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Ele disse, ela disse: Classe solidária.

| Desfavor | | 28 comentários em Ele disse, ela disse: Classe solidária.

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A solidariedade com certeza é uma das mais nobres atitudes humanas. A capacidade de estender a mão para alguém necessitado foi essencial na construção de nossa sociedade. Sally e Somir discordam sobre quem é mais solidário: Quem mais tem ou quem mais precisa. Os impopulares doam suas opiniões de bom grado.

Tema de hoje: Pobres são mais solidários que os ricos?

SOMIR

Não. E para não criar confusão: não estou dizendo que os ricos são mais solidários, e sim que essa distinção é imaginária. Pessoas mais evoluídas são mais solidárias, independentemente da classe social. Mas, claro, eu entendo de onde vem essa noção errônea… números.

E não vou começar uma torrente de estatísticas. O importante aqui é não deixar o quantitativo poluir o qualitativo. Evidente que temos mais exemplos de pobres agindo de forma solidária… evidente! A distribuição de renda ao redor do mundo é absurda, gerando uma desproporcionalidade gritante entre pobres e ricos. Com bilhões na categoria de pobres e poucos milhões na categoria de ricos, não teria como ser diferente.

E no sentido oposto, besteira dizer quando o assunto é o quanto se doa os ricos dão de goleada. Evidente! Quem tem mais dinheiro pode dar mais dinheiro. E mesmo em questão de proporção de quanto se tem para quanto se doa não funciona do mesmo jeito para os ricos: Um bilionário do tipo Bill Gates pode doar 99% de sua fortuna e continuar rico. Não deixemos que também nesse caso os números nos confundam.

Nem mesmo com números do tipo de quantos são solidários em proporção com sua distribuição de seu grupo pelo mundo ajudaria muito para definir essa questão. Pobres (ou ex-pobres) até tem mais noção do que é ter essa necessidade, mas os ricos acabam sendo levados a doar uma parte do que tem por pura pressão social. Pouca gente vai pedir coisas na casa do pobre, mas rico não costuma ter sossego.

A única forma de determinar isso mesmo é pessoalmente. Cada caso é um caso. Mas eu até entendo que essa coisa meio “método científico” de não abraçar uma explicação sem entender se os dados estão contaminados pode não ser tão atraente para vocês quanto é para mim (deveria ser, mas…). Por isso vamos continuar tentando desmistificar essa coisa de que solidariedade é mais prevalente em pessoas pobres.

Em primeiro lugar, parece que as pessoas acham que solidariedade é só dar uma refeição para uma pessoa com fome e coisas do tipo. É sim, e uma muito nobre… Mas não é só assim que as coisas funcionam. Se dificilmente você vai ver um rico abrindo sua casa para um estranho necessitado, você dificilmente vai ver um pobre investindo nos sonhos e potenciais de alguém que não seja família ou amigos próximos. Solidariedade é ajudar quem precisa do básico, mas também é ajudar quem precisa de mais do que isso.

Ricos investem. Claro, muito desse investimento é especulativo, mas não faltam casos de pessoas que só conseguiram dar o próximo passo na vida por causa desse tipo de investimento. E não estou me referindo apenas a negócios que possam dar lucro futuro, estou falando de organizações não-governamentais e grupos de ativistas ao redor de todo o mundo. Raramente é o pobre que coloca os recursos necessários para que essas organizações consigam alcançar seus objetivos.

Dar um pão para um mendigo esfomeado é solidariedade. Doar dinheiro para uma entidade que quer tirá-los da rua também. Riqueza abre todo um novo leque de possibilidades solidárias, e nesse bolo tem muita coisa que o cidadão médio mal reconhece como boa ação. Por falta de conhecimento e principalmente por propaganda milenar de glorificação de pobreza.

Acharam que eu não ia falar disso? Asneiras do tipo “rico não é feliz” poluem o inconsciente coletivo da humanidade desde que o primeiro egoísta esperto chegou ao poder. Essa suposta corrupção moral do rico existe para acalmar os ânimos de quem não tem as mesmas oportunidades (e/ou capacidades). “Sou pobre, mas pelo menos eu vou para o Céu!”.

Vai nessa! Gente boa e gente podre existe em todas as camadas sociais. Criação decente e um mínimo de chances costuma definir com muito mais precisão que tipo de pessoa vai agir de forma solidária nessa vida. O pobre percebe com mais clareza as dificuldades do outro, o rico tem mais facilidade para agir (dinheiro compensando a dedicação em horas). Essa coisa de proletariado bonzinho e burguesia maligna caducou no século passado. Coloquem “O Capital” de volta na estante, já percebemos de forma bem menos maniqueísta como a coisa desanda na nossa sociedade global.

Somos produtos do meio até certo ponto. Alguns preceitos básicos do que é ser humano vão estar lá independentemente do seu saldo bancário. Pessoas solidárias agem de forma solidária, com um pão ou com um gordo cheque. Pobre não é essa maravilha de índole como se pinta por aí. Para cada deputado reacionário endinheirado, milhares de pobres espumando pela boca e pedindo pena de morte para adolescentes ao ver seu programa policial favorito. Para cada Edir Macedo, milhões de fiéis que também não praticam o que pregam.

E outra, em vários dos exemplos emocionantes de solidariedade descamisada temos também a questão de não ter muito o que perder. Parece bem mais humano abrir as portas de casa para alguém desabrigado do que doar milhares de colchonetes para a região dos desabrigados, mas cada um está fazendo o que pode mais ou menos no limite do bom senso. O pobre está dividindo o que tem para dividir, o rico também. Não seria factível para o rico fazer o mesmo que o pobre. Da mesma forma que não faço pouco de um, não faço pouco de outro. O rico ajuda mais gente, mas o pobre coloca o seu na reta. Não daria para inverter, oras. Todo mundo perderia.

Cada um faz o que pode. Rico ou pobre. Chega de ficar estimulando coitadice, vamos honrar as atitudes solidárias sem essa poluição desnecessária de números mal interpretados e ferramentas de controle social mais velhas que andar para frente.

Para dizer que eu fui pago para escrever este texto, para dizer que eu não entendo nada sobre a mágica de ser pobre, ou mesmo para dizer que tirar até isso dos menos abastados não é nada solidário: somir@desfavor.com

SALLY

Pobres são mais solidários do que pessoas mais abastadas? Sim. Eu nem precisaria defender meu ponto, porque basta que vocês observem para ver que pessoas humildes ou de origem humilde tendem a ser muito mais solidárias. Todo mundo vai encontrar um exemplo no seu dia a dia.

Pergunte a qualquer pessoa que já pediu esmolas: via de regra, quem mais dá é quem menos tem. E a solidariedade não se resume a dinheiro, gente com baixo poder aquisitivo tente a se preocupar mais com os outros, a dividir um prato de comida, a ajudar quando alguém passa mal, a socorrer até mesmo animais. Não é uma regra absoluta, mas sim, é uma tendência. Gente pobre costuma ter um coração mais solidário, ainda que você considere ser pelos motivos errados.

É muito mais fácil uma família de classe baixa acolher um amigo ou conhecido que está passando por dificuldades na sua casa do que uma família abastada. É muito mais provável de vizinhos tomarem a iniciativa de te ajudar em caso de uma catástrofe natural se eles foram pobres. É muito mais recorrente ver gente dividir o pouco que tem do que dividir o muito que tem. Isso faz dos pobres melhores pessoas ou mais bondosos? Não necessariamente, os faz mais solidários. Apenas isso: mais solidários.

Não descarto que esse empenho todo não seja fruto de uma bondade inata e sim da constante necessidade que estas pessoas sentem de ajuda diariamente: aprendem a funcionar assim porque eles mesmos se beneficiam com isso: uma vizinha fica com o filho enquanto a pessoa vai trabalhar, um convite para jantar na casa do colega quando o mês ainda não acabou mas o salário sim, uma ajuda para conseguir um emprego, etc. Em um país como o Brasil, onde o Poder Público não ajuda aos menos favorecidos, ou eles aprendem a se ajudar ou acabam mal. Isso pode ser um dos motivos, mas não explica tudo.

Se uma pessoa em boa situação econômica não tem com quem deixar o filho, contrata uma babá, ela acha que não precisa tecer uma rede de gentilezas em seu entorno para a eventualidade de um dia precisar desse retorno. Já a pessoa pobre ajuda porque sabe muito bem o desespero que é precisar ser ajudada. Interesse? Eu não diria, pois ajudar não é garantia de retorno, é perfeitamente possível que a pessoa ajude e tome uma banana em retorno, como já aconteceu comigo uma infinidade de vezes. Aí é que está o pulo do gato na minha argumentação. Não é interesse, ou ao menos não é apenas interesse.

Acho que ajudam porque eles sentem na pele o que é precisar de ajuda. Isso faz surgir uma empatia empírica que aflora a solidariedade. O ser humano tende a ser mais empenhado em causas com as quais se identifica. Da mesma forma que a classe média estremece em mal-estar quando cai um Boeing cheio de gente branquinha indo para Paris e todos morrem, o pobre se condói quando a vizinha está arriscada a perder o emprego por não ter com quem deixar o filho. É o clássico: “poderia ser comigo”. Quando bate o “poderia ser comigo” o empenho em ajudar é maior. O mais eficiente estopim para a solidariedade é o “poderia ser comigo”.

A experiência faz com que eles compreendam muito melhor a necessidade alheia. Uma pessoa que passou fome dificilmente nega um prato de comida a alguém. Aliás, nem precisa ser algo tão grave: observe quando um homem sofre algum tipo de acidente onde suas bolas acabam sendo chutadas ou prensadas. Todos os homens que presenciarem o feito se encolherão e talvez até gemerão de dor. Esse, Senhoras e Senhores, é o poder do “poderia ser comigo”. Dói mais ver outra pessoa se fodendo quando você se fodeu igualzinho. Resgatar o outro pode ter até um simbolismo de autorresgate. Quando você também sofre com privações, acaba sendo mais solidário pois sente em você a dor do outro.

Não estou certa de que uma pessoa rica, que nunca passou por dificuldades, consiga mensurar exatamente a dor que elas provocam. Não por falta de sensibilidade, mas por falta de referência mesmo. Como se explica para um cego o que é a cor vermelha? Como se explica para um surdo o que é um Dó Menor? A pessoa pode até tentar imaginar como seja, mas sem a vivência é difícil que chegue perto de um resultado real. Sem contar que pessoas ricas e nascidas em berço de ouro parecem se deixar cegar pelo “Smaug”, o dragão da ambição (referência nerd, se você não entendeu, parabéns, sinal de que você faz sexo). Pode parecer clichê, mas normalmente pessoas nascidas em berço de outro tem outras preocupações que as impedem de se colocar no lugar dos outros. É um exercício que poucos sabem fazer, na verdade, os que o fazem geralmente são obrigados a isso pela vida.

Vai ter quem ignore o que foi dito e insista que não é solidariedade, é uma troca, é interesse (como se dar fosse certeza de receber de volta!). Pois bem, acho importante frisar que não é esse meu argumento. Eu acho que pessoas pobres são mais prestativas no geral, mesmo em atos onde não há pressão social nem uma possível “troca” em retribuição ao ato prestado. Um exemplo: o perfil dos doadores de sangue no Brasil é majoritariamente composto por pessoas de baixa renda. E desde a década de 80 que não se ganha um centavo por doar sangue. Na minha nunca humilde opinião, outro fator que conta é que o pobre brasileiro tem uma tradição de vida comunitária, uma espécie de “mutirão way of life”, desde pequeno é educado para ajudar os outros, enquanto que o rico já nasce sendo educado para se defender de possíveis ataques.

Existem ricos solidários? Sem dúvida. Como eu disse, é apenas uma tendência. Porém se a gente confrontar o grau de solidariedade de uma pessoa nascida em berço humilde com o de uma pessoa nascida em berço de outro, creio que a da humilde seja maior. Quem experimentou uma privação sempre vai mensurar melhor o sofrimento de quem passa por algo semelhante. Eu posso mensurar que perder um filho seja uma dor terrível para uma mãe, mas nunca saberei ao certo o contorno dessa dor até ter um filho. Só quem é mãe pode mensurar, ou então, indo mais além, só quem perdeu um filho. Isso me impede de ser solidária com quem perdeu um filho? Não. Mas certamente quem tem uma identificação direta com a causa terá uma tendência maior a ajudar. E como no Brasil pobre se fode de tudo quanto é jeito, são solidários com praticamente todas as desgraças que podem acontecer.

Se você não acredita que a experiência pessoal norteie a solidariedade, observe as “causas” que cada pessoa escolhe para defender e faça uma análise de suas vidas: é tão fácil que chega até a ser sem graça. Consciente ou inconscientemente lutamos para que aquilo que nos doeu não seja repetido com outras pessoas, ou até mesmo animais. O sofrimento marca o ser humano com muita força e, até segunda ordem, somos dotados de uma coisa chamada “empatia”, que é a capacidade de se colocar no lugar do outro. Justamente por isso, quando nos colocamos no lugar do outro e revivemos um sofrimento que já foi nosso, uma “insuportabilidade” se faz presente e nos impele a ajudar.

Mesmo sem ter qualquer formação científica para tal (minha qualificação: ser argentina, o que me faz pensar que sei tudo), arrisco dizer que deve ter algum mecanismo evolutivo agindo nesses casos. Faz sentido que o ser humano lute contra as mazelas que o afligiram. Solidariedade é potencializada por experiências pessoais, e ninguém entende melhor de sofrimento que o pobre maltratado do Brasil.

Para dizer que esse meu amor por pobre ainda vai me causar problemas, para dizer que na verdade quem é mais solidário é o bicho ou ainda para dizer que estamos ficando previsíveis: sally@desfavor.com


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