Des Contos: Enquanto isso…
| Somir | Des Contos | 5 comentários em Des Contos: Enquanto isso…
Enquanto isso, numa fábrica abandonada nos arredores de uma grande cidade:
VIGIA: Não… Não! Eu já disse que não tem ninguém aqui! Alô? Alô? Oi? Não, não tem. Sei lá! Vai ver foi um fantasma… Fantasma! Deixa… estava só brincando… Sim, aviso. Tá bom, pode deixar! Tá bom! Tchau…
O vigia desliga o rádio e continua sua ronda. Preguiçosamente, contorna uma das poucas paredes ainda em pé do local. Encontra à sua frente o que parece um grande poço artesiano descoberto. Depois de contemplá-lo por alguns segundos, decide resgatar uma moeda de seu bolso.
VIGIA: Eu desejo um trabalho menos merda…
Propelida com alguma força, a moeda faz um arco perfeito no ar antes de desaparecer na escuridão. A demora até fazer algum som denota a profundidade do poço, mas é o som que ela faz que mais impressiona.
POÇO: Ai!
VIGIA: …
POÇO: Porra! Isso machuca!
VIGIA: Tem alguém aí embaixo?
POÇO: O que você acha?
VIGIA: Você está bem?
POÇO: Novamente… o que você acha?
VIGIA: Está com alguma coisa quebrada? Vou chamar os bombeiros!
POÇO: Não! Não chama ninguém para me salvar!
VIGIA: Melhor chamar uma ambulância também, segura aí…
POÇO: Oi? Eu disse para não chamar ninguém! Especialmente alguém que possa me tirar daqui.
VIGIA: … Você bateu a cabeça?
POÇO: Não bati nada, estou bem aqui.
VIGIA: No fundo de um poço?
POÇO: Isso. Pode continuar o que você estava fazendo aí em cima, não liga para mim não.
VIGIA: Amigo, não posso fazer isso. Tenho que chamar alguém!
POÇO: Não, não tem! Me deixa quieto aqui embaixo.
VIGIA: Se você morrer aí vai ser responsabilidade minha!
POÇO: Só se você contar que me viu aqui.
VIGIA: A parte de você estar caído aí é importante, mas mesmo que eu deixasse isso de lado, você ainda está invadindo a propriedade.
POÇO: Não, não estou. Isso aqui tudo é meu.
VIGIA: A fábrica está abandonada, mas ainda tem dono! Você vai ter que sair.
POÇO: Entende isso: eu sou o dono.
VIGIA: Ha! Bateu a cabeça mesmo. Me falaram que o dono é um ricaço de família quatrocentona e tudo mais… Nunca que ele ia estar aí embaixo.
POÇO: Tá vendo alguma coisa sendo fabricada ao seu redor? Eu fali. Mas enquanto não acabar o processo e aqueles bancos filhos de uma puta não tomarem a área, isso aqui ainda é meu.
VIGIA: Isso tá muito mal contado.
POÇO: Vai arriscar seu emprego?
VIGIA: Nem vem que não é você que paga meu salário. Me avisaram quando abriu a vaga, é uma empresa de recuperação ou algo do tipo.
POÇO: Bando de safados, isso sim. Compraram num leilão armado e agora estão só esperando para vencer o processo e repassar tudo para os bancos!
VIGIA: De qualquer jeito, não é meu trabalho te deixar aí.
POÇO: Você não entendeu que eu quero ficar aqui? Me deixa! Some! Passa!
VIGIA: Olha, se é vergonha, eu posso pegar uma corda e te ajudar.
POÇO: Já foi vergonha, mas não é mais. A verdade é que eu… gosto daqui.
VIGIA: Do fundo do poço?
POÇO: Primeira vez em décadas que eu me sinto em paz e seguro.
VIGIA: É droga, né?
POÇO: Não!
VIGIA: Pode dizer, já tive um caso desses na família. Sei que é difícil…
POÇO: Olha, você parece uma boa pessoa. Eu agradeço sua preocupação, mas pode acreditar quando eu digo que não quero sair daqui.
VIGIA: Mas por que então?
POÇO: Porque eu não fui feito para ficar aí em cima. Cansei de tentar.
VIGIA: Todo mundo tem problemas…
POÇO: Claro. Mas eu não quero mais lidar com os meus. Só quero ficar aqui.
VIGIA: As coisas não podem estar tão ruins assim!
POÇO: Estão para mim. Não é o suficiente? São os meus problemas, afinal de contas.
VIGIA: Tanta gente aí apanhando da vida e você acha que ficar menos rico é motivo para desistir de tudo?
POÇO: E eu com isso? Cada um vive a própria vida. Eu achei o meu caminho aqui no fundo do poço. Os outros que achem os deles!
VIGIA: Ficar aí é caminho? Você está deprimido!
POÇO: Não, não estou. Estou feliz aqui embaixo.
VIGIA: Como? Como você pode estar feliz assim?
POÇO: Eu não preciso escolher mais nada aqui. Não tem pressão, não tem expectativa, só tem o poço.
VIGIA: Mas você vai morrer aí!
POÇO: Todo mundo morre, eu vou morrer do meu jeito, no lugar onde eu sou feliz… Quanta gente pode dizer isso?
VIGIA: Rico é tudo maluco.
POÇO: Todo dia eu acordo sabendo que vou continuar no poço. Descer aqui sem ter como subir de volta me livrou de todas as responsabilidades. Tudo o que envolve minha sobrevivência é puro acaso. Eu só reajo.
VIGIA: Você virou uma planta então!
POÇO: Hahaha, verdade. Mas isso te faz apreciar as pequenas coisas da vida, sabe? Eu fico tão feliz quando chove, por exemplo. Ganho mais alguns dias de vida quando enche um pouco.
VIGIA: Isso não é vida!
POÇO: Pra mim é. Eu como o que quer que caia aqui. Ontem mesmo uma das mangas da mangueira aqui do lado deve ter rolado com o vento e se espatifou no chão! Eu quase chorei de alegria. E até estou me virando bem com os ratos e baratas que vem da tubulação.
VIGIA: Que horror! Você vai ficar doente!
POÇO: E não vou ter que me preocupar com trabalho, plano de saúde, hospital… Ninguém vai me passar bronca por não comer direito…
VIGIA: Mas por que você veio pra cá?
POÇO: Desde criança eu venho para essa fábrica. Este poço está aqui desde antes mesmo disso… Eu sempre quis saber como era aqui embaixo, mas claro que ninguém me deixava. E é claro, ele estava cheio de água na época.
VIGIA: Vai me dizer que seu sonho era ficar no fundo de um poço?
POÇO: Não. Mas quando eu não tinha mais nada a perder, resolvi que seria um bom lugar para acabar com tudo.
VIGIA: Veio se matar aqui então?
POÇO: Isso. Mas depois de anos destampado, isso aqui ficou cheio de folhas. Amorteceu tão bem a queda que nem quebrar um dedo eu consegui… Há males que vem para o bem, pelo menos.
VIGIA: Deus te salvou então! É hora de sair.
POÇO: Se foi coisa dele eu não sei, só sei que desde que fiquei preso aqui embaixo, todos os meus problemas e preocupações desapareceram.
VIGIA: E a sua família?
POÇO: Devem estar mais preocupados em recuperar os bens do que em descobrir onde estou. Não recebi uma ligação sequer… Se bem que o sinal é terrível num lugar desses.
VIGIA: Sério que você quer ficar aí?
POÇO: Sim, eu acho ótimo ficar preso no fundo de um poço.
VIGIA: Bom, eu ainda te acho maluco, mas… a vida é sua. Se alguém perguntar se eu te vi, eu vou negar.
POÇO: Faça isso. Um vigia que se preze jamais deixaria alguém preso no fundo de um poço, não é mesmo?
VIGIA: Ninguém vai duvidar.
POÇO: Pois é! Bom, se você não se importa, eu vou tentar pegar um rato que vi passando agora de pouco.
VIGIA: Eca. Bom… eu vou seguir meu caminho. Se mudar de ideia, é só gritar.
POÇO: Pode deixar!
VIGIA: Boa sorte com… com tudo isso aí.
POÇO: Até!
O vigia retorna para seu caminho habitual, ainda estupefato. No fundo do poço, um homem suspira e fala sozinho:
HOMEM: Eu preciso MESMO aprender a controlar meu sarcasmo…
FIM?
Não! Começo!
kkkkkkkkkkkkkkkkk
Depois da última linha, tive que reler com uma “voz sarcástica” do homem…rsrsrs
idem… Também tive que reler!
E eu achei a piada boa, mas realmente estragou a profundidade do texto. kkkkkk…
Um dos melhores Des Contos
UAHUAHUAUHAHAUAUHAUAUHAHUA…
Porra… estava com saudades dos textos TROLL MASTER do Somir…
Excelente texto amigo…
Eu ri na última linha.