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220v

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| Desfavor | | 28 comentários em 220v

Quero começar dizendo que eu não gostava de Paulo Gustavo. Na contramão de tudo e todos, eu achava seu humor forçado, zorratotalizado, uma caricatura de si mesmo. Em tempos remotos, quando ele ainda não era tão conhecido, assisti “Minha Mãe é uma Peça” e só não levantei e fui embora no meio por questão de educação. Talvez pela identificação cultural zero de uma estrangeira vendo as mazelas de uma mãe da Zona Norte pormenorizadas, não sei. Detestei.

O mundo deu voltas e eu acabei parando na sua nova peça, “220 volts”. Confesso, só fui porque ganhei o ingresso. E fui cheia de preconceito. Fui descrente, preparada para mais uma dessas peças onde todo mundo gargalha e eu fico quieta e constrangida me perguntando qual é o meu problema por não achar graça naquilo que é tão engraçado para o resto do mundo. Mas, como dizem, só muda de ideia quem as tem. E eu mudei.

Grata surpresa. Não apenas ri, me diverti, como ainda me surpreendi com a superprodução que é “220 volts”. Um show com tudo na medida certa: desde o tempo de duração até o figurino. Tudo redondinho. Paulo Gustavo sem as amarras da TV mostrou um humor que faz tempo eu não presenciava. Vale a pena, mas não leve sua avó. É um humor adulto e moderno demais para certos grupos.

O espetáculo é dividido em sketches, onde ele dá vida a seis personagens femininos diferentes com um humor ferino, que pode ser considerado ofensivo por muitos. Em diversos momentos ele ri dele mesmo, um mérito nos dias de hoje. O que mais me encantou, entretanto, foi a forma como ele conjugou humor com superprodução, uma ideia que, até então, nem passava pela minha cabeça. O humor nesse estilo, politicamente incorreto, geralmente vem na forma daquele standup clássico, com um comediante, um microfone e um banquinho. Pois com Paulo Gustavo vem com cara de musical da Broadway e a mistura deu certo!

Na contramão da TV, onde mulher sarada semi-nua abunda (com trocadilho, por favor), a peça conta com dançarinos que fazem Khal Drogo parecer raquítico. E são dançarinos MESMO. O que pode ser um deleite para alguns, pode ser um constrangimento para outros, se o seu namorado for ciumento, vá preparada(o) para pegar leve nos olhares. Eles dançam em diversos momentos da peça, sempre com pouca roupa.

Vamos às personagens. A peça começa com Paulo Gustavo vestido de Beyonce. Isso mesmo. Parado, em silêncio, já desperta risos. Ele encarna uma cantora deslumbrada que destrata tudo e todos. Bacana, mas achei o menos divertido. É uma espécie de aquecimento para o que está por vir, os bailarinos se destacam mais do que a personagem.

Depois vem a mulher feia, que fala sobre beleza e feiura em um grau de sinceridade engraçado de tão cruel que é. Eu ri, eu ri de verdade. Um humor “dedo na ferida” que não encontra lugar na televisão. Pequenos detalhes que talvez escapassem a um hetero são dissecados de forma ácida. Uma percepção cruel mas verdadeira dos padrões estéticos dita com todas as letras, sem rodeios.

A terceira personagem é também a mais conhecida: a Senhora dos Absurdos. Uma socialite preconceituosa que reclama de negros, gays, pobre e outros grupos de forma escancarada. Fosse qualquer outro humorista dizendo as mesmas coisas em um standup, já estaria respondendo a um processo, mas Paulo Gustavo tem o dom de fazer as piores barbaridades saírem com uma leveza única da sua boca. Faz tempo que não rio tanto, superou minhas expectativas.

A personagem seguinte é uma apresentadora de televisão nos moldes da Ana Maria Braga: falsa, estelionatária e mercenária. Uma crítica a esse tipo de programa e a quem os assiste. Provavelmente mais da metade da plateia, mas ninguém pareceu se importar (ou sequer perceber). Verdades implícitas ditas de forma explícita arrancam risos da plateia e, em algumas mentes privilegiadas, deixam mais do que um rastro de humor: induzem à reflexão.

Depois veio a maior surpresa: uma personagem baladeira que flerta com todo mundo mesmo tendo namorado. Essa postura é mostrada como ridícula, apontando o ridículo da periguetagem. Na contramão desse feminismo mal entendido, onde mulher para ser moderna e independente tem que ser promíscua, um humor fácil e físico expõe indiretamente uma postura vergonhosa adotada pela mulherada hoje em dia. Sem medo de ser tachado de machista ou qualquer outro “ista”, o quadro ridiculariza sem dó essa coisa feia que é a promiscuidade. Novamente, se metade das frases saíssem da boca de humoristas comuns, teria gritaria, acusação e processo. Mas Paulo Gustavo tem o dom de fazer o humor prevalecer. Já ganhou status e simpatia que lhe conferem carta branca para dizer o que quiser.

A última personagem é uma favelada que almeja a fama através de um concurso para se tornar madrinha de bateria de escola de samba. Novamente, flertando com o desastre, pois o grau de ofendibilidade dessa gente baixa-renda é enorme. E, novamente, o humor fala mais alto. Ele faz piada com pobre sem amarras e não ofende. Admiro gente que não ofende. Eu ofendo mesmo quando não quero ofender. Não que tivesse algum pobre na plateia, porque né, infelizmente o salário mínimo não permite. Mas sempre tem um rico que toma as dores dos pobres mesmo sem procuração e se ofende por terceiros. Nada. Todo mundo riu.

Talvez pela vertente física do seu humor o povo consiga entender que de fato é humor, é piada, não deve ser levado a sério. A capacidade de abstração do brasileiro médio é similar à de um peixinho dourado. Ao ver um homem com um maiô cheio de cristais, peruca e batom fica claro, fisicamente, que se trata de humor e nada ali deve ser levado a sério. Já quando um comediante de standup aparece de cara limpa fazendo piada, a tendência é levar a sério e confundir o que foi dito com suas opiniões pessoais. Talvez o carisma e o jeito naturalmente engraçado, que eu chamo de jeito Luiz Fernando Guimarães de ser, autorizem Paulo Gustavo a falar o que nós, reles mortais, não podemos.

Todos os quadros são de uma agilidade impressionante. Também são permeados por inúmeras referências, algo que muito me atrai. Piadas internas, eastereggs e uma pitada de improviso dão o toque final.Um detalhe que me surpreendeu: como ele dança. Quando dança funk, no quadro da periguete, dança como uma mulher da comunidade. Quando dança hip-hop no da cantora, parece a Beyonce. Quando samba, parece uma passista. Ele dança tudo e dança bem, deixa muita mulher no chinelo. O filho da puta deve ser tímido, pois nas ocasiões que o vi em festas ficava de mansinho no dois pra cá, dois pra lá, balançando a perninha de leve. Paulo Gustavo quebra tudo, parece invertebrado.

Muito se criticou a “falta de dramaturgia” da peça. Ora, francamente, o que não pode faltar é humor, e isso tem de sobra. O espetáculo não exige dramaturgia, pois pende mais para um standup do que para o modelo clássico de teatro. Na verdade, esse é o maior mérito do espetáculo: uma junção de vários formatos, criando um formato novo. O novo nem sempre tem que ser algo que nunca foi feito, o novo pode ser a junção de duas coisas que existem separadas criando uma terceira coisa mais bacana e mais completa. E foi isso que ele fez. Então, vai se catar quem disse que essa peça é mais do mesmo, faltou sensibilidade e inteligência para ver que não é.

Também se critica que Paulo Gustavo sempre se veste de mulher, que só sabe fazer personagens femininos. Curioso, não me lembro de ninguém criticando os Beatles por só tocar rock. Alguém pediria que os Beatles tocassem sertanejo? Não, né? Porque quando alguém é muito bom no que faz, QUEREMOS ver mais do que a pessoa faz, porque por mais que seja o mesmo, é bom pra caralho. Deixa o Paulo Gustavo se vestir de mulher, porque ele é bom no que faz. Sabe o que é isso? É vontade de ser do contra somada à falta de argumento para falar mal!

Marcus Majella também me surpreendeu. Ele abre o espetáculo e participa em vários momentos com desenvoltura e domínio de público. Faz aquele humor sem esforço, sabe? Natural. A impressão que passa (correta ou não) é que ele é assim no dia a dia também.

Já fui ao teatro ver musicais muito bons, com uma produção impecável, com uma estrutura hollywoodiana. Já fui ao teatro ver comédias engraçadas que me fizeram rir muito. Mas ambos ao mesmo tempo, só Paulo Gustavo. Me conquistou.

Em tempo: ganhei o convite por outras razões que não o Desfavor, não trabalhamos com permuta aqui porque não prostituímos nosso intelecto. Estou falando bem de coração, e não porque fui paga para isso.

Para reagir mal ao me ver mudando de opinião e encarar isso como uma traição, para reclamar do preço do ingresso ou ainda para pedir mais detalhes sobre os dançarinos: sally@desfavor.com


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