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Flertando com o desastre: Ignorante.

| Sally | | 352 comentários em Flertando com o desastre: Ignorante.

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Senhoras e Senhores, cheguei a uma constatação muito triste e adoraria se alguém pudesse refutá-la, pois se tem algo que eu quero muito nessa vida é estar enganada: chegamos a um ponto onde nós, este pequeno grupo com perfil característico que povoa o Desfavor, somos considerados ignorantes e se rebaixar intelectualmente ou se fazer de burro gera benefícios.

A menos que você trabalhe em um meio muito intelectualizado, o que é exceção no Brasil, deve saber que se não estiver a par dos últimos acontecimentos da novela da vez, do reality show da vez ou da celebridade da vez, pode ficar à margem das conversas dos colegas de trabalho. Assuntos fúteis dominam as rodas de conversa informal no ambiente de trabalho. Nada contra assuntos fúteis, tudo contra SÓ se falar de assuntos fúteis. Pois bem, ultimamente tenho sentido que o fútil é o único assunto. Com isso, está se redesenhando o conceito do “ignorante”.

“Ignorante” não é o burro, o burro é aquele que não entende mesmo quando algo lhe é explicado. Ignorante é o que desconhece. Durante muito tempo o ignorante era aquele que desconhecia os principais fatos mundiais relevantes. Eu sou de um tempo no qual você era considerado ignorante se não sabia o nome de um Ministro, ou de um Presidente de outro país, o nome de uma capital ou as razões de uma guerra. Eram informações relacionadas a história, geografia e coisas do tipo que delimitavam um ignorante. Hoje, o conceito do ignorante mudou, porque as pessoas mudaram, porque o mundo mudou. É a maioria quem determina o conceito de ignorante, e a maioria brasileira de hoje não sabe nome de Ministro, nem de capital de um país, nem motivos para conflitos internacionais.

Logo, o ignorante de hoje passou a ser aquele que desconhece as informações notórias da atualidade, um bordão massificado de humor, por exemplo. Um ignorante passa a ser aquele que não viu um evento de grande repercussão em um reality show ou quem desconhece o Meme da moda. Ou seja, eu, que sempre tive o maior afinco em estudar e me atualizar sobre acontecimento do país e do mundo, sobre política, sobre direito, sobre literatura, tudo para não ser uma ignorante, hoje posso ser chamada de Ignorante. O mundo mudou rápido, eu não percebi. Hoje sou uma Ignorante. E não adianta espernear, querer impor o meu conceito de ignorante. Quem dita esse conceito é a maioria, em conjunto com a mídia, que forma opinião e privilegia algumas notícias em detrimento de outras. Sim, eu sou uma Ignorante e vou ter que aprender a lidar com isso.

Partindo da premissa que a ignorante sou eu, e não a grande massa que se ouvir Nietzsche responde “saúde!”, comecei a pensar nos desdobramentos desse novo papel que estou exercendo. Primeiro preciso me acostumar a pessoas olhando com um olhar de “Nossa, como ela é desinformada” depois que alguém grita algum bordão do Zorra Total e não obtém resposta alguma minha, porque eu simplesmente desconheço o que seja. Atualmente, eu sou Ignorante, esse é o mundo onde vivo. Ou eu mudo e deixo de ser ignorante, ou eu me assumo ignorante com orgulho, dentro dessa nova concepção de ignorância. O que não posso é comprar briga para mostrar aos outros que eles são ignorantes e não eu, porque eles são a maioria, eles ditam o conceito de “ignorante”. As coisas são como elas são, não como a gente gostaria que elas fossem. Por mais que eu ache que ignorantes são os outros, meu achismo não vale nada, porque socialmente eu não estou em alta, afinal, eu sou uma ignorante.

Depois que conseguir me acostumar com o fato de ter sido rebaixada socialmente à categoria de “ignorante”, preciso começar a rever a questão da burrice. Sim, a burrice que eu sempre achei que deveria ser combatida, erradicada, superada com muito carinho, estímulo e educação. Essa burrice, dentro do meu conceito, parece ter chegado a um ponto massificado, avassalador. A burrice se institucionalizou e, tentar ser inteligente em uma sociedade onde foi decretada a burrice de boa parte da população, que chega ao segundo grau sem saber ler nem escrever graças à qualidade deplorável do ensino público, é burrice. Isso mesmo que você leu: tentar ser inteligente em uma sociedade burra é burrice. Talvez seja uma nova forma de burrice, sei lá. Fato é que os anos passaram e o culto virou ignorante e o inteligente virou burro. Duplo rebaixamento.

Vou explicar melhor. Vício de professora de direito: explicar com exemplos. Vamos supor que eu tenha um blog com muitos anunciantes e a cada clique eu receba dinheiro. Vamos supor que eu queira alcançar um numero alto de leitores, para ganhar muito dinheiro. Para isso, eu escolho um tema polêmico que seja bastante procurado na internet, vamos citar a bola da vez, o Justin Bieber, que semana sim, semana também protagoniza escândalo. Pois bem, é fato que as pessoas tendem a ler aquilo que o Google coloca como primeiro resultado na hora da busca, ou então o que está na primeira página de resultados. Salvo engano, menos de 1% das pessoas passa para a segunda página no Google, talvez muitas nem saibam que ela existe. Então, para ganhar dinheiro meu blog tem que liderar as buscas no Google, ou ao menos estar na primeira página.

Para isso, uma ferramenta poderosa são as tags. Simplificando bastante, tags são palavras chave que você escolhe quando faz uma postagem que traduzem o assunto do texto e norteiam o Google na hora de te classificar. Colocar tags bem escolhidas faz seu blog subir loucamente no rankeamento do Google. Mas agora é que vem o pulo do gato. Lembra quando eu disse que a maior parte das pessoas são burras e que insistir em ser inteligente no meio de gente burra é burrice? Vou provar meu ponto. Se eu fizer um texto sobre Justin Bieber para conseguir audiência e colocar “Justin Bieber”acompanhada de palavras como “cantor” e outras como tag, eu não terei muita audiência. Porém, mesmo sabendo a grafia correta, se eu me render à burrice e colocar nas tags “Justin Bieber” e também “JustiBiber”, “Jastin Bibi”, “DjastinBeeber” e outas grafias erradas, a audiência do meu blog vai explodir. Sim, antever a burrice dos outros e se render a ela compensa. Ah sim, só para vocês saberem, Desfavor nunca usou tags na vida.

Esse exemplo de optar por escrever com a grafia incorreta parece bobo, é um exemplo concreto, prosaico, pequeno. Mas esta premissa pode ser usada em larga escala não apenas no seu dia a dia, como no seu ambiente de trabalho. Se você estiver por dentro dos assuntos da vez, por mais ignorantes que eles te pareçam, vai se enturmar melhor, vai fazer um social melhor e vai aumentar sua rede de contatos, o que hoje em dia significa mais chances de oportunidades e de crescer profissionalmente. Da mesma forma que se você conseguir antever a burrice alheia e, em vez de combate-la, aderir a ela de uma forma proveitosa, você consegue muitos benefícios. A grande punhalada no coração é que fazendo isso você contribui para a perpetração dessa burrice, você a alimenta. É quase que aceitar que se não pode vencê-los, deve juntar-se a eles. Dói. Ao menos para mim, isso dói. Só eu sinto que nos dias de hoje para conseguir ganhar dinheiro tem que doer?

O mais grotesco é que eu SEI o que tem que ser feito, e mesmo assim não faço. Isso me torna uma pessoa burra, porque tive ensinamentos práticos suficientes para saber que aderir e compactuar com a burrice vai me beneficiar, e mesmo assim não consegui aprender ou colocar em prática. Pessoa burra é aquela que não consegue aprender mesmo quando algo lhe é ensinado, lembram? Pois é, estou tomando na cabeça e não aprendo. Saldo final: além de ignorante, eu sou burra. Eu, que até alguns anos atrás me achava culta e inteligente, me encontro rebaixada no atual modelo social, e nem ao menos sinto vontade de fazer algo a esse respeito. O que uma pessoa inteligente faria? Procuraria se informar sobre aquilo que hoje é considerado imprescindível para uma conversa rotineira e tiraria proveito da burrice alheia. O que eu faço? Nado inutilmente contra uma maré forte que não vem fazendo nada além de me arrastar. Sou ou não sou burra e ignorante?

É que eu tenho uma esperança boba, quase infantil. Algo que provavelmente não vai se concretizar, mas que, por algum motivo desconhecido, não sai da minha cabeça. Intuição, pressentimento, espíritos, sinal divino, esquizofrenia, inconsciente, Deus. Chame como quiser, como for mais palatável. Isso não sai da minha cabeça: a história costuma ser um movimento pendular. Passamos por períodos de extrema repressão seguidos por períodos de extrema liberação. Mulher oprimida/mulher queimando sutiã, sexo como tabu/putaria hippie, filhos como realização feminina/boom de método anticoncepcional. Os exemplos são infinitos. Por isso, essa pequena voz na minha cabeça insiste em dizer que em algum momento o pêndulo vai virar para o outro lado. E quando isso acontecer, quando o estudo, o conhecimento, o esforço o lado intelectual voltarem a ser valorizados, será a vez de pessoas como nós, hoje tidas como ignorantes e burras.

Se de fato isso acontecer, pessoas como nós terão uma vantagem infinita sobre os demais, já que conhecimento, cultura e inteligência não se compram em farmácia, são resultado de anos de investimento. Ninguém pode virar culto de uma hora para a outra, porque é moda ser culto. Seremos disputados a peso de ouro no mercado de trabalho. Seremos reconhecidos e admirados. Nossos assuntos de predileção serão debatidos nos corredores do trabalho e os deslocados serão aqueles que se dedicam apenas a ver reality show e novela (foco na palavra APENAS). Seria a redenção, a vitória do “bem” sobre o “mal”, a certeza de que no final das contas os valores “certos” prevaleceram. Mas não vai acontecer. Sabe porque? Porque os meus valores estão longe de ser os valores certos. Quem determina o certo e o errado é consenso social, é a maioria.

E a maioria dos brasileiros nunca vai valorizar ou alçar à categoria de “certo” algo que dá trabalho, algo no qual eles não são bons. Simplesmente não vai acontecer. E eu, conforme já constatado, burra que sou, ainda tenho essa falsa impressão de que talvez isso um dia aconteça. Pode até acontecer, no dia em que eu fizer as malas e me mudar para outro país, onde meus valores ainda são os “valores valorizados”. Aqui no Brasil não. Como faz uma pessoa que não consegue se adaptar aos atuais valores do local onde vive? Morre um pouco por dentro, se prostituí ideologicamente e finge que gosta das coisas “certas” ou nada contra a maré e se ferra sistematicamente como eu venho fazendo? Me respondam vocês, porque eu sou burra e ignorante, minha resposta não vale nada.

Indo um pouco mais além, e se, em vez de ceder e se render ao que hoje é valorizado e perpetrado, eu apenas fingir que me rendi, para conseguir escalar algum lugar mais alto, de onde eu realmente possa fazer a diferença e tentar mudar as coisas? Será possível, em um país como este e no ponto em que chegamos, que alguém faça o jogo para subir, suba e consiga mudar algo quando estiver por cima? Infelizmente tendo a achar que não. As últimas pessoas que vi tentarem fazer algo do tipo, desceram de volta a uma velocidade vertiginosa quando começaram a tentar mudar alguma coisa.

E daí eu cito dois exemplos de pessoas que, dentro da sua área, que esbarra diretamente no Desfavor, tentaram fazer diferente: Rafinha Bastos e Danilo Gentili. Ambos fizeram concessões imensas para ocupar um espaço na TV aberta brasileira, que todo mundo sabe muito bem como funciona. Conseguiram chegar lá, mas assim que apresentaram algum indício de que inovariam, de que fariam alguma diferença, foram trucidados aos poucos. Rafinha teve um limbo forçado após aquela besteira do “Comeria ela e o seu bebê”, uma desproporção babaca da qual já falei em um texto específico na época. Danilo teve sua caça às bruxas com a polêmica sobre a doadora de leite, assunto sobre o qual também falei em texto específico. Coincidentemente, ambos estão se preparando para voltar à TV em situações inéditas, novas, recomeçando do zero. Torço por eles, nossas fênix modernas.

Além de gostar muito de ambos, torço por eles também por motivos egoísticos. Sabe quando aquele casal lindo e harmonioso se separa e você pensa “Se nem eles que pareciam o casal perfeitoconseguiram, imagina eu com meu relacionamento cheio de defeitos!”. É mais ou menos isso. Se nem eles conseguirem, imagina eu, que me encontro no limbo, na merda, na fila de espera para ser bem sucedida. Mas… e se eles conseguirem? E se a nova moda da vez virar o pêndulo e começar a ser bonito finalmente largar a hipocrisia de lado e poder falar o que se pensa sem uma massa de ofendidos te xingando? E se a mola comprimida pelo politicamente correto finalmente estourar e a sociedade cair para o outro lado? Tá, as chances disso acontecer são as mesmas de eu ganhar na Mega-Sena sem jogar, mas e a tentação de ficar pensando no “será”?

Só citei Rafinha Bastos e Danilo Gentili (apesar de achar até meio injusto colocar os dois no mesmo saco, porque eles são bem diferentes) como exemplo, mas poderia ser qualquer outra pessoa que rompesse com esse paradigma da burrice/ignorância que eu citei no começo do texto. No momento, quem eu vejo com ferramentas e com capacidade para fazê-lo com amplo alcance são eles. Talvez por isso esteja tão ansiosa pela estreia de seus programas, que acontecem em duas semanas.

A maior prova de que eles podem sim fazer a diferença é a sentença que saiu faz pouco tempo na ação movida pela APAE contra Rafinha Bastos. Uma sentença que não apenas o inocenta e o exime do pagamento de uma indenização em dinheiro, como ainda esculhamba com a APAE (porém com muita elegância). O juiz diz claramente que NÃO É RESPONSABILIDADE DO JUDICIÁRIO JULGAR UMA PIADA, esta frase deveria ser obrigatória antes da exibição de um programa de humor na TV, junto com a classificação indicativa de idade. Esta frase deveria estar na porta dos fóruns de todo o país. Esta frase deveria ser tatuada nos peitos da doadora de leite e na testa da Wanessa Camargo.

O Juiz disse ainda que Rafinha agiu em exercício regular do seu direito: liberdade de expressão e manifestação artística. Não bastasse isso, ainda disse que temas considerados “tabus” podem sim ser objeto de humor. A ridicularização à APAE foi tanta que o juiz comparou a ação a uma ação de divórcio entre Capitu e Bentinho ou a uma investigação judicial sobre a morte de Odete Roitman. Só faltou escrever “e não volte mais aqui!” no final da sentença. Nosso mais profundo amor ao Exmo. Juiz da 2 Vara Cível de São Paulo, Tom Alexandre Brandão, não apenas pela lucidez dessa decisão, como também pela coragem.

Eu não posso ser formadora de opinião, porque no momento, socialmente falando, sou ignorante e burra, logo minhas chances de conseguir me inserir no mercado a ponto de ter uma voz ativa são bempequenas. Mas se eles que podem ser formadores de opiniãoconseguirem criar um novo paradigma, talvez eu deixe de ser ignorante burra, mesmo sem mudar uma vírgula do que sou hoje, e aí minhas opiniões e meu trabalho poderão, talvez, quem sabe, um dia ser respeitados. Talvez eu pare de receber e-mail com ameaça de morte. Talvez eu pare de receber ameaça de estupro aqui. Talvez, quem sabe, um dia, alguém conte a seus netos “no meu tempo não se podia fazer piada de certos assuntos, não se podiam falar certas coisas, a liberdade de expressão quase não existia, mas um grupo de pessoas lutou e conseguiu mudar isso”.

Não tem qualquer relação com a preocupação sobre o que pensam de mim. Não quero “aprovação” social, quero respeito social, o que é bem diferente. Quero apenas ter o direito de falar, o que provavelmente não vai acontecer. Vou morrer sendo chamada de “a mal comida filha da puta que só fala tal coisa porque tem inveja” cada vez que falar algo que vai de encontro com o que a maioria pensa e convencionou tratar como certeza e fatalmente ainda vou escorregar no cálculo e tomar um processo. Mas olha, vou fazer um pedido: se por um acaso eu morrer cedo, usem minha morte sem dó para bombar o Desfavor, porque no Brasil, gente morta vira gênio sem defeitos.

Para me oferecer um antidepressivo, para você mesmo tomar um antidepressivo depois de ler isso ou para dizer que eu deveria trabalhar para Rafinha Bastos ou para Danilo Gentili: sally@desfavor.com


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