
Laptriz
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Eu lembro bem quando os primeiros sinais foram captados. Discuti com meu chefe por um bom tempo tentando convencê-lo de que aquilo era só uma anomalia da radiação de fundo que calhava de parecer com uma palavra. Na minha profissão, ceticismo é um excelente antídoto para a frustração. Nunca era algum contato… bom, nunca até aquele dia.
Foi polêmico. Muita gente analisou o áudio depois que ele foi tornado público, eu inclusive. Meu veredicto: nada demais. Estava prestes a publicar o vídeo quando veio a notícia de outras palavras. E dessa vez não eram só os grandes receptores dos pesquisadores profissionais, algumas transmissões podiam ser ouvidas em rádios amadores. Quando ouvimos o “sakadt uleram” em som límpido e cristalino, eu ainda apostava em uma fonte interna. Alguém brincando com a gente.
Juro que tinha provas e mais provas dessa teoria. Eu acreditava estar certo, mas… como eu queria estar errado. Meu trabalho era procurar por vida alienígena, analisava transmissões como essa diariamente num grande centro de pesquisas internacional. Mas minhas certezas foram derrubadas quando vimos vocês pela primeira vez: um relance, a luz solar refletida naquele planeta estranho na resolução pífia de uma sonda prestes a ser desativada.
E as transmissões ficando cada vez mais fortes. Escutávamos mais e mais da fascinante língua alienígena que tantos aprenderam a falar por aqui. Minha incredulidade tornou-se em fascinação. E meu emprego veio a calhar, não? Vocês estavam passando por Saturno quando eu consegui trocar as primeiras palavras com você. Nunca te perguntei, mas imagino que a sala onde você estava deve ter ficado muda feito a minha.
“Câmbio! Câmbio! Alguém na escuta?” – Esse nem é o protocolo, acho que assisti filmes demais. Mas eu já estava cansado naquela hora, estava há horas falando à esmo naquele microfone. “Sakadt uler”, você respondeu. Eu quase esqueci de respirar! Você podia até estar declarando guerra naquele momento, mas eu parecia uma criança diante de um brinquedo novo.
A gente nunca explicou direito sobre o que falamos naqueles dias. Eu sem saber como sua língua funcionava, você sem saber a minha. O governo daqui tentou colocar outro no lugar, mas você nem imagina o quanto eu briguei para continuar naquela conversa sem sentido com você. Eventualmente aceitaram e me deixaram continuar.
Ainda bem que os meses se passaram e começamos a trocar sinais com imagem. O mundo aqui estava em polvorosa! Ninguém mais conseguia esconder que um planeta “perdido” estava cruzando nosso sistema solar, e mais incrível ainda, habitado por uma civilização inteligente! Só se falava disso. Quando surgiram as primeiras imagens de vocês, ou melhor, de você, não havia uma tela por aqui que não estivesse mostrando sua face.
Viramos duas celebridades, amigo. Eu ainda dou risada quando lembro dos seus infantes usando roupas com a minha cara estampada! Nunca me imaginei chamando atenção dos outros nessa vida, e da noite para o dia, eu sou o ser humano mais famoso de Laptriz. Um mero operador de rádio! Pena que meus pais não viveram para ver isso… Me chamaram para dar entrevistas umas dez vezes mais por aí do que por aqui.
Mas o sucesso não subiu à nossa cabeça, não é mesmo? Continuamos amigos mesmo com toda aquela atenção. Outros daqui e daí clamaram o título de primeiros a entender a língua oposta, mas eu duvido que alguém tenha se entendido tão rápido feito a gente. Não sabíamos todas as palavras e nossos rostos são completamente diferentes, mas a gente sempre sabia quando o outro estava fazendo uma piada.
A história do seu planeta e do seu povo me deixava embasbacado, mesmo escutando tudo pela enésima vez. Um planeta sem estrela para orbitar, alimentado pela energia de seu interior, uma civilização inteligente que se desenvolveu sem nunca ter pisado na superfície de seu planeta… vocês são a prova da força da vida. Aprendeu-se muito aqui na Terra estudando vocês.
E com certeza devemos demais à vocês. Antes do seu planeta aparecer na nossa vizinhança, tínhamos dificuldade de entrar em acordo sobre qualquer coisa. Tudo era motivo para disputas, guerras… mas as coisas mudaram. Claro, aqui ainda passa longe de ser uma utopia de paz e amor, mas… as coisas mudaram.
Primeiro pela fascinação. Tirado do caminho o risco de uma colisão – o que assustou muita gente nos primeiros meses – os nossos daqui mergulharam numa jornada de aprendizado e curiosidade como há muito não se via. Tudo sobre vocês era novidade. E como a tecnologia de vocês não estava tão atrasada assim em relação a nossa, foi fácil trocar figurinhas.
Nossas culturas acabaram todas misturadas. Sabe aquele esquisitão com as presas cortadas que seus filhos tanto gostavam alguns anos atrás? A música dele está tocando direto por aqui. Aposto que o fã-clube dele aqui na Terra é maior do que o daí! Tem uma garota aqui na vizinhança que até casou à distância (seja lá como isso funciona) com um dos seus jovens. Nem mesmo as religiões brigaram tanto entre si. Deus ou Mozy, dá no mesmo para quase todo mundo…
Saber que não estamos sozinhos no Universo realmente coloca as coisas em perspectiva. Eu diria que acalmamos um pouco as disputas mesquinhas por poder só pela curiosidade e pelos novos objetivos que fomos nos colocando. Primeiro foram as visitas. Vocês vão nos perdoar por todo lixo que colocamos na órbita do seu planeta, mas era nossa chance de ver um pouquinho mais de perto nossos vizinhos.
Durante muito tempo se falou de levar alguns de nós até vocês, mas levar gente para Marte já é um problema, imagina para além da órbita de Júpiter! E a viagem até aqui tem todos os problemas que vocês sabem melhor do que eu. Muitos por aqui pensaram em planos mirabolantes para até prender seu planeta na órbita do nosso Sol. Ou mesmo para usar grandes naves para trazê-los para cá. Você poderia morar aqui em casa, aposto que nossas famílias iam se dar muito bem.
Imagina nossos filhos brincando juntos? Quem sabe você poderia finalmente me explicar a graça daquele esporte maluco com as três bolas que vocês tanto gostam por aí? Vocês não gostariam de tanta luz, mas tenho certeza que encontraríamos um jeito de acomodar nossos amigos.
Mas depois de tantos anos, sabemos melhor do que planejar um encontro, não é mesmo, amigo? Os anos passaram, e os cálculos todos deram no mesmo: vocês não seriam capturados pela gravidade do Sol. Eu sabia que eles estavam certos, mas como eu queria que estivessem errados. Fomos nos distanciando… nada de vocês desacelerarem e resolver fazer a visita permanente.
Sinto falta das nossas conversas. As janelas de oportunidade para comunicação ficaram cada vez mais curtas, de vídeo para áudio, de áudio para texto. De texto para nada. Frequências todas tomadas por governos e poderosos, mensagens de suma importância, creio eu. Tive que fazer um grande esforço para colocar essa mensagem na última transmissão. Depois dessa, as antenas que vocês tem não vão mais conseguir captar as nossas mensagens.
E vocês terão nos deixado. Siga em paz. Seja para onde for que seu valente planeta estiver seguindo, como sempre contra todas as probabilidades, saiba que você deixou um grande amigo por aqui. Nós não vamos esquecer vocês.
Câmbio final.
Gatoi Moris é o cara!
Quando eu o primeiro parágrafo a primeira coisa que me veio à mente foi o The Wow! Signal. Sobre o texto, acho que emociona pessoas mais sensíveis.
Não foi gay nem nerd, foi triste. Triste constatar que é mais fácil sentir simpatia e saudade de um alien fictício do que da maioria dos seres humanos.
Somir,
Isso foi muito bom. Bom mesmo!
É quase como se você estivesse emocionalmente vulnerável e sensível.
Parabéns Somir. Parecia que eu estava lendo Ray Bradbury, espero que você veja isso como um elogio.
Friki.