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Maldade.

Maldade.

| Sally | | 59 comentários em Maldade.

O conceito de “maldade” mudou. Talvez você não tenha parado para pensar nisso, talvez você discorde, mas no meu sentir, o conceito de “maldade” mudou tão radicalmente que eu não consigo concordar ou me adequar a ele. Vamos pensar no que é considerado “maldade” hoje em dia? Sim, porque o conceito que predomina para definir “maldade” não é nem o meu, nem o seu. É aquele aceito pela maioria.

Maldade. Faz o mal, causar o mal. O que é fazer uma maldade para você? Para o Brasileiro Médio, uma maldade é aquilo que a massa diz ser uma maldade. Uma maldade pode ser um texto contando o lado negro da gravidez, que “estraga” o “sonho” de muitas mulheres de uma gestação toda cor de rosa. Ou seja, chegamos em um ponto que falar qualquer coisa desagradável, por mais verdadeira que seja, é maldade. Se causa sofrimento a alguém, justificado ou não, com intenção ou não, é uma maldade.

A doadora de leite se ofendeu com a piada? É maldade. Neguinho se ofende por ser chamado de neguinho? É maldade. Você riu de uma pessoa que tropeçou e caiu na rua? Maldade. A intenção não conta mais, o que conta é a reação que se provoca em terceiros. E reações desmedidas, irracionais e histéricas estão sendo amplamente validadas. Agora quem dita o que é bom ou mau é quem se sente prejudicado. Se houve prejuízo ou sofrimento, paira uma presunção de dolo, de ato propositado e dificilmente isso será revertido.

Some-se a isso a hipocrisia, pois os mesmos que com facilidade te acusam de “maldade” fazem coisa tão “más”, se não piores. Porém se você tem uma postura social aceita, se proclama sua fé, se faz uma caridade, se doa uma cesta básica, se manda rezar uma missa, pode escrotizar à vontade. Ganha o direito de não respeitar a lei, de passar por cima dos sentimentos dos outros, de ser ingrato e de se beneficiar financeiramente de terceiros de forma indevida. O importante é aparentar ser bom, e não ser bom na essência.

E com isso, pessoas que apenas aparentam serem boas estão começando a acreditar sinceramente que são boas, pois a sociedade lhes manda essa mensagem. Hoje é bom quem aparenta bondade. Infelizmente a realidade é esta. Em breve, as próximas gerações não serão nem capazes de fazer essa distinção entre a bondade real e a bondade “para inglês ver”.

Nesse contexto, estou na pior posição possível, pois eu me tenho certeza como uma pessoa boa, mas “transpareço” ser uma pessoa má aos olhos dessa sociedade meio míope. Tenho o ônus de sacrifícios para ser uma boa pessoa somado ao ônus de cobrança e reprovação que pairam sobre uma má pessoa. Sensacional a combinação. Certeza que muitos de vocês se encontram na mesma situação que eu. Você é uma boa pessoa na essência mas é tratado socialmente como alguém que faz maldades, pela simples recusa em ter uma religião, fé, em fingir bondade ou em fazer um joguinho social.

Eu sou do tempo que maldade se aferia em atos, não em palavras. Mas hoje parece que, tanto maldade como bondade, estão umbilicalmente ligados aos discurso, ainda que os atos contradigam esse discurso. Isso porque a maior parte dos brasileiros é incapaz de fazer esse link, de refletir, de olhar para dentro e perceber que seu discurso não é compatível com seus atos. Sequer se dão conta que pregam uma coisa que não fazem ou condenam uma coisa que fazem. Isso se chama hipocrisia.

As pessoas se convencem que são boas com uma facilidade enorme. Fecham os olhos para seus deslizes morais e éticos, para sua ingratidão, para seu desamor e egoísmo e parecem iluminar seus pequenos feitos, como se quisessem subornar algum Deus em troca de que coisas boas aconteçam em suas vidas. O conceito de bondade está sendo engessado em um combo de puxa-saquismo, religiosidade e politicamente correto. E se você não adere, você é uma má pessoa. E tudo que acontece de errado com você decorre disso. E todo mundo acha bem feito. As pessoas torcem contra você, porque as pessoas geralmente preferem estar certas a ver uma pessoa querida se dando bem.

Sinto, estando certa ou errada, que aos poucos, sem que possamos identificar o exato momento da transformação, a verdade está virando sinônimo de maldade. E a hipocrisia, antes algo feio e condenável, está virando uma obrigação social, uma coisa boa, quase que necessária. Quem não se presta à hipocrisia apanha, é socialmente inapto. “Tem que fazer, todo mundo faz”, eles dizem.

O hipócrita é sempre bom, pois sempre prega a bondade e condena a maldade, apesar de praticá-la. Mas os atos não importam, importa o discurso. Estamos desaprendendo a questionar o discurso. Se Fulano diz tal coisa, é porque ele faz tal coisa, é porque ele é bom. Isso basta. Parecer bom basta. E se parecer bom basta, parecer mau também basta – para te condenar.

Questionar está virando defeito. Questionar está tão fora de moda que virou uma coisa “chata”, uma coisa que “enche o saco”. Senti um enorme alívio quando vi o Murilo Gun (que para mim, passa muito perto de um gênio) contando que todo mundo acha que sua esposa deve ter uma vida muito divertida ao seu lado, pois ele é comediante, faz piadas engraçadas, mas que na verdade a esposa dele “sofre” porque para conseguir construir essas piadas inteligentes ele está sempre questionando tudo, sempre querendo saber o porque de tudo. Pois é, pensar tem seu ônus. E as pessoas estão se poupando disso. Como consequência, acreditam em apenas um discurso de bondade.

Se falar uma verdade que magoa é maldade, melhor seria falar uma mentira que agrade e deixar a pessoa chafurdar eternamente na lama onde se encontra, sem alertá-la para sua condição? Aparentemente sim. Isso nunca vai entrar na minha cabeça. Eu gostaria de ser advertida se estivesse chafurdando na lama e de forma alguma me ofenderia ou me sentiria atacada por quem o faz. Me sentiria cuidada, isso sim. Mas os medíocres preferem seu ego em um pedestal, intocado, do que ouvir críticas. Críticas derrubam pessoas inseguras, os aleijados emocionais vão ao chão. E chamam isso de maldade. Reclame com seus pais, que não lhe deram autoestima. Quem se ofende com crítica tem que fazer terapia cinco vezes por semana.

Hoje, uma “boa pessoa” não fala uma verdade que magoa. Uma boa pessoa é aquela “alto astral” que está sempre feliz, que não questiona, que não problematiza. Essa gente “energia positiva”, essa gente “ousadia e alegria” que vê o meio copo cheio de otimismo é um retrocesso evolutivo, pois só ao identificarmos um problema podemos saná-lo e melhorá-lo. Mas são pessoas agradáveis de se ter ao seu lado, quando você não é uma pessoa inteira e segura, porque estão sempre falando coisas boas. Ótimo para quem não tem muita estrutura emocional. Universo Umbigo: se o que a pessoa falou ME faz mal, então é porque ELA É MÁ PESSOA.

Não importa, bacana é estar sempre elogiando, sempre fazendo a manutenção do ego alheio, sempre com “pensamento positivo”. Criticar é maldade, esses egos frágeis que só sabem seu valor perante os reconhecimento de terceiros entendem crítica como maldade. O politicamente correto e a egolatria de rede social estão transformando discordância e crítica em maldade/sofrimento. A massa se junta contra você, porque afinal, se você critica uma pessoa hoje, pode muito bem “se voltar contra” qualquer um deles amanhã. Não, não, críticas devem sempre ser silenciadas, preferencialmente com uma postura ofendida, que é para aprender a não fazer nunca mais.

Ao silenciar as críticas alegando que elas geram sofrimento e são maldade, nos desencorajam a criticar, a questionar, a pensar. Não o faça, ou você será taxado de chato, mau, depressivo. O pior é que de fato o comando VOCÊ É MAU gera auto-censura em muita gente. Ninguém quer ser mau, ninguém quer ir para o inferno, ninguém quer não ser aceito pelo grupo, ninguém quer que coisas ruins aconteçam em sua vida em retribuição à sua “maldade”.

E nessa, muita gente para de exercer seu senso crítico, por engolir que, de alguma forma, isso é maldade. Pois hoje eu queria te dizer uma coisa: NÃO É MALDADE. Liberte-se dessa escravidão intelectual onde questionar tudo é chato e criticar incomoda. O medíocre é não questionar tudo. É o conformismo do “deixa a vida me levar, vida leva eu”. Se você chegou até esta terceira página de um texto propositadamente enorme, você é melhor do que isso.

Resultado prática dessa palhaçada instituída: cada vez menos gente pensando, questionando, criticando, com medo de serem considerados “maus”, chatos, amargos, com medo de rejeição social e de alguma coisa horrível acontecer em suas vidas como punição por conta dessa suposta maldade. É um “manga com leite faz mal” moderno. Uma minoria à qual convém não ser criticada começou disseminando que criticar é ofensivo e mau e o resto comprou. Hoje, a situação está irreversível e você tem que escolher se “compra o barulho” de ser considerado mau (mesmo não sendo) ou se engole as críticas e em troca recebe um afago social como boa pessoa que você será. Nem preciso dizer qual foi a minha escolha, né?

Hoje, quem critica, seja o parceiro no relacionamento, seja o status quo, seja as convenções sociais, é tido como “polêmico”, como amargo, como mau. Algo que é normal e até mesmo sinônimo de inteligência e respeito em países evoluídos, virou chatice e maldade no Brasil. Bonito é ter pensamento positivo, fé, alegria e ser politicamente correto, coisas que convém muito a quem não quer que o povo pense. Isso é bondade hoje em dia no Brasil. Porque gente com pensamento positivo e fé não reclama, se fode sempre vendo o lado bonito da vida. Não, obrigada.

Para mim, pensamento positivo e fé como obrigação social são entraves à evolução. Não à toa que os países mais evoluídos e com melhores sistemas educacionais e menor índice de criminalidade são os países com maior índice de ateísmo. Lá as pessoas não precisam de fé. Não à toa que os países com sistema educacional que premia críticas e questionamentos estão no topo da qualidade de vida e IDH. Mas, como sempre, Brasilzão remando contra a maré e quase ninguém percebendo.

O problema não está em quem critica, e sim em quem se chateia por ser criticado. O problema está na cabecinha pequena de quem escuta crítica como ataque, como ofensa. Mas é o tipo de coisa que eu jamais perderia meu tempo dizendo “no mundo real”, porque são pessoas fora do alcance da minha mão. Só dá para dizer esse tipo de coisa por aqui mesmo. Em um mundo onde “The Secret” é bestseller e as pessoas acreditam que você “atrai” coisas boas com bons pensamentos não há diálogo possível.

Curioso que estas mesmas pessoas que se julgam boas (e ao meu ver, não o são), se fodem inúmeras vezes e parecem não contabilizar essa fodeção. Gente que teve uma vida desgraçada, que sofreu abusos sistemáticos, que passou por muita merda, se achando super abençoados por um determinado feito na vida. Fechar os olhos para o fato de que ser essa “boa pessoa” não gera o retorno esperado é tendência. Não importa o quanto a pessoa se fodeu, ela sempre se acha “abençoada”. Mas para perceber a fodeção alheia, essas mesmas pessoas são de uma perspicácia incrível.

Hoje, a maldade é imputada à crítica, ao questionamento, porque é o que convém. Amanhã ou depois, será imputada a outra conduta que seja inconveniente aos interesses vigentes. Prestem atenção ao mecanismo, e não às consequências dele, porque este mecanismo deu muito certo e vai se repetir. Não se deixem atribuir uma suposta maldade por algo que está incomodando a terceiros. Nunca.

O fato de te imputarem uma suposta maldade (ou qualquer outra coisa) não quer dizer que você o seja. Não tome para você tudo que te imputam. A verdade é que as pessoas sempre vão te julgar, independente do que você faça, então, faça o que quiser, porque as pedradas virão do mesmo jeito. Não aceite que sua maldade ou bondade seja determinada pelo olhar de terceiros, nem acredite em pessoas “boas” ou “más”, porque a bondade e maldade estão dentro de todos nós e, como bem disse o Somir no texto de sexta-feira passada, é tudo uma questão de ponto de vista.

Repense sobre o atual conceito de maldade, assim como repensamos juntos sobre o atual conceito de burrice e ignorância. Pode ser que atualmente você seja considerado uma pessoa má e isso pode ter uma série de reflexos na sua vida que até então você não compreendia de onde vinham. Não que você seja obrigado a mudar ou se adequar, mas compreender é sempre bom.

Para os bonzinhos cheios de fé de plantão: coisas boas e ruins acontecem com todos nós todos os dias. O mundo é injusto e aleatório, sinto muito se isso te tira o chão e você precisa, para se sentir seguro, encontrar relação causa/efeito em tudo. O que você encontra é o que você QUER ver: um holofote enorme apontado para quando um “mau” se fode ou um holofote enorme apontado para quando um “bom” se dá bem. Mas a verdade é que todos nos fodemos e nos damos bem na vida. Aceita que dói menos.

Para me chamar de má, para perceber que é visto como mau socialmente ou ainda para se ofender: sally@desfavor.com


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