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Flertando com o desastre: Vingança pornô.

| Somir | | 38 comentários em Flertando com o desastre: Vingança pornô.

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Pela motivação da aprovação relâmpago do Marco Civil da Internet pelo Senado (Dilma queria aprovado logo para fazer campanha antecipada), já podemos considerar que o Brasil tem uma das legislações mais… pasmem… inteligentes do mundo sobre internet. Tirando a parte da tal da vingança pornô… uma sacanagem.

Primeiro, vamos tirar isso do caminho: eu achei o Marco Civil da Internet muito bom. Não posso ser incoerente; num texto sobre o projeto há alguns meses atrás, posicionei-me claramente sobre alguns pontos e vi todas as minhas preocupações resolvidas no texto final.

– Neutralidade tinha que passar intacta e passou. Ninguém pode definir o que você consome dentro da internet além de você. O fantasma de planos especiais para visitar apenas alguns sites não nos visitará por um bom tempo ainda. Não sei nem se nossos deputados e senadores médios entenderam muito bem o que estavam votando ali, mas não dá para ser cínico: foi uma vitória do cidadão comum sobre interesses de corporações. Parabéns, Legislativo. Sério!

– A privacidade e a liberdade de expressão também foram defendidas de ideias cretinas como forçar provedores a censurar conteúdo mesmo sem ordem judicial. As vítimas profissionais perderam uma batalha aqui. Ponto positivo novamente.

– O bom senso também fez uma visita na eliminação da necessidade de forçar todas as empresas que lidam com dados de brasileiros a armazenar os dados no Brasil. Não tem infraestrutura para isso e podem demorar décadas e mais décadas até termos. A parte sobre usar leis brasileiras quando aqui dentro é basicamente fechar uma porta aberta para abusos. Não é algo que eu comemorei, mas era esperado e razoável.

Claro que existem pontos meio turvos nessa legislação sobre neutralidade, mas não nos deixemos cegar por desavenças ideológicas com o governo. Quando fazem algo que presta, não é nada demais elogiar. No Brasil sempre existe a possibilidade de estragarem tudo com uma MP ou algo do tipo, mas essa vitória é real enquanto durar. Essa opinião elogiosa quase vale o título da coluna aqui no desfavor, mas tem mais nesse texto.

A parte que eu menos gostei. Até entendo uma preocupação honesta (e eleitoreira) com o bem estar da população na parte onde cria-se um mecanismo para conter a tal da vingança pornô com mais velocidade, só que ela vem envolta num tipo de mentalidade perigosa: o excesso de zelo pela vítima.

Para quem ainda está coçando a cabeça com a ideia do que seja uma vingança pornô (termo hilário que acabou pegando), nada mais é do que o clássico (escroto) de soltar na internet fotos e vídeos sexuais conseguidos na privacidade de um relacionamento expirado. Ou, em português claro: postar a foto da ex pelada para humilhá-la na internet.

Com o Marco Civil da Internet, não é necessária uma ordem judicial para que a pessoa possa exigir a retirada desse tipo de material de sites e redes sociais. Pediu, tem que apagar. E quem não o fizer vai ter que se explicar para a Justiça depois. Não me incomoda nem um pouco a ideia de que uma pobre coitada sacaneada por um ex consiga conter o estrago de forma rápida, mas isso beira a auto-regulamentação. O Estado assume que não vai dar conta de agir nessa situação e deixa para seus cidadãos resolverem o problema.

Meu lado libertário até gosta do conceito, o problema é que estão pulando uma etapa: a auto-regulamentação na produção do conteúdo. Se por um lado eu não corroboro com a atitude de tornar público conteúdo íntimo e privado, por outro não consigo ignorar que o acordo feito na hora da produção desse material é na melhor das hipóteses dúbio. Presume-se que se deixar fotografar e/ou filmar nessas situações venha com a obrigação de manter o material escondido dos outros, mas não é como se essa condição esteja sacramentada em algum documento.

Existe um risco inerente em se fazer de estrela de material pornográfico, ainda mais nessa era digital. Depois de tantos anos conhecendo a internet como conheço, posso afirmar sem sombra de dúvidas que a quantidade desse material só aumenta a cada dia. E preocupantemente cada vez mais com as novas gerações na grande rede. Motivo pelo qual eu oficialmente desisto de ter uma filha…

Gente que nasceu e viveu a vida toda ligada na internet parece não ter mais reservas de mostrar tudo e mais um pouco pelas lentes de uma câmera. Gente que sabe o TAMANHO do “mercado” para esse tipo de conteúdo, gente que cansou de ver outros casos. A pessoa já tem que saber que a probabilidade de seus vídeos e fotos íntimas caírem na rede é muito grande, e mesmo assim manda ver!

Cadê a auto-regulamentação aqui? Isso não faz da pessoa merecedora desse tipo de exposição, mas com certeza não a faz de vítima incauta. Não se pode comparar o vídeo da moça tirando a roupa na frente do espelho para mandar para o namorado com a da azarada que estrela o vídeo de uma câmera escondida. Vingança pornô é escrota sim, mas infelizmente entra naquela zona cinzenta de regulação do governo sobre a vida privada do cidadão.

Que se puna quem faz isso para humilhar um caso/namoro/casamento mal sucedido, mas que o caso desenrole-se por vias legais. Se você não está pronto para lidar com o risco desse material vazando pela internet, estrelá-lo de livre e espontânea vontade foi uma má escolha. Quando o Estado te diz que essa má escolha é passível de arrependimento “legal”, coloca-se um excesso de inocência no papel de um… cúmplice.

Por favor, entendam que eu não estou embrenhando-me em terrenos jurídicos que por aqui são especialidade da Sally, pode até ter uma bela defesa técnica; mas é a mensagem dessa exceção na nova lei que mais incomoda. Já temos gerações chegando com outro conceito de “direitos de imagem” na cabeça, reforçar a ideia de que não há erro algum na hora de se expor assim vai causar mais confusão do que qualquer outra coisa.

Num mundo ideal eu defendo o direito de cada adulto mostrar o que quiser mostrar para quem quiser ver e não ser atacado por isso, se não vai ter liberdade nem sobre a própria imagem, imagine o resto… Só que há de se entender que não é assim que a banda toca. Existem consequências negativas dessa exposição, é justamente nisso que se baseia todo o conceito de vingança pornô.

Essa é a diferença entre tratar a doença ou tratar os sintomas. Se depois que o material caísse na rede as pessoas não dessem a mínima por definição, vá lá. Não é isso o que acontece. A exceção da regra sobre a vingança pornô torna a vítima vítima demais. Como se ela tivesse tomado uma decisão sóbria e inteligente para começo de conversa. Não foi isso o que aconteceu!

É difícil argumentar no sentido de querer tirar uma “vantagem” de quem precisa de celeridade na resolução de seu problema, ainda mais imaginando uma mulher ou homem (mas não nos enganemos, só virou lei e exceção porque o grosso disso acontece com mulher) pagando preço excessivo por uma decisão impulsiva e passional no passado. Produzir esse tipo de material não é algo horrível por definição, longe de mim pregar moralismos.

Pode ter sido apenas mais uma daquelas coisas que fazemos quando estamos felizes e confiantes. Sacanagem que ela volte para punir depois, não? Sacanagem sim, mas não uma possibilidade impensável. Se vão dar o direito de arrependimento “legal” por algo assim, deveriam permitir outros tipos também. Escreveu algo na rede social que está queimando seu filme? Manda apagar! Postou uma foto fazendo careta e todo mundo está rindo? Atira primeiro e pergunta depois.

Entendo que o grau de “ofensa” dos meus exemplos não se compara a ter a vida sexual devassada para o grande público (ainda mais em país católico onde hipocrisia é o fetiche mais pervasivo), só que as coisas tem que valer para todo mundo. O direito de ter seu pedido com o “poder de lei” não pode ser exclusividade de quem tirou a roupa ou fez sexo diante das lentes de uma câmera. Ou tudo mundo pode, ou ninguém pode.

E se quer tratar o problema, tem que conscientizar quem está gravando esse material para começo de conversa. A situação tende a ficar pior com a banalização desse conteúdo, sinal dos tempos mas também resultado direto da falta de responsabilização da pessoa pelo o que escolheu fazer. Como se ensina uma lição de auto-preservação da imagem para quem escuta do próprio Estado que tem proteção especial caso abusem disso?

Criar exceção para regular a vida privada das pessoas parece ser o passatempo preferido de nossos legisladores. Cada vez mais preconceito e divisão entre os cidadãos comuns e os cidadãos especiais. Não dá para ficar passando a mão na cabeça de todo mundo, estamos mimando demais as minorias (mulher é a maior minoria de todas). Não que eu queira ver essas pessoas sofrendo, mas essa separação toda vai criar gerações cada vez mais crentes que não fizeram nada demais ao mandar fotos e vídeos tão íntimos para outras pessoas.

Parece que é normal, mas ainda não é. Até torço pelo dia que ninguém mais patrulhe esse tipo de comportamento e as pessoas não paguem tão caro por ter sua privacidade sexual devassada, mas agora tem consequências sérias.

Sem pornô não existe vingança pornô. E nisso, pensam?

Para dizer que eu só sou contra porque não como ninguém, para fazer um longo discurso desconexo sobre os malefícios do Marco Civil, ou mesmo para dizer que a culpa nunca é da vítima: somir@desfavor.com


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