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Direito ao crime.

Direito ao crime.

| Somir | | 2 comentários em Direito ao crime.

Não, não é um texto jurídico. Na verdade eu quero fazer mais um defesa da privacidade, mas por um lado que dificilmente se menciona por aí: a privacidade para fazer ‘coisa errada’. Até porque infelizmente às vezes só se combate fogo com fogo.

Num mundo tão conectado, privacidade não é mais o que costumava ser. Não tem mais a ver com isolamento das suas informações, e sim com uma suposta garantia que nenhum outro ser humano vai poder acessá-las sem seu consentimento. Para nos mostrar o que queremos ver ou mesmo para nos vender o que acreditam que queremos comprar, a indústria da informação indexa e analisa praticamente todos os dados que você disponibiliza para a internet.

De bom grado ou não. Algoritmos de análise de padrões comportamentais cruzam todas as informações possíveis sobre uma pessoa, vindas dela ou mesmo de pessoas que convivem com ela. O Facebook, por exemplo, adora fazer isso: ele observa seus amigos e tenta encontrar tendências entre eles que talvez sejam relevantes para você. Uma pessoa cuidadosa cercada por pessoas normais (vulgo pessoas que contam tudo para a internet) não está tão escondida assim.

É difícil entender privacidade como algo análogo a esconder informações no dia de hoje. Esconder não é mais uma possibilidade viável para a maioria das pessoas. Sobra então esse conceito de privacidade ‘neutra’ dos sistemas computadorizados que lidam com suas informações: a máquina é programada para focar no grupo ao invés do indivíduo, e por ser um conjunto de linhas de código, não tem a curiosidade de um ser humano.

A máquina pode saber que você tem uma pasta particular com mil fotos e nunca vai se importar com o conteúdo dessas fotos. A máquina não, mas talvez quem a controle… a nossa privacidade moderna é capaz de te indicar um remédio para hemorroida sem nunca alertar outros seres humanos sobre isso! E isso é muito bacana. ‘Alguém’ sabe o que está se passando na sua vida, mas não é um ser capaz de fazer julgamentos. Ou mesmo interessado em te expor pessoalmente.

Mas novamente, a máquina é só uma parte dessa equação. A máquina é programada para fazer alguns juízos de valor de acordo com as informações que você disponibiliza (ou consome) na grande rede. Isso pode ser excelente quando pensamos em pedófilos, por exemplo. Uma ‘mente superior’ analisando tudo ao seu redor e dando dicas valiosas para quem se encarrega de pegar criminosos.

Não vou sentar a lenha nessa privacidade 2.0 sem reconhecer seus méritos. A maioria das pessoas vai tirar vantagem de ser ‘conhecida’ por uma máquina, e muita gente ruim vai ser pega por essa tecnologia. Tem coisa boa sim. Agora, tem uma coisa que me preocupa nisso tudo… às vezes precisamos fazer coisas erradas.

E não estou me referindo a precisar dirigir bêbado para não pagar um táxi! Coisas erradas diante da lei, mas subjetivas diante da sociedade. Quanto mais a privacidade é entregue aos cuidados de uma máquina, maior o risco da máquina ser ‘viciada’ contra quem tenta lutar contra seus donos. O mesmo sistema que alerta para as autoridades alguém vendendo drogas para uma criança pode alertá-las sobre alguém com um discurso subversivo.

Querer um país democrático já foi contra a lei no Brasil, e nem faz tanto tempo assim. Exigir direitos iguais para mulheres ainda é contra a lei em vários países hoje em dia. Ei, não acreditar no amigão imaginário ainda é crime em plenos tempos modernos. Há de se ter cuidado com a noção de que “quem não deve não teme”. Eu já cansei de falar sobre essa frase, então vou poupá-los do argumento completo. Mas é importante entender que gente que NÃO deve pode sim temer.

Não importa se a lei diz que não existe democracia num país, cidadão que quer sua implementação não deve. O direito ao ‘crime’ é essencial como última linha de proteção dos desejos de um povo. Um sistema que não prevê nenhuma forma de ser derrubado tende a não ser um sistema condizente com o nosso atual grau de evolução. E quanto mais cedemos nossa privacidade para terceiros (mesmo que dotados de uma inteligência artificial primitiva), maior o risco de criarmos sistemas antidemocráticos mais resistentes.

Toda moeda tem dois lados. Redes sociais foram (e ainda são) importantes na organização popular contra regimes tirânicos e/ou corruptos, mas ainda pela proteção de um ponto cego dos poderes constituídos sobre a informação compartilhada pela população. Ainda é difícil analisar ou mesmo controlar a torrente de informação que passa pela grande rede no dia-a-dia.

Conspirar contra o governo não costuma ser algo incentivado ou mesmo legalizado na maior parte do mundo. A única coisa que eu gosto dos americanos com sua tara por armas de fogo é o conceito por trás dessa liberdade excessiva: a ideia é que a população possa expulsar um governo tirano ou corrupto do poder mesmo com a máquina do Estado jogando contra. Na prática tende a não funcionar mais, são outros tempos e guerras não são mais só questão de quem tem mais armas. Mesmo assim, é uma cagada (vide os inúmeros tiroteios) fundamentada num conceito nobre: ninguém é infalível, MUITO MENOS o governo.

E aqui eu fico um tanto mais conspiratório: com exceção dos próprios EUA, a maior parte do mundo ainda não sabe muito bem como espiar seus cidadãos pela internet. Mesmo a China – famosa por sua internet fechada e censurada – ainda não tem o nível de sofisticação ou o tipo de cooperação de empresas privadas globais que os EUA e sua NSA tem. Mas começa a ficar claro que todo mundo vai querer uma fatia desse bolo. O Brasil andava flertando muito com essa ideia até o Marco Civil da Internet, e aposto que se o governo atual se perpetuar por mais algum tempo, consegue implantar algo parecido por aqui.

Tendência. Quem souber lidar melhor com a informação vai ser mais forte com o passar do tempo. Também não é à toa que vemos um aumento considerável de agressões governamentais e terrorismo no campo virtual. Estamos cedendo todo tipo de informação para sistemas automatizados baseados em contratos dúbios no quesito da privacidade (que jogue a primeira pedra quem leu os termos e condições de sua rede social favorita), e isso está formando um admirável mundo novo para ser explorado.

Vai ser explorado para distribuir conteúdo, vender mais, pegar bandido… mas é evidente que vai ser também uma ferramenta de controle focada na manutenção dos poderes vigentes. E tende a ser fácil: as pessoas aceitam muita invasão de privacidade se prometerem a elas que vão caçar terroristas e pedófilos! Parece uma troca aceitável, mas tem essas letras miúdas no contrato: “vamos aproveitar também para garantir que possamos enxergar cedo qualquer tentativa de revolução popular.”

Porque o problema de nos espionar para caçar bandidos é que quem manda na gente escolhe o que é um bandido. A tendência é que a tecnologia alcance o atual ponto cego que permitiu recentes revoltas no Oriente Médio, por exemplo. E aí ficamos com uma dúvida razoável sobre nossa capacidade de derrubar governos. A tecnologia avança porque é lucrativo que avance, mais e mais sistemas automatizados vão surgir para ler e cruzar seus dados, colocando-os em enormes bancos de dados sem intervenção humana, mas o que se faz com essa informação depende sim de um falível e tendencioso ser humano.

Muita gente luta pela privacidade na internet, e muitas vezes essa gente ajuda a acobertar quem faz coisa ruim com essa liberdade. Mas é bom que tenhamos uma válvula de escape. Uma proteção contra a curiosidade exacerbada de governantes e figuras de poder para que possamos lutar contra eles, SE for o caso.

É feio falar isso, mas… precisamos de privacidade para fazer ‘coisa errada’. Os bandidos de uma época podem ser os heróis de outra. E nunca podemos confiar 100% em quem lida com essa informação: não é certeza que vão combater crimes que realmente ferem os direitos humanos e não é certeza que vão usar as informações para o ‘bem’. Eventualmente precisamos de marginais (aqueles que vivem e agem à margem do sistema) para nos proteger de ‘cidadãos de bem’ que querem se manter no poder ou limitar liberdades pessoais de seus governados.

E SEMPRE vai passar coisa ruim por um sistema mais leniente nesse aspecto de privacidade pessoal. Infelizmente essa omelete não pode ser feito de outra forma. É até por isso que Sally e eu costumamos aprovar alguns comentários terríveis de racistas e coisas do tipo por aqui. Não confie nem na gente para filtrar o conteúdo para você! Se fecharmos a porta para falarem só o que queremos que falem, nunca vamos ser confrontados se fizermos ou dissermos algo errado. Prefiro que passe o maluco porque eventualmente um desses malucos pode estar falando algo importante que mude nossas maneiras de ver o mundo. E talvez algum de vocês que nos aponte isso!

É saudável ter mecanismos revolucionários. Não é algo que ganhamos de graça, mas é o preço que precisamos pagar. A privacidade nos modelos que vão se desenhando atualmente parece ser um jeito de sufocar um desses mecanismos.

Uma hora ou outra precisamos que alguém apronte… e não seja pego. Gostem ou não.

Para dizer que eu só digo isso para poder piratear minhas séries sem medo, para agradecer por ter suas maluquices aprovadas, ou mesmo para dizer que confia no governo e no Facebook (boa sorte!): somir@desfavor.com


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