
Tecnocomunismo.
| Somir | Dés potas | 11 comentários em Tecnocomunismo.
Quase metade da riqueza mundial (48%) está nas mãos de 1% da população. Essa informação é do banco Credit Suisse, e apesar de nossa já folclórica desconfiança dos suíços aqui na RID, os dados assustam. Não só pela injustiça com 99% dos restantes, mas pela saúde do ‘organismo humanidade’ como um todo: isso não é só desequilíbrio hormonal, é um câncer absolutamente fora de controle.
Sim, acordei comunista hoje. Mas perdoem-me se não vou me render ao maniqueísmo de pobres operários e maligna burguesia: já passou do ponto de ser a vontade das pessoas. Voltando a analogia do organismo, se cada um de nós é uma célula de um só ser vivo, um por cento delas respondem por metade do corpo. Duvido que qualquer ser consiga sobreviver com um câncer dessas proporções.
Mas mesmo assim, seguimos em frente. Vantagens de um organismo especializado em lidar com crescimentos tão absurdos assim. Se uma das células aumenta, outras se espremem para acomodá-la. A teoria de que riqueza ‘escorre’ para camadas mais carentes da população está sendo provada errada bilionário atrás de bilionário. Nossos mega-ricos atuais são mais eficientes para concentrar renda do que os de outrora.
E a disparidade aumenta. Tamanhas concentrações de riquezas ocorrem num mundo começando a lidar com escassez de recursos. Sem consideráveis avanços tecnológicos a tendência é que cada vez mais de nós concorramos por cada vez menos. Se havia uma certa margem de respiro no acúmulo de fortunas no passado, atualmente estamos perto demais do limite de quanto se pode ter sem retirar de outros.
Não que não tenhamos tentado criar riquezas virtuais suficientes para permitir uma expansão mais segura das divisas dos mais ricos: a pujante indústria dos bens virtuais está aí para não me deixar mentir. Já se pode ficar milionário ou bilionário escrevendo linhas de código. Uma considerável parcela do dinheiro em circulação do mundo já está atrelada à dívidas ao invés de riquezas ‘físicas’ como o ouro.
Como qualquer organismo, o que compreende a humanidade tem seus mecanismos de controle e proteção. A questão é que eles funcionam por um tempo limitado se a causa da doença não estiver sendo enfrentada. Criamos dinheiro e bens virtuais para dar espaço para as células cancerígenas crescerem, mas essa solução não deixa de ser paliativa. O problema não é falta de recursos para crescer, é a falta de espaço para crescer.
Num mundo ideal, dados como os revelados pela Credit Suisse deveriam fazer todo mundo parar e repensar nosso modelo de desenvolvimento. Alguma coisa claramente está errada e precisa ser tratada imediatamente (se é que ainda dá tempo). Um organismo com tanta concentração de recursos em tão poucos lugares está obviamente doente.
Talvez falte a percepção de como estamos todos juntos nessa. Mas eu apostaria principalmente na percepção de que ser uma célula cancerígena é uma boa coisa na nossa sociedade. As pessoas aspiram por crescer sem controle. Gastam fortunas para descobrir as melhores formas de viver em desequilíbrio com duas células irmãs. E aqui eu não vou ser idealista: não se pode culpá-las demais por isso. Aliás, não posso me culpar por isso. A ideia de se tornar obscenamente rico é tentadora.
E essa aspiração ao desequilíbrio provavelmente está nos genes. De modo simplificado, qualquer organismo vivo complexo é uma zona de guerra entre elementos desesperados para vencer. Não existe ‘justiça social’ ou algo que o valha entre células: falta até mesmo consciência para tal. O tão celebrado equilíbrio da natureza é resultado direto de empates entre partes querendo se dar bem sozinhas custe o que custar.
Provavelmente alguns de nós enriqueçam sem parar pelo mesmo motivo que cachorros vão comer até passar mal em praticamente todas as chances que tiverem: não existe nenhuma trava natural para parar de levar vantagem. Oras, nós engordamos até os limites da forma humana pelo mesmo motivo… as células de gordura aumentam para acomodar mais energia potencial até explodirem. Não existe ‘já está bom’ na natureza. Nunca está bom.
‘Suficiente’ é um conceito racional. Uma aposta contra tudo o que nos permitiu evoluir até aqui. Definir o suficiente é assumir o risco de fazer um cálculo errado. Nossa história de acúmulo de riquezas é regida pela ideia de que é melhor sobrar do que faltar. Novamente, não podemos recriminar demais essa mentalidade. É mesmo melhor sobrar do que faltar.
Todo esse papo está aqui por um motivo, e eu aposto que a grande maioria de vocês vai discordar da minha conclusão. Confesso que a ideia me assusta, que enxergo a quantidade enorme de problemas que podem surgir dela, mas peço apenas que você a analise de mente aberta, mesmo que só entretendo um pensamento estranho por alguns momentos: o orgânico já deu o que tinha que dar. Está na hora de máquinas e computadores decidirem mais coisas por nós.
Inclusive o quanto é o suficiente. Nós somos terríveis nisso. Depois de alguns milênios de extremo interesse nessa questão, tudo o que temos para mostrar de resultados é um sistema onde metade de tudo está nas mãos de um centésimo de todos. Foi um erro catastrófico. Humanidade, eu sei que você não quer ouvir isso, mas… falhamos. Tivemos várias ideias interessantes nesse caminho todo, mas não deu certo.
Como podemos basear um sistema todo num cálculo que nenhum de nós consegue fazer com segurança? Como garantir que esse cálculo seja feito por alguém que não padeça do mesmo medo de falhar? Oras, troquemos o alguém por ‘algo’. A máquina não tem medo de errar. Aliás, a máquina nem sabe errar.
Se um computador decidir por nós o quanto é suficiente, poderemos nos concentrar mais em aproveitar o que desejamos e em definir metas para alcançá-las. Não estou advogando distribuição forçada de renda como solução eterna, forçando os mais aptos a trabalhar para vagabundos, estou dizendo que se a pessoa souber o quanto vai precisar acumular para conseguir as coisas que quer e não puder acumular mais enquanto não tiver outro objetivo, garantimos que as pessoas só vão trabalhar o quanto quiserem conquistar na vida.
Não estaríamos mais recompensando ganância cega. Se o dono da empresa decidiu que quer ter quatro mansões, cem carrões e sustentar toda essa riqueza, ele vai receber só o suficiente para isso. Quem define é a máquina. E ele só poderia receber mais se desse objetivos para ela (e, é claro, pudesse produzir essa riqueza). O dinheiro restante seria dividido igualmente entre todos.
Existe muita riqueza nesse mundo, e boa parte fica entrevada em fundos de investimento que só pensam em continuar o crescimento descontrolado. De uma certa forma, o dinheiro ‘parado’ desse um por cento da população seria emprestado para o resto do mundo, sem necessariamente reduzir os padrões de vida exagerados que tantos de nós aspiramos ter um dia.
Claro, a máquina deste exemplo deveria funcionar sem intervenção humana direta. Os computadores deveriam assumir o controle da humanidade e tomar decisões por nós. Decisões que não estejam contaminadas por irracionalidade e mentalidade de escassez. Os computadores saberiam quanta energia, água e alimentos temos à disposição. Basta definir o mínimo para subsistência e não deixar faltar para ninguém.
Porque já temos como alimentar e dar condições mínimas de vida para todo mundo, o que falta é distribuição. E como o ser humano, até com razão, desconfia muito um do outro, é difícil convencer o 1% a dividir sua riqueza. E não posso ser inocente: o valor do dinheiro desabaria, com certeza. Sem especulação os mais ricos continuariam com todas suas vantagens, mas os bilhões minguariam para milhões, numa espécie de deflação global até voltarmos a ter valor ‘real’ de troca nas moedas.
Isso assusta muita gente. Isso tem toda a cara de tragédia… desde que, é claro, não seja um computador sem interesses próprios faça essa transição do virtual para o real. Por sorte é justamente isso que prego! A manutenção da liberdade pessoal e da possibilidade de vida de imensas vantagens sem abrir mão da justiça social. E com o passar do tempo é de se esperar que a proporção entre muito ricos e muito pobres desabe. Só vai se dar bem mesmo quem tiver objetivos ousados e capacidade de realizá-los.
O erro dos outros sistemas de distribuição de renda é não considerar o computador, nossa mais importante criação! Ele nasceu para estender a capacidade orgânica, e não estamos deixando que ele faça seu trabalho. E melhor, ele já nasceu sem o defeito de não saber o quanto é o suficiente! O computador é a NOSSA evolução. Enquanto não pudermos nos tornar um com nossa criação, que pelo menos deixemos ele resolver nossos problemas.
Começo a ver cada vez mais com olhos diferentes todas aquelas histórias de máquinas dominando o mundo. Oras, é justamente para isso que elas foram criadas. Resta a nós descobrir quando a capacidade delas será suficiente para nos liderar. Infelizmente, justamente o suficiente que não sabemos mensurar. Eu aposto que já chegamos nesse ponto. Mas aposto que você ainda não.
Vamos crescer descontroladamente o quanto ainda? Quando vai ser o suficiente? Uma hora ou outra teremos que pular de cabeça nessa questão.
Faz sentido. Afinal, o computador, originalmente era apenas uma máquina de cálculos…
Quem dera existisse o tecnocomunismo antes mesmo da ameaça de escassez da água!
Rumo a Matrix.
Nada como a incapacidade do ser humano de pensar coletivamente escancarada pelo capitalismo para nos mostrar a verdadeira natureza do Homem, e provar que o conceito de Humanidade não existe fora do utópico.
A competição e o acúmulo estão profunda e eternamente gravados em nosso DNA, e qualquer sistema sócio-econômico que os tente controlar nasce fadado ao fracasso. A beleza do Capitalismo é essa: ele não tenta. Pelo contrário, ele aplica Darwinismo às ideias (na forma de produto), o que, pra começar, é o que move a tecnologia.
Um sistema onde a competição é reprimida, ou é burlado, ou estagna mais que feudalismo. Um computador onde imputam os objetivos pessoais? O primeiro objetivo seria “ter mais que meu vizinho (depois que a cidade, que o país, etc)”.
A ideia de que a Humanidade precisa ser salva tem sua raiz no Cristianismo, e o Humanismo na sua tentativa de matar deus só transferiu a responsabilidade desse salvamento ao próprio homem. Como o homem salvar-se-á (uhull!) de si mesmo? Ou melhor: O que SIGNIFICA esse salvamento? Esqueceram de matar dualismo Bem-Mal do cristianismo.
O Bem coletivo global, que seria a direção do “salvar”, é, além de incompatível com a natureza humana, uma contradição de termos. Não existe bem e mal quando falamos de 7 bilhões de cérebros egoístas e pluriculturais.
Prefiro pensar na humanidade à deriva, como bem ela está. Qualquer direção que ela tome, para uma eventual melhor distribuição de renda, para uma melhora no IDH, ou mesmo para sua aniquilação, é só mais um evento na sua história, sem qualquer valoração moral.
Não estou dizendo que não acho que cada um deva buscar seus ideais, nem que não deveríamos tentar EDUCAR esses ideais pessoais. Mas que coletivamente esses ideais se dissolvem em algo intratável moralmente.
Ah, alguns comentários sobre a parte dos computadores serema nossa evolução, que esquecí. O Teorema da incompletude de Gödel implica limitações severas aos computadores como os conhecemos hoje (enquanto comparados ao cérebro orgânico). Esse Teorema declara que qualquer sistema formal (minimamente complexo) é incompleto, no sentido de existirem proposições não-demonstráveis nesse sistema. Em particular, isso se aplica às linguagens de programação.
Um computador (como o conhecemos hoje) não consegue fazer matemática (provar teoremas, não fazer contas) como um matemático, pois ele está preso dentro de seu sistema incompleto e não consegue fazer o que o cérebro faz: pensar no meta-sistema, refletir sobre as regras que é programado para seguir. (Mesmo que se programe “dois níveis”, ele sempre estará preso ao nível mais alto)
Há muita discussão nesse sentido no livro “Gödel, Escher, Bach”. Em certa parte, o autor propõe uma maneira de se “vencer” esse obstáculo, empilhando níveis e mais níveis de linguagem, tornando o sistema cada vez menos formal. Mas ele especula que aflorariam intrinsecamente nessa super-linguagem, características do pensamento humano, como o senso de estética e, pq não, emoções, ou uma personalidade inteira. Bem tipo o HAL 9000 do “Odisséia no Espaço”.
Quero dizer que “O computador é a nossa evolução” é um meio exagerado, por enquanto.
“Quero dizer que “O computador é a nossa evolução” é um meio exagerado, por enquanto.”
Até onde me consta, essa coluna é para ser meio-totalmente exagerada…
Tirando isso, da sua explanação sobre o assunto, concordo que meios “auto-ajustáveis” como o capitalismo costumam ser mais duradouros que os meios mais “ditatoriais”. Mas mesmo esses tem um limite de liberdade. O homem sozinho realmente tende a exageros inexplicáveis como usar toda a água do mundo para lavar calçada ou juntar muito dinheiro para ficar em uma conta corrente. Algum regulamento, algum meio de ajudar com o que o homem não se auto consuma tem que existir…
Educar os ideais pessoais. Apenas treinar o homem a perguntar “por quê?”. Por que acumular, por que ter tão além do necessário (até do prático). Por que gastar tanto tempo, precioso e curto tempo de sua existência nisso. Simplesmente fazer o cérebro racional falar mais alto que o instintivo, acho que já ajudaria. E é algo ao nosso alcance que pode ser ser obtido gradualmente.
Mas o bacana do des-potas é isso… levar o texto a sério! :D
O livro O Capital no Século XXI de Thomas Piketty joga gasolina nesta fogueira ao afirmar que “se o sujeito não nascer na riqueza, será bastante difícil enriquecer”.
Relatório do Credit Suisse atestando a concentração de riqueza seria a mesma coisa que a Souza Cruz monitorar alarmada o aumento de câncer de pulmão e de enfisema, afinal é uma das instituições que lideram o crescente ramo de consultoria a bilionários dos BRICs para aplicação de suas crescentes fortunas em empresas de paraísos fiscais, sobretudo os magnatas chineses.
De resto, um exemplo da pertinência do tema encontramos em Londres, onde já se discute no Parlamento formas de racionalização da propriedade urbana, pois já chegariam a dezenas de milhares os imóveis vazios, muitos deles prédios inteiros, em bairros centrais por conta dos bilionários russos, árabes e asiáticos que viram na cidade um excelente investimento, empurrando cada vez mais os demais mortais para as periferias.
O que fez acontecer isso: http://www.vice.com/pt_br/read/jovens-maes-ocuparam-apartamentos-vazios-em-londres-para-protestar-contra-a-falta-de-moradia
Antes dos catastrofismos que apareceram com força na década de 60 em diante, as Ficções Científicas tratavam com mais carinho das utopias em contraste com as distopias. Você está alinhado com o Isaac Asimov nesta visão, mas eu tenho um porém pra isto…
… a criatura é um espelho imperfeito do criador, a menos que ele seja infalível (o que não existe). Então, a chance de isto criar uma tecnocracia é muito alta.
Eu sou mais primitivista. O que falta é um ‘libera geral’ de armas de grosso calibre pros 7 bilhões de doidos neste planeta, e cada um por si. Pra mim, Hobbes já falou e não tem como – é todos contra todos. Sociedade, democracia, ambientalismo, comunismo, capitalismo, é tudo desculpa pra manter o câncer. Só anarquia salva, cada um define seus núcleos centrais (indivíduo, família, clã, kin, comunidade, etc) e se vira pra prevalecer contra os outros núcleos centrais.
Assim o é e assim será
Somir, um dos problemas da sua linha de argumentação é a falta da série histórica. Apesar da quantidade de riqueza virtual, se hoje o mundo está menos desigual do que há cem anos atrás o argumento do câncer cai por terra.