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Ele disse, ela disse: Discordando em gênero.

| Desfavor | | 45 comentários em Ele disse, ela disse: Discordando em gênero.

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Filhos hipotéticos: O retorno. Imagine que você tem um(a) filho(a) que logo na infância dá sinais muito confusos sobre sua identidade sexual futura. Imagine então como agir até essa criança chegar na puberdade. Sally e Somir fazem esse exercício e chegam a conclusões distintas. Os impopulares se identificam no impasse.

Tema de hoje: É melhor criar uma criança transgênero com gênero definido ou em aberto?

SOMIR

Deixa em aberto, a pressa é a inimiga da perfeição. Vamos entender melhor essa premissa: não estamos falando de um hermafrodita, e sim de uma criança que nasceu com um gênero visível e reconhecível. Enquanto a criança não tem muitas características de personalidade além de chorar e cagar, a tendência é que se siga o roteiro tradicional. Demora um pouco até a transição entre “qualquer coisa que brilhe ou faça barulho” e carrinhos ou bonecas.

É justamente nessa fase que começa o nosso impasse aqui: na percepção dos pais que o roteiro tradicional não está encaixando bem na personalidade que desabrocha na criança. É muito difícil separar o famoso “foda-se” que crianças dão para nossas convenções sociais do delicado processo de detecção de um ser humano cujo cérebro discorda do corpo no que tange sua identidade sexual.

Uma coisa é aqueles casos de meninos que querem dançar balé, outro completamente diferente é um que mesmo sem verbalizar parece se identificar muito mais com o sexo oposto. Não é sobre “coisa de viado”, é sobre “corpo errado”. Vamos entender aqui que não são exemplos isolados, é algo que gera suspeitas razoáveis sobre o que a criança vai ser quando crescer.

Dito isso, o ideal é não pressionar demais uma criança a se conformar às nossas expectativas de adulto. Criança se ensina. Não é à toa que perdoamos delas coisas que jamais perdoaríamos de adultos. E também não é à toa que não damos para elas obrigações incompatíveis com seu grau de desenvolvimento. Crianças não podem dirigir carros, não?

E sim, eu sei que vocês podem estar pensando que aceitar a identidade sexual compatível com o que você tem no meio das pernas passa longe de ser algo impossível para crianças, afinal, a grande maioria de nós tirou isso de letra. Mas a mãe natureza nos colocou no modo fácil. Realmente, eu me adaptei muito fácil ao que se esperava de mim nesse ponto, mas não sou incapaz de imaginar alguém que não consiga nem se quiser muito.

Deve ser complicado todo mundo esperar que você aja de uma forma e tudo em você berrar o contrário. De uma certa forma é como nos sentimos quando usamos o cérebro nesse mar de brasileiros médios, não? Pra quê botar uma CRIANÇA nessa situação escrota? Já basta a vida adulta inteira para fingir ser o que não se quer ser.

Ao invés de tentar achar uma resposta sem sequer saber o enunciado do problema, que tal prestar atenção no que esse pequeno ser humano está fazendo e falando? Para alguns é fácil agir de acordo com a genitália, para outros não. Antigamente mal se tinha tempo de deixar as pessoas estudarem, quanto mais descobrirem qual a sua identidade. Éramos seres funcionais… não dá para parar se tem que casar e ter filhos antes do vinte!

Hoje em dia vivemos mais e melhor. Hoje em dia estudamos mais e melhor. Hoje em dia damos mais tempo para as crianças aprenderem as minúcias desse mundo complexo. Se vivemos na primeira era da humanidade onde pode-se dar o espaço necessário para uma criança decidir sua sexualidade, que façamos isso! Acham melhor o quê? Conformar todo mundo em dois modelos fixos e fingir que não podemos dar esse passo ainda?

A criança vai acabar demonstrando preferências antes mesmo da puberdade. Dá para ir trabalhando com isso… antes da puberdade todas tem basicamente a mesma cara e o mesmo corpo mesmo. Criar com gênero aberto não significa ceder a qualquer capricho de uma criança, significa não cobrar coerência com um papel sexual definido. Se você já identificou que o gênero físico não representa necessariamente a verdade sobre aquela criança, ou você deixa ela aprender sobre ela mesma, ou joga uma moeda pro alto decidindo um gênero para ela.

Se forçar a barra no físico, pode evitar uma pequena parte do sofrimento da criança durante seus primeiros anos “sociais”; mas se você errar, vai simplesmente adiar o problema para uma época onde os outros tendem a ser ainda mais cruéis: a adolescência. Se acertar, nunca vai saber se acertou o chute ou se enfiou um trauma eterno goela abaixo em quem mais confiou em você na vida toda. As pessoas acabam aceitando pressão externa… mesmo que por dentro nunca se convençam. Parabéns por enfiar sua cria num armário.

Se forçar a barra no oposto do físico… pode dar tudo no mesmo. Pode evitar a sensação de “estar errado”, mas se errar você vai ter um adolescente incrivelmente mais confuso do que o necessário. Se acertar, a mesma história: você garante que era a escolha da criança de verdade? Essa sanha protecionista de querer decidir tudo pelo filho transforma identidades sexuais em sentenças.

Acho muito mais racional ir se adaptando às informações que seu filho invariavelmente vai te dar do que brincar de adivinhação com algo tão sério assim. O menino está se dando muito bem com meninas desde muito cedo? Preste atenção. Não é para forçá-lo a conviver com outros meninos, muito menos para enfiar um vestido nele… Pode ser alguém que se identifica muito com as mulheres, mas vai querer fazer sexo com elas no futuro. Pode ser alguém que teve essa fase e depois vai querer explodir coisas e jogar pedras por aí com outros meninos. Pode ser alguém cheio de amigas que vai querer se vestir como homem e fazer sexo com homens. Pode ser também alguém que vai fazer uma operação de troca de sexo e se sentir finalmente no corpo certo em alguns anos.

Tanta coisa pode acontecer. Nem quem está naquele corpo sabe ainda. Se ensinar a criança a ter caráter e coragem de defender as próprias convicções, se der suporte quando precisar, se criticar quando for a hora, se tiver a paciência de observar essa criança e dar a ela o que ela precisa, não vai ser um bando de BMs que vão derrubá-la.

Porque, convenhamos… não tem nada de errado em não ficar preso na dicotomia de homem e mulher, mas de qualquer jeito essa criança vai apanhar muito mais do que devia da vida e dos outros. Não vai ser um disfarce que vai protegê-la, vai ser uma casca pra lá grossa. E não se faz uma pessoa forte sem ensiná-la a escolher o quer e lidar com as consequências…

Para dizer que é tudo lindo até espancarem a criança na escola, para dizer que prefere escolher o mais fácil para você, ou mesmo para dizer que minha opinião foi muito gay: somir@desfavor.com

SALLY

Como criar uma criança trasngênero onde só na puberdade será possível descobrir se é menino ou menina? Difícil responder sem ter formação em psicologia, mas, em um chute de leiga, eu observaria, escolheria um dos sexos e criaria a criança dentro desses padrões. Não acho que seja benéfico criar uma criança com o gênero em aberto, pois acho que traria mais sofrimento do que benefícios. Todas as opções são ruins, ainda não há um caminho para evitar que uma criança transgênero sofra, mas dentre todos o menos pior me parece escolher um sexo (sem qualquer intervenção cirúrgica) e torcer para acertar.

Pode dar errado? Certamente pode dar errado, pode ser inclusive que seja preciso rever a escolha do sexo mais tarde. Mas deixar essa questão em aberto me parece pior, porque se ao escolher um sexo há uma chance de fracasso, deixando em aberto me parece haver certeza de fracasso. Eu acho menos pior um eventual “sexo errado” do que uma coisa ambígua, aberta, aberrante. Acredito que uma criança se sinta menos pior tendo um sexo (ainda que possa se sentir inadequada a ele) do que sendo a única no seu meio que não se encaixa nos padrões “menino” ou “menina”.

Nós, que somos adultos, sabemos que a questão do gênero é relativa e tem cada vez menos importância. Pessoas são pessoas, independente de gênero. Mas não se pode exigir esse discernimento de uma criança. Crianças não tem essa maturidade, essa abstração essa capacidade de aceitar como normal o diferente. Então, por mais que a gente ache um absurdo ter que classificar como “menino” ou “menina”, essa é a atual realidade social. Eu adoraria que isso mude, mas não usaria meu filho como abre-alas para essa mudança, pois o sujeitaria a muito preconceito e sofrimento.

Se nós, que tecnicamente somos “normais”, “comuns”, já sofremos algum tipo de hostilidade quando crianças, imagina uma criança que “não é nem menino nem menina”! Não dá para pedir que outras crianças compreendam isso, nem mesmo alguns adultos conseguem. Porque expor seu filho a algo que certamente lhe trará sofrimento e não será compreendido pelo mundo que o cerca? Eu ficaria com a escolha que trouxesse menos sofrimento para meu filho.

Até porque o fato de criar uma criança como sendo de um determinado gênero não impede que se, posteriormente, ela se mostrar mais inclinada ao outro, isso seja revertido. A situação pode ser conversada com muita delicadeza e cuidado entre quatro paredes. Esse “diferença” que a criança terá para o resto do mundo fica em casa, isso protege a criança. Expor essa diferença a outras crianças e à cabeça bizarra do Brasileiro Médio é pedir para que seu filho vire saco de pancadas. Não importa se ele compreende, se sua família o aceita como ele é, me parece um fardo pesado demais para uma criança carregar ter que dizer “não sei” quando lhe perguntam se ela é menino ou menina.

Podem reparar que nem mesmo adultos deixam seu sexo em aberto. Na nossa sociedade o gênero (infelizmente) desempenha um papel determinante: desde qual o banheiro público você vai usar até no seu documento de identidade. É uma utopia pensar que, na sociedade em que vivemos hoje, seria viável manter um gênero em aberto. Traria uma infinidade de constrangimentos e inviabilizaria atos rotineiros. Reitero: INFELIZMENTE o gênero ainda é essencial para nos definir. Eu não gosto dessa realidade, mas isso não em autoriza a negá-la.

Não custa ressaltar que não falo em jogar uma moeda para decidir ao acaso uma questão tão importante. Até uma criança começar a andar, falar e interagir socialmente os pais terão algum tempo para observá-la e tentar depreender com qual gênero a criança parece ter mais afinidade. É uma tentativa que pode falhar, mas certamente não seria algo aleatório. Haveria alguma observação para tomar essa decisão.

É certeza de acerto? Não. Mas há 50% de chances de um final feliz. Uma criança que vai para a escola dizendo não saber se é menino ou menina é certeza de um tremendo final infeliz. E as marcas disso acompanham para o resto da vida. Eu sei que uma criança criada com um gênero que destoe de seus sentimentos é muito ruim, mas ao menos é um trauma interno. Me parece menos pior do que um trauma externo, algo que expõe a criança ao ridículo em público. É o tipo de discussão/problema que merece privacidade.

Em tese a decisão de manter o gênero em aberto parece mais fácil. Mas, parem para pensar em termos práticos em todo grau de dificuldade e indignidade que uma criança que não sabe dizer se é “menino” ou “menina” passaria, durante sua infância. Toda sorte de crueldade, humilhação e discriminação recairiam sobre esta criança. Não me parece justo expor uma criança a uma carga tão pesada apenas porque em tese essa seria uma decisão racional. Temos que pensar em tese e na prática.

Não levar essa discussão a público não é ter vergonha dela, é ter a consciência de que um assunto assim delicado não deve ser exposto a um povo torpe como o brasileiro. Um povo que parte para agressão física quando um epiléptico convulsiona achando que está possuído pelo demônio ou que acha que homossexualidade é uma doença passível de cura evidentemente não está preparado para lidar com uma criança transgênero, com gênero em aberto. É uma bosta, mas é assim que as coisas são. Eu bateria de frente com as pessoas, mas não colocaria meu filho para fazê-lo, sobretudo se fosse uma criança.

Seria lindo viver em uma sociedade onde fosse possível criar uma criança com gênero em aberto e deixar que ela escolha quando tivesse idade para isso. Mas não me parece possível na atual sociedade, sob pena de expor uma criança ao ridículo, ao preconceito e ao sofrimento. O certo a se fazer é aquilo que é certo em tese ou aquilo que gera o menor sofrimento possível para seu filho?

Para nem ao menos entender o que está sendo discutido no texto, para dizer que nem sabia que uma criança pode nascer transgênero ou ainda para dizer que isso é falta de porrada: sally@desfavor.com


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