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Imediatistas.

Imediatistas.

| Sally | | 52 comentários em Imediatistas.

Estamos criando uma geração de pessoas mimadas com baixíssima capacidade de frustração. Adultos que se comportam como crianças ou adolescentes: imediatistas, reagem mal a um “não” e perdem as estribeiras quando algo não sai como querem. De onde vem esse despreparo todo? Não sei ao certo, mas tenho algumas teorias. A de hoje é: boa parte da culpa é dos smartphones. Smartphones são aqueles celulares que funcionam como computadores. Neles se pode ouvir música, assistir vídeos, filmes, acessar a internet, tirar fotos, gravar vídeos e fazer quase tudo nessa vida.

Sim, o Smartphone me parece um forte componente dessa babaquização do brasileiro. Acho que posso falar de camarote, pois eu sou daquela que eu apelidei de Geração F (aquela que só de fode), eu vi o mundo com e sem internet, com e sem a maioria dos avanços de uso ostensivo nos dias de hoje. Eu estava lá na hora da transição. Convivi de perto com pessoas da geração AI (antes da internet) e DI. E a diferença é gritante, nem tanto pela internet, mas pelo acesso a qualquer tempo à internet que o Smartphone proporciona. Vamos a um rápido retrospecto.

Eu lembro do tempo em que, quando se queria falar com alguém, era preciso marcar uma hora para ligar para a casa da pessoa. Era assim: você dizia que ligaria entre tal e tal hora, para que a pessoa se programe para estar em casa. Não havia telefones móveis. Na verdade, nem mesmo sem fio. Você tinha que conversar sentado ao lado do aparelho. A pessoa ficava plantada ao lado do aparelho esperando ele tocar.

E ligar não era uma tarefa fácil. Muitas vezes o telefone não dava linha assim que você levantava o gancho, então, você tinha que esperar pela boa vontade do serviço precário. Quando finalmente o sinal sonoro da linha se fazia ouvir, tinha que discar o número, não em botões, mas naqueles discos com buraquinhos mesmo. E rezar para a ligação completar, porque muitas vezes ela não completava. Ao final desse processo tumultuado, era bem possível que a hora marcada para ligar já tivesse passado e a pessoa já tivesse saído de casa. Paciência, você era obrigado a passar pelo constrangimento de falar com a mãe da pessoa, ou com qualquer um. Era randômico, nunca se sabia quem ia atender ao telefone.

E quando você marcava um cinema com uma pessoa, marcava o horário e ponto final. Em caso de atraso, só era possível avisar com sinais de fumaça. Não havia celular, não havia como contatar a pessoa. Passei por um período onde não era possível ter controle algum da situação, a pessoa simplesmente ficava indisponível. Era você e seu improviso.

Venho de uma geração que, quando queria escutar uma música que gostava, tinha que ficar horas ouvindo rádio para, com sorte, quem sabe, conseguir gravar essa música (cortada e cheia de vinhetas) em uma fita cassete. Discos eram caros e não estavam disponíveis de imediato. Havia um delay entre o lançamento de uma música e o disco. E, ainda assim, o disco continha poucas músicas e todas do mesmo artista. Isso quando algumas faixas não vinham riscadas da fábrica por conta da censura.

Eu sou de um tempo que, quando você precisava de uma informação, tinha que ir a uma biblioteca pesquisar nos livros. Se sua família tivesse alguma condição financeira, você poderia ter em casa a maldita enciclopédia Barsa, que era uma compilação dos principais temas em dez ou doze livros, distribuídos por ordem alfabética. Uma espécie de Desfavor Explica encadernado, só que sério, sem humor.

Se precisasse falar com alguém em outro país, tinha aquele processo sofrido do telefone, e falava-se correndo, contando os minutos, porque era muito caro. Muito caro mesmo. A opção era escrever uma carta, à mão, e torcer para que ela chegue ao seu destinatário, processo este que poderia durar mais de um mês. Daí o destinatário respondia e demorava mais um mês para a resposta chegar.

Estes são apenas alguns exemplos, um pincelada por alto do que me veio à cabeça agora, de como era minha realidade nos anos 80 e princípio dos anos 90. Sobrevivi e vi o mundo mudar. Por conta da minha idade, não pude me dar ao luxo de não me adaptar às mudanças. Quem precisa trabalhar tem que se adaptar ao que vier. Tive que aprender como funcionava tudo novamente: tecnologia, sociedade, o novo ser humano. E, vou te falar, desprezo esse novo ser humano pós internet e pós Smartphone!

Hoje, décadas depois, a realidade é outra. Se você quer ouvir uma música, elas estão todas, TODAS disponíveis de forma imediata e gratuita na internet. Podem ser acessadas de imediato. Você pode montar sua lista de músicas, pegando uma de cada cantor. Podem ser ouvidas de imediato, em qualquer lugar: do seu celular, do carro, do computador. Pode manter ela salva e ouvir quantas vezes quiser, mudar, editar, acrescentar. Tudo a um clique, em poucos segundos. Sou grata, é um tremendo benefício. Mas sou grata porque vivenciei o que existia antes. Quem já nasceu com este benefício tem uma visão diferente.

Hoje, quando preciso falar com alguém, ligo para o celular da pessoa. É dela, só dela, sei que ela vai atender. E se não puder atender, fica registrado ali que eu liguei, ela retorna quando puder. E se, por um acaso, esta forma de comunicação não der certo, tem os SMS ou o Whatsapp, que inclusive me indica quando a pessoa efetivamente leu a minha mensagem. Na pior das hipóteses, mando um e-mail, que a pessoa pode acessar a qualquer momento do seu celular. Não apenas isso, como o celular dá um alerta de que chegou um e-mail. As pessoas estão umas ao alcance das outras de imediato.

Se antes eu marcava um cinema às 14h e, se a pessoa só aparecesse às 18h, era um infortúnio inevitável, agora as pessoas se emputecem se tentam falar no celular com você e você não retorna em meia hora: “que falta de respeito! Estou tentando falar com você faz um tempão!”. Eu sorrio e penso o quanto essas pessoas são mimadas. Tudo tem que ser na hora, tudo tem que ser imediato. Pobres coitados, não tem capacidade nem sabedoria para esperar. Se um dia, por um desses twists da vida que depois viram tema de filme, essas pessoas tiverem que se virar sem internet e smartphones se tornarão retardados sociais, totalmente improdutivos.

As bibliotecas estão em extinção. A Barsa provavelmente já está extinta. Não que eu ache isso ruim, o acesso à informação deveria ser um sinal de progresso. O grande problema é como esse acesso é usado. O Brasileiro Médio usa da pior forma possível: em vez de fazer um curso de inglês online gratuito, fica vendo fofoca, rede social e outras babaquices – e depois reclama que ganha mal, mesmo sem falar mais de um idioma. Hoje, se você quer uma informação, puxa seu smartphone e procura no Google, onde estiver. Desde o endereço de um restaurante até o nome daquele ator que você não consegue lembrar.

O que você não sabe é que isso está gerando consequências cerebrais. Cada vez que esquecemos temporariamente de uma informação (aquela sensação de que ela está na ponta da língua mas não conseguimos lembrar, sabe?) e corremos para o Google para colar, deixamos de exercitar nosso cérebro. O cérebro, tal qual como os músculos, precisa de exercício para não se atrofiar. E ultimamente o ser humano não tem dado muito exercício ou desafio a seus cérebros. Os resultados já se fazem sentir em algumas pesquisas científicas. Sim, Meus Amores, é oficial, estamos emburrecendo. Da próxima vez que você não lembrar de algo, force seu cérebro em vez de correr para o Google. Para o seu bem.

E não é apenas o cérebro quem sai perdendo. Retomando a linha de raciocínio do primeiro parágrafo do texto, estes “facilitadores” trazidos em uma primeira geração pela internet e, em uma segunda geração pelos smartphones, estão criando uma geração mimadinha, imediatista, incapaz de lidar de forma decente com frustrações. Tudo tem que estar disponível, tudo tem que ser imediato, ao tempo de um toque na tela. O que sai disso causa indignação.

Vejo no dia a dia, em lojas ou lanchonetes, crianças que não conseguem sequer compreender o conceito de indisponibilidade: não tem a roupa que você quer, não tem o sabor de sorvete que você quer, não tem o numero de sapato que você pediu. Crianças confusas olham para os pais, com um olhar indignado e confuso. Como assim “não tem”? O que significa “não ter”? Algo indisponível? Que merda de loja, que merda de lugar, que merda de vida. Um absurdo algo não ter. Crises de choro, crises de raiva, pequenos seres humanos desconcertados.Xinga a vendedora, xinga a atendente, xinga a garçonete, alguém tem que pagar pela angústia que estão sentindo, pois eles simplesmente não sabem o que fazer com essa novidade.

Alguns adultos com a cabecinha mais fraca também estão sucumbindo. Querem algo e querem agora, não sabem esperar. Claro que na vida invariavelmente se apresentam situações onde somos obrigados a esperar, e eles, como qualquer outro ser humano, são obrigados a esperar. Esperam. Mas esperam contrariados, putos, revoltados, xingando, de mau humor, transtornando a si próprios e a aqueles que os cercam com uma revolta desmedida. Enquanto políticos roubam dinheiro que deveria ser destinado a comida, escolas e hospitais, estes seres humanos se descontrolam porque não tiveram seus desejos individuais desimportantes atendidos de imediato.

Lembro de uma experiência que fizeram com crianças em um desses documentários do Discovery Channel, para avaliar sua capacidade de abstração de acordo com sua idade. Pegavam crianças bem pequenas e davam a elas duas opções: receber uma bala no momento, de imediato, ou cem balas meia hora depois. As crianças bem pequenas, que não tinham noção de abstração, preferiam uma bala naquele momento. Coitadas, não conseguiam ver mais longe e perceber que o ganho de UMA bala de imediato gerava um enorme prejuízo mais para frente. Por causa do seu imediatismo deixavam de ganhar tanta coisa que nem conseguiam entender… Pois é, tem adulto que anda agindo assim.

O homem é uma criatura de hábitos. Aprendemos a lidar com as situações à medida que passamos por elas. Atualmente, estamos sendo expostos cada vez a menos frustrações no dia a dia. A vida como um todo nos dá centenas de frustrações, mas na nossa rotina diária, elas estão rareando. E, no geral, as pessoas estão reagindo muito mal a isso. Estão desaprendendo a lidar com frustrações. Apresentam reações exacerbadas quando não são atendidas ou quando são contrariadas. Mobilizam o Judiciário para processar quem emitiu uma opinião negativa a seu respeito, porque discordar ofende. Processam pizzaria porque a pizza não chegou em meia hora. Processam o condomínio porque os funcionários não o chamaram de “Doutor”. O ser humano está se tornando um pau no cu.

Tire alguns minutos do dia de hoje para refletir como você anda se comportando quando as coisas não saem como você quer. Reflita poucos minutos sobre a sua postura diante de pequenas frustrações do dia a dia. Pequenas mesmo, coisas como o motorista da frente demorar para acelerar quando o sinal abre ou sua encomenda não ter chegado. Faça uma análise à luz do bom senso e veja se sua reação é proporcional.

Minha geração F passou por muita coisa. Vimos mudanças grandes, fomos forçados a nos adaptar a elas diversas vezes. Não tivemos direito a acomodação. Nossa realidade mudou radicalmente diversas vezes e tivemos que nos adaptar. Cansa, mas é bom, porque temos perspectiva. Para quem, assim como eu, nasceu em um tempo onde seu futuro era determinado por quanto você estudava e, de uma década para a outra, viu estudo valer muito pouco e contatos/social valerem quase tudo, a flexibilidade é questão de sobrevivência.

Fica a dica: seja mais flexível. Não seja mimadinho. A vida não é um smartphone onde você sempre consegue tudo que quer de imediato. Saber ajustar suas expectativas quando as coisas saem do script, na minha opinião, vai ser o grande diferencial dos novos tempos. Pratique sua capacidade de adaptação. Pratiquem a resiliência, em breve ela, como qualquer coisa que é rara, será muito valorizada.

Para me chamar de velha, para me chamar de bunda mole ou ainda para reclamar que este texto não era o que você queria ler: sally@desfavor.com


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