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Ele disse, ela disse: Doença forçada?

| Desfavor | | 62 comentários em Ele disse, ela disse: Doença forçada?

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Poucos crimes contra a dignidade e a integridade humanas são tão mal vistos como o estupro. Sally e Somir evidentemente concordam em seu repúdio à prática, mas divergem sobre o que leva o estuprador a cometer o crime. Os impopulares que consentirem tomam sua posição.

Tema de hoje: Um estuprador é necessariamente uma pessoa com problemas mentais?

SOMIR

Não. É necessariamente alguém que fez algo horrível, mas não podemos colocar todos comportamentos reprováveis do ser humano debaixo de uma mesma presunção de doença mental. Para não deixar quem faz isso se esconder atrás uma condição alheia à sua vontade e também para não fazer pouco de quem realmente sofre com problemas mentais.

O bom selvagem não existe. Não precisamos de uma criação podre ou mesmo de desequilíbrios no funcionamento do cérebro para cometer atos violentos e/ou abusivos contra outros seres humanos. Boa parte de nossos comportamentos mais desprezíveis encontram paralelos no mundo dos animais irracionais. O que o ser humano realmente tem a seu favor é a capacidade de suprimir instintos com mais frequência.

Criamos conceitos como justiça, direitos e igualdade porque eles realmente melhoram a qualidade da nossa vida em sociedade. Mesmo assim, eles ainda são “linhas na areia”, precisamos de vigilância constante para que elas não acabem desfeitas pelo mar de hormônios e necessidades primais dos quais fomos feitos. Somos animais, mas podemos fazer melhor do que isso. Podemos… vejam bem.

Não é à toa que em situações onde nossa organização social falha muitos seres humanos regridem a um estado bestial. Posso usar exemplos da África atual, onde assassinatos e estupros acontecem com uma frequência alarmante em zonas de guerra civil e/ou de extrema pobreza; posso também falar sobre casos de lugares mais “ocidentais” e ricos como Nova Orleans depois do furacão Katrina em 2005, onde relatos de violência (inclusive com muitos estupros) assustaram todos que viam de fora o drama da cidade sitiada. Ei, é só olhar para o Brasil, um meio termo entre guerra civil e sociedade ocidental… quase toda semana temos uma ou duas notícias de estupros só na nossa limitada coleção da Semana Desfavor.

O animal humano é capaz de estuprar. Aliás, sem querer ser amoral demais, estupros começaram a ser extremamente reprováveis só nos últimos dois séculos. Não que as vítimas sofressem menos em tempos anteriores, mas era algo muito mais próximo de um “fato da vida” do que uma tragédia como é atualmente. Ainda bem que estamos nos julgando por um padrão mais elevado atualmente, claro. Mas eu levanto esse ponto para dizer que estupros estão intimamente ligados com nossa história. A forma como vemos isso hoje em dia é muito mais fruto de evolução social e intelectual do que “estado normal” do cérebro.

Se só quem tem um problema mental estupra, os seres humanos sem esse problema deixaram de existir há alguns milênios atrás. Porque quanto mais voltamos no tempo, menos o consentimento da outra parte conta. E outra, somos TODOS descendentes (mesmo que longínquos) de estupradores, goste você ou não. Os comportamentos reprodutivos da maioria dos mamíferos passam longe de ser românticos. Sexo é algo violento e impositivo para muitos de nossos parentes próximos e distantes.

Isso quer dizer que o estupro é justificável? Evidente que não. Mas argumentamos aqui sobre a possibilidade dele ser fruto apenas de um problema mental. Não, não podemos aceitar essa “desculpa”. Eu vou até além e digo que a minoria dos casos de estupro são fruto de um desequilíbrio químico no cérebro do perpetrador. A quantidade de casos no mundo (vitimando homens e mulheres) é tão grande que elimina essa possibilidade muito específica de problema mental. É muito derivado da “comum” incapacidade do ser humano de enxergar o outro como semelhante. É falta de empatia, senso de superioridade… coisas, novamente, comuns.

Estupro é mais sobre poder do que sobre sexo. Não estou tirando isso da cartola, na verdade essa é uma afirmação vinda da concordância de diversos estudiosos sobre o assunto. A maior parte do estupradores é formada por homens, mas a estatística das vítimas é bem mais equilibrada (sério mesmo, vá pesquisar se estiver duvidando). Claro que você pode acreditar que no fundo todo homem que estupra homem é homossexual ou bissexual, mas a porcentagem não bate. Tem algo a mais nessa história.

O elemento necessário para o estupro (pelo menos o por vias naturais) não depende só de atração sexual direta para funcionar. Nem estou mencionando reações puramente fisiológicas como ereção matinal, e sim de casos (e aposto que todos os homens vão se lembrar de alguns) onde o estímulo para o “funcionamento” não está relacionado com atração. Não é necessariamente vontade de fazer sexo, é aquela relação de poder e orgulho que a maioria dos homens tem com seu próprio pênis.

Imagino que exista um paralelo feminino, mas é difícil notar. Não só pela característica mais reservada da excitação feminina, mas também porque a amostra sempre está contaminada: se você está observando aquele momento de excitação, não pode se excluir como motivador. Uma espécie de princípio da incerteza sexual, se assim posso dizer.

Se você se perdeu, explico: estou considerando o caso do pênis como ferramenta e não como brinquedo. Não é para diversão, e sim para realizar uma tarefa. O estupro pode independer de atração sexual, tanto que é um instrumento de humilhação e dominação amplamente empregado longe dos olhos da lei (seja em cadeias, lares modestos ou em rodas da alta sociedade). Você pode e deve achar um comportamento doentio, mas cuidado para entender “doentio” no seu conceito exato aqui: reprovável, inaceitável, desprezível…

Pensar no estuprador como alguém doente da cabeça significa que exista uma cura externa. Como se um remédio fosse capaz de recuperar sua noção de que algo tão primal como a relação sexual à força deve ser reprimido para vivermos numa sociedade melhor. Como se fosse apenas um lapso de empatia causado por fatores fora de seu controle e não uma cessão aos nossos instintos mais nocivos de dominação e egoísmo. Pessoas subjugam pessoas. É reprovável, mas não é necessariamente doença.

Tanto que se não envolver sexo forçado ou violência excessiva, costumamos valorizar quem demonstra essas mesmas características de dominação. Coisa de bicho…

Para dizer que eu sou um estuprador potencial (quem não é?), para dizer que prefere esperar um remédio a deixar de ser bicho, ou mesmo para dizer que os animais são puros e inocentes (HAHAHAHA!): somir@desfavor.com

SALLY

Um estuprador é necessariamente uma pessoa com problemas mentais?

Eu lembro que cheguei a discutir isso na minha terapia porque calhou te ter um caso envolvendo estupro no meu trabalho (no processo, não no local de trabalho) e que não sabia muito bem o que pensar. Minha terapeuta, uma pessoa com muito estudo e preparo, afirmou de forma categórica que NÃO, que nem sempre um estuprador tem necessariamente problemas mentais e inclusive disse a seguinte frase: “A maldade existe e ela independe de doença mental”. Então, tô sabendo que hoje entro para perder. Mas sou argentina e não desisto nunca.

Normalmente a prática de crimes independe de doença mental, ela é possível pela mera vontade racional ou até por uma perda de controle momentânea do criminoso. Mas estupro é diferente. Porque eu vinculo estupro com doença mental: porque o estupro depende de algo que foge à racionalidade: uma ereção. Eu sei que a lei mudou (cheguei até a escrever sobre o assunto do ponto de vista legal), e que agora estupro pode ser um monte de outras coisas que não impliquem necessariamente em penetração, mas para fins desta discussão, vou me limitar a estupro como sendo penetração.

Uma ereção não é algo racional, algo que a pessoa decida voluntariamente, a menos que o sujeito use uma bomba peniana. Logo, para que se torne viável uma ereção (e eu quero crer que ninguém toma Viagra para sair e estuprar) é indispensável que exista a excitação, o desejo sexual. E, na minha opinião leiga e de antemão já taxada como errada, para que uma pessoa sinta excitação e desejo sexual às custas do sofrimento de outra pessoa, da recusa de outra pessoa em querer fazer sexo ou APESAR do sofrimento e recusa, esta pessoa é sim doente mental. Esse grau de maldade eu não consigo dissociar de alguma psicopatia ou coisa no estilo.

Vejam que não estamos falando de uma tribo indígena ou africana com regras sociais próprias, onde quando um homem quer fazer sexo não precisa do consentimento da mulher. Estamos falando em uma sociedade onde é notoriamente reprovável o sexo sem consentimento da mulher, tanto o é que estuprador é o preso que mais sofre quando vai para a cadeia porque até o resto dos bandidos ficam revoltados com o que ele fez.

Quem estupra sabe que é reprovável e sabe que vai causar muito sofrimento emocional e físico à vítima. Ok, diversos criminosos causam sofrimento às suas vítimas, mas sempre por uma escolha racional, nem sempre por prazer. Quando é feito por prazer, seja no estupro ou em qualquer outro crime, a meu ver, implica em uma doença mental. Qualquer que seja o crime e qualquer que seja a doença, ninguém me tira da cabeça que fazer um mal a uma pessoa POR PRAZER é doença. Fazer mal de forma secundária e inevitável, como no caso de bandidos que entram em uma casa, rendem uma família e levam seu dinheiro, eu acho maldade. Mas fazer mal como fim em si mesmo, pelo prazer que fazer mal proporciona, eu acho doença.

Eu acredito que boa parte das pessoas que cometem crimes não sentem muito prazer em fazê-lo e se de alguma forma estas pessoas pudessem vislumbrar outra saída, não cometeriam crimes. Não que seja necessário cometer crime, mas aquela pessoa, naquele momento, não encontrou outra saída que lhe pareça melhor (ainda que ela existisse). Acho que qualquer assaltante deixaria de assaltar se ganhasse na loteria. O ganho que se tem no crime quase sempre é um bem material. O que me faz pensar em doença mental é quando o ganho que se tem no crime é o sofrimento alheio. Nem mesmo no crime de tortura o ganho imediato costuma ser o sofrimento, o sofrimento é meio para obter uma informação.

No estupro não, o sofrimento é um ganho. Para obter prazer sexual é preciso o sofrimento. Lembro que em minhas aulas de criminologia, na faculdade, a professora nos garantia que se em caso de estupro tivéssemos a frieza de fingir que estávamos gostando, que estávamos topando, o estuprador broxaria na mesma hora e não conseguiria efetuar o estupro. O que o move não é a vontade de fazer sexo com alguém, para isso existem prostitutas ou muitas mulheres sem qualquer controle de qualidade, o que o move é o não consentimento, o sofrimento, o medo.

Ninguém estupra porque não conseguiu uma parceira e estava sentindo falta de fazer sexo, até porque, vamos combinar, isso hoje em dia é praticamente impossível. O estuprador estupra porque é com o medo, o desespero e o sofrimento da vítima que ele CONSEGUE ter uma relação sexual que o satisfaz. Ele sente prazer em gerar medo, desespero e sofrimento. Isso é bem diferente de quem apenas topa gerar medo, desespero e sofrimento para ter um ganho pessoal. Topar fazer para ter um ganho é uma coisa, ter prazer em fazer e isso ser o seu ganho em si é outra.

Não sei se estou me fazendo entender. É como se uma criança ganhasse uma bala cada vez que mata um pintinho. Poderíamos observar crianças com valores morais mais bem plantados que não matariam um pintinho por nada, crianças que normalmente não matariam um pintinho mas em troca de uma bala topariam essa transgressão ou ainda as crianças que matem o pintinho pelo prazer que este ato lhes gera, recusando inclusive a bala como recompensa. Estes eu chamaria de doentes mentais, ainda que não tenha formação para identificar a doença, e os equipararia a estupradores na forma de funcionar. O criminoso mata o pintinho em troca da bala, o estuprador mata o pintinho por prazer e nem se importa com a bala. Não raro mulheres estupradas não tem qualquer pertence roubado, isso, via de regra, não interessa ao estuprador.

Certamente nossos leitores psicólogos e psiquiatras poderão tentar me corrigir, já que é fato que eu estou errada. Talvez consigam finalmente me fazer mudar de opinião. Mas até segunda ordem, um homem que precisa do sofrimento alheio para ter uma ereção, que é um reflexo involuntário, para mim, é um doente mental. Tanto é que não adianta prender estuprador: quando volta para as ruas ele volta a fazer. Ele não “aprende” sua lição com uma pena. São doentes que tem uma compulsão sádica escrota, que precisam de tratamento (seja ele light como psicoterapia, seja ele hard como castração química, isso vai da opinião de cada um), mas não de prisão.

Talvez me faltem alguns subsídios para opinar, afinal, eu não tenho pênis…

Para repudiar minha arrogância em me posicionar contra profissionais da área, para mostrar deficiência cognitiva achando que eu quero livrar a cara de estuprador da prisão ou ainda para se perder nas armadilhas que o Somir monta e discutir outra premissa que não o tema proposto: sally@defavor.com


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