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Desfavor da semana: O tapinha que dói.

| Desfavor | | 83 comentários em Desfavor da semana: O tapinha que dói.

ds-tapinhadoi

O Senado aprovou nesta quarta-feira (4) a chamada “Lei da Palmada”, que pune castigos que resultem em sofrimento físico a crianças. O texto segue para sanção da presidente Dilma Rousseff (PT). A aprovação ocorre depois de quatro anos de tramitação do projeto no Congresso. O texto determina que as crianças sejam educadas sem o uso de castigo físico ou “tratamento cruel ou degradante, como forma de correção, disciplina ou educação”. FONTE

Porque o problema do Brasil é falta de leis, não? Desfavor da semana.

SALLY

Como é difícil escrever sobre um assunto que já foi tema de texto sem ser repetitivo… Mas vamos lá, o projeto está prestes a virar realidade, só falta a sanção da Dilma, que vai acontecer. Lei da Palmada.

Não vou bater novamente na tecla de até onde o Estado pode intervir na escolha dos particulares, porque esse foi um argumento que eu dissequei no texto de 2010, mas, só para constar, continuo achando absurdo. Quem quiser saber mais.

O primeiro desfavor é que o assunto já está em pauta há anos. O outro texto sobre essa lei babaca foi de 2010, ou seja, um assunto supostamente relevante aos olhos de quem o defende (“violência” contra crianças) tramitou por anos até efetivamente ser inserido no sistema jurídico. Se realmente fosse algo indispensável para a sociedade teríamos amargado ao menos 4 anos de barbárie. Gente, não é um calhamaço, é uma porcaria de uma página e meia, sabe? Qualquer país civilizado faz um Código inteiro, com mais de mil artigos, em um ano. O Brasil demorou 4 anos para conseguir elaborar uma lei de uma página e meia!

Outro desfavor: a apelação. A lei foi apelidada de Lei Menino Bernardo. PORQUE? Alguém me explica? O caso do menino Bernardo foi algo BEM DIFERENTE de um castigo, foi um homicídio. Estavam de saco cheio da criança e armaram um plano para mata-lo. Daí pegam um fato absurdo, um crime hediondo, e vinculam uma lei a ele, de modo a abrir as portas para aquele argumento falacioso típico de que se você é contra a lei você é a favor do que fizeram com o menino Bernardo. Por favor, não insultem a inteligência alheia. Mesmo com essa lei em vigor, o caso desse pobre menino seria tratado por outra lei: o art. 121 do Código Penal.

Mais um desfavor: não adianta cuspir lei se o Estado não lhe dá efetividade. A Lei Maria da Penha tá aí para provar o desserviço que isso causa: em tese prevê várias medidas protetivas, atuação multidisciplinar de psicólogos, assistentes sociais, casas para abrigo de mulheres agredidas etc. Na prática as estatísticas comprovam que nunca se bateu tanto em mulher como agora. Sabe porque? Porque a porcaria da lei não saiu do papel mas, infelizmente, estar no papel cala a boca do brasileiro. Então não apenas mulheres apanham mais, como é dada menos importância ao assunto, pois todo mundo acha que agora as mulheres estão protegidas.

Essa Lei da Palmada também prevê uma série de medidas lindas, que não vão sair do papel e criança vai continuar sendo espancada. Não é assim que se coíbe barbárie no Brasil, cansei de falar nos meus tempos de advogada, mas ninguém parece se preocupar realmente com o problema e sim em como calar a boca do povo que reclama do problema. Então, mais e mais crianças continuarão sendo espancadas, mas o problema vai sair de pauta porque já existe uma lei para isso.

A lei proíbe “castigo físico” ou “tratamento cruel ou degradante”. O que vai ter de pai ou mãe perdendo a guarda do filho por causa de um parceiro filho da puta que força a barra de uma acusação em um divórcio… Anota aí: assim como a Lei Maria da Penha hoje é usada para prender ex-namorado, essa lei vai ser usada para chantagear cônjuge. Vai ganhar quem tiver mais dinheiro, melhor advogado ou subornar mais. O problema de ambas, e da maioria das leis brasileiras, são os conceitos abertos. Lei punitiva NÃO PODE ter conceito aberto se não vira instrumento de chantagem.

A lei entende que “castigo físico” é a ação de natureza disciplinar ou punitiva com o uso da força física que resulte em dor ou lesão à criança ou adolescente. Vamos lá: desembaraçar o cabelo de uma criança à força é castigo e gera dor. Em um mundo ideal, haveria bom senso e ninguém seria punido por isso. Mas estamos no BRASIL, onde Desembargador processa condomínio para ser chamado de Excelência, onde quem furta 1kg de arroz para comer está preso e quem rouba milhões está solto. VAI ser usado para sacanear pessoas inocentes. Se seu marido rico se separou de você e quer a guarda da sua filha de qualquer jeito (pessoas jogam sujo nessa hora) e você desembaraçar o cabelo dela à força, pode sim ser punida. Melhor deixar a criança ir com cabelo embaraçado para escola. Melhor não puxar ela pelo braço quando ela estiver fugindo. Melhor nunca mais encostar no seu filho, porque se causar dor… já sabe.

O “tratamento cruel ou degradante” seria qualquer conduta que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize a criança ou o adolescente. Não tenho filhos, mas quem os tem, coloque a mão na consciência e me diga se dá para criar uma (ou mais de uma) criança, ou pior, um adolescente, sem que seja necessário falar umas verdades que por vezes gere humilhação, ridículo ou ameaça. “Se você fizer tal coisa vai se ver comigo!” está banido para todo o sempre na Terra dos Sem Bom Senso. Esquece o “Você está maluco?”. Esquece tudo que possa ser usado contra você e que dê margem a uma suposta humilhação e ridicularização, pois já sabemos que nem sempre Juiz tem bom senso.

Meu desespero é tanto que não sei se estou conseguindo me fazer entender. Vamos supor que uma pessoa pesa 150kg. Ela vê um vestido lindo para usar na sua festa de aniversário em uma loja. O vestido é PP, aquele tamanho zero, que só cabe em um feto ou em uma Barbie. Daí a pessoa entra e compra o vestido, porque ele é bonito, e o guarda para usar no seu aniversário. Isso vai dar certo? NÃO. Isso não vai dar certo. Não porque o vestido seja feio, mas porque não se ajusta ao corpo da pessoa e ela simplesmente não vai conseguir usá-lo.

A lei é feia? Não, a lei é linda, é bacana, mas não se ajusta à realidade do país. Justamente por fazer toneladas de leis incompatíveis com a realidade do país é que o Judiciário está impraticável e que caminhamos para essa barbárie onde linchamento substituí a prestação jurisdicional. A ordem deveria ser contrária: não se muda um país fazendo lei. Primeiro se muda o país e depois se fazem leis mais adequadas. Querer mudar um país na base da lei NÃO DÁ CERTO, qualquer pessoa que tenha estudado um pouquinho de história do direito vai te explicar porque. Um país se muda com educação, com dignidade.

Adianta ter uma lei linda que não vai ter efetividade? Não seria melhor uma lei um pouco menos idealista mas que de fato coibisse o espancamento de uma criança? Tem uma frase que eu gosto muito e acho que se aplica ao momento que vivemos no Brasil: “Para que tudo continue como está, é preciso que mudemos”. Enfiam essas leis sem efetividade goela abaixo, posam de grandes defensores dos direitos sociais enquanto NADA muda. Só serve para calar a boca do povo: “a minha parte eu fiz, que foi uma lei”.

Mas não pode criticar a lei, se não quer dizer que você é a favor do espancamento de crianças (spoiler: reductio ad absurdum). Porque saber olhar além do imediatismo, além de um palmo do nariz, é uma arte na qual o brasileiro médio está atrofiado, se é que um dia soube fazer. Daí você assiste absurdos como esse calado, no máximo comentando no Desfavor e ainda corre o risco de um dia usarem uma lei protetiva contra você. Isso mesmo, no Brasil as leis deixam de ser protetivas e viram sacaneativas: prender ex-namorado, se dar bem e passar na faculdade, furar fila e tantas outras desvirtuações que o brasileiro médio consegue na base da malandragem.

E, para fechar com chave de ouro, queria ressaltar que os EVANGÉLICOS estão concordando com a gente e fazendo mais ou menos as mesmas ponderações. Corram para as montanhas, o fim do mundo está próximo.

Para dizer que nem precisava argumentar tanto, pois se a Xuxa é a favor você é automaticamente contra, para reclamar que não falamos da Copa e daqui a duas semanas reclamar que só falamos da Copa ou ainda para usar alguma falácia insustentável e me tirar do sério: sally@defavor.com

SOMIR

Já digo que fui eu que teimei com esse tema. Sally já havia feito uma análise bem completa do projeto de lei há alguns anos atrás e compreensivelmente não queria se repetir. Mas como prevejo que outros assuntos ocuparão nossos próximos desfavores da semana nos meses seguintes, era hora de adereçar mais essa asneira do nosso péssimo Poder Legislativo. Se não bater agora…

Como de costume em temas do tipo, o texto dela vem primeiro. Não que a ordem seja realmente importante na maioria das semanas, mas às vezes é melhor que comecemos por quem sabe explicar melhor o que acontece. Eu quero me concentrar em outro aspecto aqui: o arenoso terreno de regular comportamentos humanos.

Em tese não há o que se recriminar numa lei que visa proteger crianças de abusos. Eu mesmo sou muito contra qualquer forma de castigo físico na criação de uma pessoa. Já discutimos aqui o tema e eu mantenho o ponto central do argumento. Crianças não deveriam ter sequer o poder de desestabilizar um adulto ao ponto de serem repreendidas por pura força física. Não conseguir convencer/manipular um ser que acredita em Papai Noel tem que ser contabilizado como derrota.

A imensa vantagem psicológica do adulto sobre a criança deveria dar conta de qualquer correção de curso durante a criação. Eu sei que é muito mais fácil falar, mas eu discordo muito de quem acha uma banalidade se impor pela força contra alguém que normalmente não consegue nem alcançar uma prateleira. Evidente que cedo o ponto para quem já tem filhos sobre chegar num ponto onde não se consegue reagir de outra forma, mas uma coisa é enxergar algo como um mal conveniente, outra completamente diferente é acreditar que essa é a alternativa mais racional.

Há um meio termo entre imposição violenta e complacência, e se ele não for o objetivo, a linha entre erros e acertos começa a ficar borrada. Não é para ser preso ou querer se matar por ter dado um tapa numa criança, mas… se as pessoas não acreditarem que aquilo poderia ter sido resolvido de maneira mais civilizada, estamos nos contentando com pouco demais. Pois bem, como vocês podem perceber eu enxergo méritos em passar a mensagem que violência não é aceitável, mas as coisas não podem ser tão simples quanto assinar um papel e ver o problema desaparecer.

Não existem atalhos nesse tema. Gente brutalizada ou doente da cabeça continuará a se utilizar de violência física ou mental para resolver seus problemas. Ao contrário do que sociedades atrasadas como a brasileira acreditam, não é a existência da lei ou mesmo severidade da pena que coíbe comportamentos criminosos; até porque são justamente essas sociedades que apresentam as piores estatísticas no assunto. Quando se acredita que é responsabilidade do Estado ditar o comportamento das pessoas, é justamente quando elas mais aprontam.

Sinto chover no molhado, mas a verdade é que a única coisa que evita comportamentos “primatas” feito esse de espancar crianças é esclarecimento e qualidade de vida. Aqui mesmo no desfavor teremos exemplos de pessoas que ainda acham que palmadas são uma solução aceitável, mas sabem diferenciar claramente um tapa de aviso de uma surra. A Lei da Palmada, vaga como está, ainda parece estar se dirigindo mais a quem é incapaz de ver essa diferença do que para pais com o objetivo nobre de criar uma criança decente sem nenhuma forma de violência.

E é nessa dicotomia entre idealismo e realidade que não se consegue entender para que diabos essa lei serve. Tem muito chão entre quem acha espancamento algo razoável e quem enxerga as leis como um código de conduta mais elevado. Já é crime – e dos mais sérios – causar tamanho sofrimento numa criança! São cada vez mais restritos (e marginalizados) os círculos sociais onde a própria comunidade não repreende esses excessos. Quem abusa de criança já sabe que está afastado do comportamento aceitável.

Ninguém põe a mão no coração por causa de leis. Aliás, foda-se o coração, ele serve para bombear sangue… ninguém usa mais o cérebro por causa de leis. As pessoas que já fazem o errado hoje não o deixarão de fazer depois da lei sancionada. Se o Estado vai ditar normas de conduta para a sociedade, que pelo menos defina de forma clara o que vai e o que não vai tolerar. Por mais que tenha horror desse tipo de invasão de privacidade do governo, acharia mais razoável que se listassem os tipos de punição física e psicológica inaceitáveis para pelo menos conscientizar a população.

Façam um texto técnico então. O que falta para muita gente é saber onde está a linha entre punição e abuso. Tem quem feche a mão para bater numa criança acreditando piamente que a está educando! Sei que parece muito condescendente dizer para ela como bater ao invés de não bater, mas a tendência é que as pessoas distorçam expressões como “cruel e degradante” para defender suas próprias visões de mundo. Pior, o Estado pode distorcer também e fazer de uma lei assim uma ferramenta de controle ou mesmo um território fértil para abusos e vinganças pessoais.

Se o Estado quer entrar na casa das pessoas, que pelo menos diga o que está fazendo lá dentro!

Para dizer que eu mereço ter filhos para engolir tudo o que disse sobre dominação mental, para dizer que eu esqueci de dizer que os evangélicos concordam comigo (até um relógio quebrado está certo duas vezes por dia), ou mesmo para dizer que bateram pouco nos políticos brasileiro (ou demais…): somir@desfavor.com


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