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A coisa errada.

A coisa errada.

| Sally | | 63 comentários em A coisa errada.

Um dos grandes males trazidos pelas redes sociais, que deram voz a todos os que delas fazem uso, é a divulgação do erro, a glorificação da babaquice.

Raramente coisas boas são divulgadas em redes sociais. Para quem faz uso delas, me responda com sinceridade: em qual proporção você recebe uma notícia boa, um elogio a algo ou alguém contra uma crítica, ofensa ou até mesmo um xingamento?

Você deve estar perguntando com que moral eu levanto este assunto, afinal o Desfavor raramente elogia alguém. Bem, a proposta do Desfavor é essa, ele foi pensado e nasceu para trazer à tona um debate sobre os desfavores da sociedade atual, focando naquilo que ninguém fala. É a linha que escolhemos seguir.

Entretanto, redes sociais não seguem linha nenhuma, supostamente os usuários são eles mesmos e comentam livremente sobre tudo que desejarem. Porém, como coisas boas, elogios e afeto não geram cliques, o hit é disseminar coisas ruins, sentimentos ruins.

Um exemplo clássico disso aconteceu na semana passada, onde uma menina teve a infelicidade de ser flagrada em um jogo do Grêmio xingando o goleiro, que por sinal, estava sendo extremamente antiético em campo. Calhou da menina chamar ele de “macaco” com um grito que possibilitou a leitura labial de forma nítida. Apesar de que #SomosTodosMacacos, ofendeu o mundo e a sociedade partiu para cima dela em uma sanha punitiva como faz tempo eu não via.

Como se cada um que trucidou essa menina nunca tivesse feito um xingamento com base em cor, raça ou etnia dentro de um estádio… Dizer “argentino filho da puta” é tão crime quanto chamar alguém de “macaco”, mas só é modismo se revoltar com a ofensa “macaco”, então, todos continuam bradando seu “argentino filho da puta” e xingam a menina para parecerem boas pessoas. E por sinal, isso não é crime de racismo, uma breve lida na lei explica porque. É crime de injuria, cuja pena máxima não acarreta prisão.

Essa menina foi trucidada por pessoas que cometem o mesmo crime que ela e nesse processo de trucidamento o grande desfavor, além da hipocrisia, é divulgar exaustivamente uma coisa errada. Porque mostrar um negro e um branco se abraçando na hora de um gol, um casal com um negro ou um branco se beijando ou coisas do tipo não renderia tanto. Então, vamos mostrar o errado, vamos jogar um holofote no erro. Mas isso não basta, vamos jogar um holofote no erro e reforça-lo, xingando a menina de “piranha” e similares, para mostrar como é errado ofender alguém.

Outro caso que aconteceu na semana passada: um sujeito foi a uma lanchonete no Rio e a atendente era transexual. Ele reclamou para o gerente, que era gay. Chamaram a polícia, o policial era gay. Ele mandou essa: “Só tem bicha nessa cidade”. Uma pessoa dessas merece morrer na escuridão, mas não, em resposta, divulgaram a babaquice que ele falou. Começaram a pipocar memes com essa frase, não se falava em outra coisa.

Existe uma diferença enorme entre criticar um erro e promove-lo. Em tempos onde as pessoas andam sedentas por cinco minutos de fama, seja lá a que preço for, promover um erro vira sinônimo de incentivá-lo. Não precisa ir muito longe para perceber esse mecanismo babaca, não faz muito tempo aconteceu aqui, com a gente, em um texto onde eu falava do lado ruim da gravidez. Por algum motivo que eu desconheço, já que nunca na vida divulgamos nossos textos em lugar algum, ele foi parar em uma rede social e ofendeu algumas pessoas que não entenderam a proposta.

Em vez de ignorar, deixar uma coisa “horrível” como aquela morrer na escuridão, começaram a divulga-lo metendo o pau. Resultado: mais do que dobrou o nosso número de leitores assíduos, pois muita gente que caiu aqui para ver do que se tratava por curiosidade gostou e acabou ficando. Partindo da premissa que nós somos escrotos e o texto é um desfavor, o resultado foi catastrófico. Quando você divulga escrotos, mais escrotos se juntam a eles e eles ganham força.

Será que as pessoas que o fazem não sabem disso? Sabem sim, são pessoas esclarecidas o bastante para saber. Então, porque o fazem? Eu tenho a teoria de que essa “boa ação” de demonstrar revolta com algo supostamente escroto não é “boa ação” porra nenhuma, é apenas uma forma de apontar o “erro” dos outros para que, comparativamente, a pessoa que o aponta seja vista como boa. Maniqueísmo social. Fulana falou uma coisa escrota, daí eu vou lá e aponto o dedo e a trucido, logo, eu devo ser uma boa pessoa. Engenharia social de débil mental, mas funciona, porque né, débil mental é o que não falta neste país.

Com isso surge um movimento de caça às bruxas moderno, onde pessoas “boas” trucidam em bandos virtualmente pessoas supostamente más. Com isso as pessoas “boas” se igualam ou fazem até pior do que as pessoas supostamente más. Mas não importa, porque elas defendem o bem e isso lhes dá direito a fazer qualquer coisa. Fica essa contradição, essa hipocrisia, como modo de funcionar e ninguém parece se dar conta.

O efeito colateral dessa caça às bruxas nefasta acaba sendo divulgar o erro inicial que deu origem a tudo. Com isso estão transformando redes sociais em campos de batalha, em linchamento virtual, onde todo dia pegam um para Cristo e batem sem dó para assim provar que estão do lado do bem. Só não queimam pessoas em fogueiras porque o processo é virtual, mas na prática, o resultado disso se faz sentir na vida real. A pessoa fica estigmatizada graças a dedos de criminosos tão criminosos quanto ela que lhe são apontados.

Curioso é que quando estas pessoas que apontam (ou seus amigos) cometem seus erros, o discurso é outro. Na hora do erro amigo há compaixão, há empatia, há panos quentes. Somos todos seres humanos falíveis, acontece, a intenção era boa, a pessoa foi mal interpretada ou ainda ela errou sim mas merece respeito. Na hora do erro de um desconhecido, o que acontece é uma ótima oportunidade de capitalizar em cima dele para mostrar como você acerta e o outro erra. Na minha opinião, quem capitaliza em cima do erro alheio é ainda mais escroto.

É mais escroto não apenas por ser um hipócrita que está camuflando de boa ação uma atitude egoística de auto-promoção, como também por estar prestando um desserviço à sociedade, promovendo coisa errada. Faça o teste: vá a uma rede social da moda (não sei qual é a da atualidade) e um dia poste uma foto ajudando crianças em um orfanato, idoso em um asilo ou fazendo uma doação. Observe a repercussão. Algum tempo depois poste uma foto ou vídeo de alguém batendo em uma criança ou em um idoso com uma chamada denunciativa linchando quem o fez. Certeza que o numero de interações com o segundo vai ser bem maior. Sabe por quê? Porque hoje em dia as pessoas vivem de se comparar com os outros.

A verdade é que as pessoas GOSTAM de ver gente fazendo maldade, cometendo erros, sendo escrota, porque comparativamente isso as faz sentir bacanas, boas. Ninguém quer se comparar mentalmente com uma pessoa boa que faz caridade, porque o saldo final pode ser negativo. Mas todo mundo adora se comparar com racistas, assassinos ou escrotos, porque o saldo final sempre vai ser positivo.

Acredito que isso tenha se estabelecido porque nesse mundo de aparências, de rede social, de likes, de cliques, de retuítes, as pessoas não sabem mais seu valor por elas mesmas. Elas dependem da admiração do outro para mensurar seu valor. É uma versão pós-moderna daquelas pessoas que se acham um lixo se o parceiro as trata como um lixo. Gente que mede seu valor pelo olhar de terceiros.

Quando você depende do olhar de terceiros para ter valor, acaba tendo que se mostrar uma boa pessoa o tempo todo, pois precisa dessa admiração. Para isso os mecanismos são os mais diversos: trocar like por like, não importa quão sem veracidade eles sejam, postar foto com pouca roupa para receber elogio de tarados que elogiariam até uma cabra ou trucidar quem pisou na bola para, em contrapartida, parecer uma boa pessoa. Muito triste.

E mais triste ainda é que a sociedade esteja cega nesse joguinho de linchar virtualmente alguém de forma habitual. O mecanismo persiste e ninguém para e pensa “Opa, isso aqui está muito errado”. Não, convém a todo mundo, todo mundo faz. Até que um dia você é o alvo do resto.

Divulgar o erro de alguém e incentivar que a pessoa seja trucidada por esse erro em larga escala é uma das coisas mais baixas que inventaram nos últimos tempos em matéria de internet. Não que eu ache que a gente não possa falar do erro dos outros, pode e deve, mas existe um mundo de diferença entre falar e divulgar. Alguém já me viu fora do meu blog indo confrontar qualquer pessoa ou grupo pelos erros que eu acho que cometem? Eu não vou na casa dos outros xingá-los. Entretanto muita gente vem na minha casa me xingar, e ainda espalha outdoor para que desconhecidos façam o mesmo.

E para coroar a babaquice, esses grupos linchadores sempre escolhem uma vítima mais fraca do que eles. Nunca é um ataque massivo contra um grupo poderoso. É sempre contra uma pequena babaquice. Enquanto políticos roubam nosso dinheiro, deixando pessoas morrerem por falta de atendimento médico, crianças passando fome e o povo desamparado, os babaquinhas da patrulha está lá fiscalizando quão grave é a piada que humorista está fazendo ou então se o xingamento racista da moça é aceitável ou não. Se esse povo patrulhasse os políticos com a mesma eficiência que se patrulha a vida alheia, o país estaria bem melhor.

O que determina seu valor não é seu numero de seguidores, nem quantos likes você consegue, nem quantos cliques, nem nada que dependa do olhar alheio. Seu valor você tem que saber internamente, por você mesmo. A partir do momento em que você determina seu valor pelo olhar de terceiros, fica escravo deles, vive em função de agradar estas pessoas para se sentir valorizado. E esse é o maior sinal de problemas de autoestima, quando se precisam criar mecanismos para agradar aos outros.

Reunir um grupo para bater publicamente em alguém que não te fez nada, que não estava nem ao menos falando com você quando disse algo que você discorda, é covardia. Só que os costumes peculiares do mundo virtual impedem muita gente de ver isso. É como se você estivesse em uma mesa de restaurante conversando com um amigo e, do nada, por causa de algo que você falou com ele, uma pessoa da mesa ao lado se levantasse, começasse a gritar, apontar para você, repetir em voz alta o que você falou condenando e convocando as pessoas da outra mesa a te recriminarem. Por que isso é considerado bizarro no dia a dia mas é aceitável na internet?

Se você quer uma sociedade melhor, faça coisas boas e divulgue coisas boas em ver de ficar batendo e divulgando coisas ruins. Não é espalhando merda que se limpa um banheiro, muito menos entrando nele e apontando cada sujeira. Faça sua parte, seja uma pessoa boa, espalhe coisas boas e assim estará contribuindo de forma eficiente.

Se você faz isso de pegar uma pessoa que errou e trucidar publicamente, instigando os outros a trucidarem também, PARE. APENAS PARE. É feio e depõe contra você. As poucas cabeças pensantes que existem nessa favela virtual que é a internet vão perceber o tipo de babaquice que você está fazendo. Uma coisa é você expressar uma opinião negativa sobre uma pessoa, outra é ir até ela trucida-la e convocar mais gente para fazer o mesmo. Espalhe o que presta, não o que não presta. É incoerência criticar algo com afinco e ao mesmo tempo divulga-lo para seus contatos.

Para confundir opinião com linchamento e fazer críticas impertinentes, para dizer que xingar argentino é prova de cidadania ou ainda para mandar meu texto para “os donos da verdade” das redes sociais: sally@desfavor.com


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