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Escrever feito gente.

Escrever feito gente.

| Somir | | 47 comentários em Escrever feito gente.

Apesar de não ter atendido às expectativas de nossos sempre exigentes e eruditos impopulares, a coluna “Fragmentos” não morre sem deixar pelo menos um legado: a continuação de pelo menos um texto que eu não acreditei que os interessaria. Hoje eu quero falar sobre escrita. Mais precisamente sobre como não deixar as palavras te traírem.

Só mais uma coisa: passaram-se quase cinco anos desde o fragmento em questão. Tenho algumas adições e modificações em mente.

Manual Desfavor: Escrever feito gente.

Você acha que as pessoas não te levam a sério na internet? Tem a sensação de que o que escreve frequentemente te leva a virar motivo de piada? Morre de vergonha de expressar suas idéias? Acha que suas opiniões não vão ser entendidas?

O motivo pode ser a sua dificuldade de se expressar pela escrita, caro desfavor! Se você percebe que escreve muito mal e isso está te atrasando nessa era de comunicação visual, você já fez a parte mais importante: Reconheceu o problema.

Ruído. A internet virou um grande e interminável ruído. Com tanto da comunicação humana passando pelo meio da escrita, começaram a ficar cada vez mais claras as dificuldades que a maioria das pessoas tem com a palavra no papel ou na tela. Pudera: não é mesmo algo simples. Mas com algumas dicas que eu adoraria ter lido ou ouvido bem antes em minha vida, o processo fica menos complexo.

A curva de aprendizado da escrita é traiçoeira: quanto mais você a percorre, mais íngreme se torna. Por isso não espere que eu vá te guiar pelo processo de desenvolver sua prosa ao ponto de rivalizar com grandes escritores: eu só posso ensinar o que já aprendi. O texto de hoje não é sobre a arte da escrita, é sobre o mínimo necessário para traduzir o que pensa em palavras.

Vamos seguir uma lista de passos necessários:

1 – Entenda o que lê.

Modifiquei essa parte em relação ao texto original. Havia uma etapa importantíssima antes de tudo: ler. Só escreve bem quem lê muito. Não existem atalhos… o que com certeza não quer dizer que precisa devorar uma biblioteca de clássicos para escrever um e-mail, mas expressa uma importantíssima ideia que eu demorei demais para entender: pensamento, fala e escrita são três línguas diferentes. Pouca gente diz isso, e é um desserviço à comunicação humana.

O pensamento é o campo dos atalhos. O cérebro se baseia em relações entre significados para armazenar e expressar informações. Um pensamento simples pode exigir uma coleção de livros para ser expresso (e olhe lá…), mas pode ficar cristalino apenas com uma frase bem colocada. Falar e escrever são traduções “livres” do que se pensa. Acabamos nos especializando bem mais na fala, desde a mais tenra infância; mas quando o assunto é escrita, a língua tende a ficar morta por falta de manutenção. A última vez que boa parte das pessoas se preocupa com escrita é na redação do vestibular.

Assim como ouvir é essencial para saber o que falar, ler define o que você é capaz de escrever. Sem saber a língua a comunicação fica muito prejudicada. Mas aqui eu difiro um pouco dos conselhos tradicionais: ler grandes obras da literatura faz bem, mas nem de longe é o único caminho. O importante é ler… e entender o que leu. Pode ser Dostoiévski, pode ser matéria de revista fuleira, o essencial é não desistir de nada que está lendo por dificuldade de entendimento.

É claro que pode ser difícil, é outra língua. Pior: uma na qual você talvez esteja muito enferrujado. Mas se você não ficar imerso na língua “estrangeira”, quais as chances de você aprendê-la? Antes de traduzir ideias em palavras, você deve desenvolver a capacidade de fazer o caminho inverso. Se palavras não viram ideias na sua cabeça, se vira até conseguir.

Até por isso eu me afasto um pouco de quem defende demais livros e não leitura em geral (inclusive de porcarias): muitas mais famosas obras da literatura concentram-se em descrever experiências sensoriais e gerar empatia com personagens. Textos argumentativos e notícias em geral são excelentes para demonstrar na prática como fazer a tradução cotidiana entre ideias e palavras. Você não precisa da prosa de Shakespeare para aprender inglês, por exemplo.

Entender o que está lendo é o primeiro passo. E ele tem tudo a ver com o próximo:

2. Escreva ideias, não palavras.

Releia até entender o significado. Posso te garantir que é justamente esse o problema da maioria das pessoas que não são analfabetas, mas soam como tal. Comunicação humana, em qualquer meio, é a simples transmissão de idéias entre um cérebro e outro. Isso parece uma bobagem óbvia, mas não é o que se percebe na prática. Palavras, desenhos, sons e tudo mais que usamos são formas de compensar o problema de que ninguém consegue ler mentes.

É uma tradução! Como já dito, ideias são formadas de inúmeras relações entre significados. Qualquer uma delas “flutuando” na sua cabeça foi baseada em alguma coisa. Elas não surgem em forma de lâmpada por sobre a cabeça, o momento “Eureka!” é uma mentira deslavada. Se você escreve algo que está pensando sem levar em consideração todo o pacote no qual ele vem, grandes chances de ninguém te entender.

Se você tem uma ideia, ela foi construída em algum ponto anterior no tempo por uma série de outras. Quanto mais você consegue demonstrar todo o processo, mais clara é a sua tradução para a escrita. Apesar de criticar excesso de sucintez, também não estou advogando a prolixidade. O importante não é quanto se escreve, mas o quanto se traduz. Agora eu quero apresentar para vocês todo o processo, mas se quisesse deixar todo o trabalho para vocês, resumiria todo o texto em “escreva ideias, não palavras”. A ideia é justamente essa. Agora, além de gerar mais uma tempestade por aqui, publicar um texto só com essa frase alienaria muita gente sem capacidade ou interesse de destrinchar todas as suas implicações.

3. Faça sentido.

Escrever a ideia não é uma medida de palavras, frases ou parágrafos; mas sim de conseguir comunicar o que se quer para quem se quer. Cada público funciona de um jeito. Até por isso existem algumas regras básicas que as “tias” ensinam na escola logo que começamos a aprender a colocar no papel nossas primeiras redações. Começo, meio e fim. Premissa e conclusão. Coerência. Não ignore o poder dessas primeiras lições na escrita que vai desenvolver ao longo da vida.

A mente é uma bagunça para você e para todo mundo! Se você não conseguir colocar o que escreve numa ordem lógica, quem lê vai ter que lidar com a sua confusão e a dela. Ninguém é obrigado a te entender, e francamente, pouca gente vai se importar de verdade com isso. Escrever ideias que fazem sentido é facilitar o trabalho alheio. Quem te lê tem que saber onde sua ideia se encaixa na mente DELA.

Às vezes você tem que dar um passo para trás para poder dar dois à frente. Uma frase que seja demonstrando o porquê de você ter uma ideia já facilita imensamente para quem te lê conseguir transformar as palavras em ideias, e só aí gerar a identificação necessária para se comunicar. Sempre releia o que escreveu pensando se alguém que não é você conseguiria entender.

Importante: sentido não é gosto ou opinião. Há sentido até nos pontos de vista que você mais abomina. Pense em sentido como uma seta que vai do começo da ideia até o final. A ideia segue um caminho, mesmo que você não goste do destino. E é pensando na seta que você consegue perceber melhor se mudou de assunto no meio da escrita. Grandes coisas se você acha que está certo, não é isso que conta para escrever feito gente.

4. Escreva direito.

Pouca gente escreve de forma perfeita. Ainda mais numa língua tão cheia de minúcias feito o português. E claro, há espaço para neologismos e extensões de significado… Escrever direito não é tirar nota 10 na prova de língua portuguesa, é garantir que sua escrita não venha com um “sotaque” carregado.

Muito se engana quem acha que todo mundo entende mesmo se você escrever com inúmeros erros de português, abreviações preguiçosas e descaso para organização. Texto porco é o equivalente a alguém falando uma língua que mal domina ao seu lado. Você pinça algumas palavras e completa na sua mente o resto. Receita de mal entendido.

Acertar a forma como se escreve as palavras é importante, mas aqui eu estou muito mais preocupado com a montagem de frases e parágrafos. O uso minimamente correto de vírgulas é o que garante que suas ideias sejam lidas na ordem correta e consequentemente traduzidas para a mente alheia como algo coerente. Muitas vírgulas MATAM o seu texto. Sério… cada vez que vemos uma delas, o cérebro já quer armazenar o conteúdo. Chega uma hora onde nada mais faz sentido!

Estamos condicionados dessa forma. Para acertar mais, use a “regra das coisas”: se você falou uma coisa, coloque uma vírgula. Se você não terminou de falar uma coisa, não faz sentido colocá-la. Um pouco de bom senso já resolve a definição de coisa. Dá para se inspirar na fala para considerar isso, mas com ressalvas.

A forma como se fala é um guia útil, mas perigoso para a utilização das vírgulas. Fala é outra língua! Você precisa respirar enquanto fala, e suas pausas costumam bater com as etapas de inspiração e expiração. Não funciona assim na escrita. Não é só porque acabou o fôlego que tem que entrar uma vírgula. E falando em fôlego: se você ler o seu texto e parecer uma pessoa com asma, exagerou na vírgula.

Falta de vírgula seja onde for é um problema tão óbvio que acredito nem valer a pena explicar aqui pelo menos eu espero.

Ah sim: parágrafos, os assassinos silenciosos. Nem todo mundo nasceu para Saramago! Parágrafos são muito úteis para deixar quem lê absorver a ideia que acabou de ler. Isso não tem muito a ver com a forma correta de escrever, mas com a forma como a visão lida com o texto. Parágrafos enormes cansam e exigem o processamento de muita informação numa tacada só. Seu cérebro não vai sossegar enquanto aquela maldita linha em branco não aparecer.

Mudar de assunto exige novo parágrafo, e isso quase todo mundo sabe. Mas que assunto tem etapas parece que pouca gente entende. Você pode, mas não precisa enfiar tudo num bloco só. Dá para separar em pedaços e desenvolver cada um com calma em seus parágrafos. Quando você está no meio de um parágrafo monstruoso, existe uma tendência inconsciente de acabar logo com ele; seja em quem lê, seja em quem escreve.

Começar outro desanuvia os pensamentos. Essa dica vale MUITO para quem tem menos experiência com escrita, não façam pouco dela.

5. Você não está falando!

Sério… não faça piadas e ria delas na sequência. Utilize expressões que exigem gestos e contorções faciais com muita parcimônia. Sarcasmo visual em texto escrito te faz parecer um completo imbecil. Termine a porra das frases com ALGUM ponto! Não espalhe seu texto em mil parágrafos de uma linha… Escrita é OUTRA LÍNGUA! Precisa adaptar basicamente tudo o que funciona na fala para ser minimamente aceitável.

6. Entenda o que lê.

Se você não entendeu da primeira vez…

Para dizer que ler e escrever é coisa de nerd, para dizer que foi muito texto só para reclamar das vírgulas, ou mesmo para perguntar quando usar ponto-e-vírgula (só ensino o que sei…): somir@desfavor.com


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