataria um para ter um Minecraft para jogar quando tinha uns 10 anos de idade, mataria.

Para dizer que eu só queria uma desculpa para falar nerdice, para dizer que prefere a Sally sendo nostálgica, ou mesmo para dizer que prefere ser bunda-mole e ter os jogos de hoje: somir@desfavor.com


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