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Flertando com o desastre: Cantadas.

| Sally | | 189 comentários em Flertando com o desastre: Cantadas.

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A coluna “Flertando com o desastre” desta semana é uma carta aos homens. Provavelmente não aos nossos homens, os Impopulares. Cinco anos de textos diários com quatro páginas filtraram bem nosso público. É dirigida aos homens no geral. E se você, mulher, achar que alguém que você conhece está merecendo ler o que foi escrito, não hesite em mandar esta carta para a pessoa.

Uma pesquisa revelou recentemente que 98% das mulheres já foi assediada em algum momento em locais públicos e que boa parte delas se sente ameaçada, intimidada ou constrangida, a ponto de mudar sua rotina por causa deste assédio. Aberrante que homens se divirtam com algo que causa sofrimento e constrangimento nas mulheres. Mais aberrante ainda que isso ainda seja socialmente tolerado. Patético se divertir abordando uma estranha e enchendo seu saco, simplesmente patético.

Além de ser patético e provavelmente improdutivo, passar uma cantada é infantil, feio, vergonhoso. Um homem que passa uma cantada barata em uma mulher sabe que não tem qualquer chance com ela, não o faz buscando uma conquista. A cantada em si é um prazer para o homem. E quão merda tem que ser um homem para ter prazer em falar meia dúzia de bostas para outra pessoa mais fraca e desconhecida? Quão merda tem que ser esse mesmo homem que sai na porrada se alguém falar da sua mãe ou sua irmã e desrespeitar a mãe ou a irmã de alguém? Muito merda. Muito burro. Muito sem noção do que é socialmente vergonhoso e do que não. Seria como sair com uma cueca por cima das calças achando que está lindo. Inadequação ostentada.

Mas homem faz. E usa os piores argumentos para justificar: “Tem mulher que gosta” ou “Quem mandou usar essa roupa?” ou ainda “Todo mundo faz”. Ahhh… parece que a natureza limita a inteligência mas não limita a burrice. Tem mulher que gosta? Bom, tem homem que gosta de fio terra e nem por isso a gente sai metendo o dedo no cu de desconhecidos no meio da rua. Da mesma forma que tem mulher que gosta, tem mulher que não gosta, você sabe qual é o caso da desconhecida que está abordando? Não, né? E se roupa fosse justificar qualquer tipo de abordagem, metade dos homens brasileiros mereceria levar é MUITA PORRADA, porque quem usa boné, óculos escuros e regata em qualquer lugar que tenha um teto merece apanhar com um gato morto até o gato miar e quem usa tênis sem meia, cabelo moicano, cabelo descolorido e tatuagem com letra de convite de casamento no braço merece apanhar com um pau que contenha um prego na ponta. Por fim, se todo mundo faz, sugiro que tolerem de bom grado quando o fizerem com suas esposas, mães ou irmãs.

Um homem que encontra algum tipo de diversão ou ganho secundário abordando uma estranha e passando uma cantada é um BOSTA INSEGURO e inconveniente, sem capacidade de reflexão e sem empatia. Não tem capacidade de se colocar no lugar do outro, não pensa no outro nem por um segundo. Não difere em muito de um bovino qualquer, porque até chimpanzés são capazes de sentir empatia. O fazem na certeza da impunidade, na certeza da intimidação. Mas isso pode mudar, Amiga Calcinha. Está nas nossas mãos. A minha parte eu faço faz tempo, como os leitores mais antigos devem saber. Tenho um aparelho de choque que apelidei de “O Doutrinador”, usado estrategicamente nessas ocasiões. CHOQUE neles, e se alguém perguntar alguma coisa, foi usado em legítima defesa, pois a pessoa estava te atacando. Bom, bonito e barato. Eu recomendo. Não é caro, vende no Mercado Livre. Pode? Não pode. Mas quando estamos em uma situação de legítima defesa não cometemos crime. Fica a dica.

O pior é que muitos homens de alguma forma tosca conseguem se convencer de que a mulher GOSTA de levar uma cantada, ou ao menos que aquilo não lhe faz mal. Querido Zé Ruela que gosta passar cantada na rua: já que você não consegue se colocar no lugar de uma mulher voluntariamente, a Tia Sally explica o que uma mulher sente quando leva uma cantada. Mas antes um pequeno parênteses explicativo: via de regra mulher não é como homem, que basta ver uma mulher bonita para se sentir atraído. Mulher, via de regra, não prioriza o físico e não se sente atraída de imediato. Mulher, via de regra, não olha para um homem e pensa “quero fazer sexo com ele”. Um homem desconhecido se insinuando É SIM UMA AGRESSÃO, é sim desagradável, é sim repulsivo, não importa quão simpático, bonito ou rico ele seja. Então, para te fazer entender o que uma mulher sente durante uma cantada, vou tentar te colocar em uma situação que seja repulsiva para você.

Dito isto, imagine a seguinte cena: você é hetero e foi abduzido por alienígenas. Você foi levado para um planeta chamado X. No planeta X existem mulheres heteros, homens heteros e homens homossexuais, sendo que os homossexuais são maioria, medem dois metros de altura e são extremamente fortes. Todos os dias você sai da sua casa no planeta X e vai para o seu trabalho sabendo que vai ter que passar por DEZENAS desses homossexuais gigantes e fortes e a maior parte deles vai te passar cantadas grosseiras, constrangedoras e até mesmo meter a mão em você e te apalpar. TODO SANTO DIA. SEMPRE QUE VOCÊ SAI NA RUA. No transporte público, na calçada, por todos os lados. Você sente nojo, mas não pode fazer nada, porque se os irritar, pode piorar a sua situação e se por um acaso um deles partir para cima de você, seja para bater, seja para abusar fisicamente de outra forma, você não vai ter força para se defender. É assim que uma mulher que não gosta de cantadas se sente. E acredite, a maioria não gosta. Nada contra os gays, é um exercício didático apenas.

Não me refiro apenas a pobres donzelas que se chocam com as obscenidades. Mesmo a mais desbocada das mulheres tem o sagrado direito de não querer ouvir esse tipo de coisa, não pelo puritanismo e sim pelo desrespeito. Desrespeito com ela, com seu pai, com seus irmãos, com seu marido, com seu namorado ou com quem a acompanha. Uma cantada não afeta apenas aquela pessoa que a leva, ela agride um grupo de pessoas que orbitam em torno do alvo, estejam elas presentes ou não, pois a cantada pode se refletir na forma de tristeza, mau humor, irritação e outras reações. A pessoa tem o sagrado direito de não querer ser incomodada, de não querer ouvir a opinião de estranhos. Mas não, homem é um bicho babaca e por dez segundos de diversão passa uma cantada. No minuto seguinte ele já esqueceu o que fez e não percebe que pode ter arruinado o dia da pessoa com aquela atitude. Sim, dependendo do dia, uma coisa dessas repercute mal, muito mal. Quem bate esquece, quem apanha não.

O curioso é que quando fiz outro texto falando do quão é inconveniente estranhos que te abordam no meio da rua para encher o saco, todo mundo concordou. Se abordar para coisas menores é inconveniente, abordar para passar uma cantada é o que? Imperdoável, né? Mas a cantada é vista como algo socialmente aceitável, a menos é claro que ela desagrade ao homem. E a cantada que desagrada ao homem é a cantada gay. Essa não é socialmente aceitável, muito pelo contrário: é socialmente aceitável que se enfie porrada no gay que cantou um hetero. Curioso como os homens se portam com dois pesos e duas medidas. O homem que canta a mulher se acha divertido, bem humorado, acha aquilo quase que uma brincadeira inofensiva e acha frescura da mulher se incomodar. Ele acha engraçado. Ele faz e ri com os amigos. Agora vai um gay passar a exata mesma cantada nele, no exato mesmo lugar e observe como o sujeito não vai achar graça nenhuma.

Creio eu que a raiz do problema seja a arrogância masculina. Eles se acham tão lindões e gostosões que a maioria sequer cogita que a sua cantada barata possa causar um desgosto, repulsa, asco ou sofrimento na mulher. Pois causa. Nojo, repulsa, revolta, raiva, desgosto, indignação, impotência, ira, e muitas vezes lágrimas. Não lágrimas de donzela com a honra ofendida, não sejamos hipócritas, mas lágrimas de ódio por não poder revidar graças à inferioridade física somada ao medo do grau de loucura do interlocutor. Cantada de estranhos NÃO É agradável para uma mulher. Buscar diversão em qualquer ato que gere sofrimento de terceiros é sadismo. Negar esse sofrimento é falta de caráter. Se eu que sou mulher estou te dizendo que provoca sofrimento, quem merdas você pensa que é para negar? Pode não gerar sofrimento em todas, mas em muitas gera e como você nunca sabe quem está cantando, o ideal é não fazer.

Pode ser que no dia a mulher nem ligue, não se importe. Mas pode ser que ela se incomode profundamente. Como você não tem bola de cristal e não sabem se ela gosta ou não, se ela está em um dia bom ou não. Logo, o digno é não fazer nunca. Você não sabe se aquela mulher enterrou seu pai naquela semana, se descobriu uma gravidez indesejada ou se recebeu um diagnóstico de alguma doença terrível. Você não sabe se aquela mulher acabou de ser demitida, se está com um filho no hospital ou se está sendo despejada de sua casa porque não conseguiu pagar o aluguel. Ou, você simplesmente não sabe se aquela mulher abomina aquilo em qualquer dia da sua vida. Então, só para registrar, mesmo aquelas que oficialmente não se importam tem dias ruins onde isso vai causar um dano emocional. Não tem que fazer. Ponto final.

Já pensou na tortura que é viver em uma sociedade onde você sabe que vai sair na rua e passar por algo que te faz mal, que te agride, que te irrita profundamente e que fatalmente você não vai poder fazer nada nem para impedir, nem para revidar? Imagina se você tivesse a certeza matemática que cada vez que você pisar na rua um gay vai passar a mão na sua bunda e se você revidar de alguma forma é certo que você vai apanhar. Imagine viver assim, desde seus dez, doze anos de idade, todo santo dia, anos e anos e anos. Imaginou? Agora multiplica isso pelo transtorno de cada vez que um gay te passa uma cantada sua mãe, sua irmã ou sua esposa ainda partirem para cobrir a pessoa de porrada, tendo serias chances de apanhar ou saírem feridas no evento. Realiza você ter que levar mão na bunda de gay e ficar calado para que sua mãe, sua irmã ou sua esposa não sejam arrebentados na porrada reagindo a isso. Agora realiza os mesmos gays que fizeram isso com você rindo e falando que tem certeza de que você gostou ou que é frescura se chatear por isso. Bem vindo à vida de uma mulher brasileira.

Vai continuar assim, até que as mulheres comecem a se defender. Não digo fazer o que eu faço e partir para o embate físico, porque isso implica em um risco considerável e não me parece exigível que a pessoa tenha que passar por ele. A mulher tem que se defender de outras formas, usando a lei, por exemplo. Eu tenho uma política que consiste no seguinte: encostou em, mim eu considero tentativa de estupro, não me importa qual era a intenção. Vou chamar a polícia e vai para uma cela de delegacia com a acusação de estupro. Vai ser liberado depois? Certamente, mas quando isso acontecer, o sujeito vai ter aprendido uma valiosa lição na sua cela sobre como é desagradável quando encostam em você contra a sua vontade. Também podem usar a internet: tire uma foto com seu celular do babaca que fez isso e faça um banco de dados unificado por bairro ou por cidade. Quando um mesmo babaca aparecer diversas vezes, procure informações sobre ele, mande e-mail para sua mãe ou para sua esposa contando o que ele fez: dia, local, hora e conteúdo. Não importa a forma, as mulheres tem que começar a se defender.

Daí sempre vai ter um filho de uma chocadeira que venha aqui dizer que “acha besteira” mulher se incomodar com uma cantada. Quem a pessoa pensa que é para dizer com o que o outro deve ou não se incomodar e quanto? Quem a pessoa pensa que é para invalidar ou desvalorizar o sofrimento de outra pessoa? Honestamente, EU não me incomodo em levar cantadas (não gosto, evidente, mas não me desestabiliza nem me faz mal), mas respeito profundamente todas as mulheres que se sentem incomodadas. O fato de eu não me incomodar não as desmerece em absoluto e não me impede de abraçar a causa, porque eu vejo o dano que isso causa em algumas pessoas.

Então, até que a pessoa tenha uma buceta e passe uma vida toda sendo exposta a isso, NÃO TEM O DIREITO DE ACHAR. Seria o mesmo que dizer que acha que a dor de parto não é tão grande assim ou que menstruação não é um incômodo. Sem útero, sem opinião, antes que eu comece a “achar” que chute no saco não dói, que brochar é coisa de homem frouxo ou que todo homem gosta de uma dedada no cu.

Quem passa uma cantada randômica em uma desconhecida não sabe se isso pode causar um mal a aquela mulher, logo, o que se espera de pessoas com caráter é que evitem o risco desnecessário de causar mal a terceiros quando existe esta opção. Se você não sabia que poderia causar um mal estar enorme na mulher, a ponto de estragar seu dia, levá-la às lágrimas e prejudicar seu desempenho no trabalho, AGORA SABE. O desconhecimento não milita mais a seu favor, logo, é hora de se posicionar. Você vai rever as bostas que anda falando por aí ou vai desvalorizar tudo que foi dito aqui para se permitir ter qualquer dez segundos de diversão às custas de um possível sofrimento de outro ser humano? O caminho mais fácil é desacreditar meus argumentos com frases feitas, auto-perdão ou ataques pessoais dirigidos contra mim.

Fiquem à vontade, podem me chamar de gorda que só escreveu este texto porque não leva cantada e tem inveja, frígida, feia, etc. Podem dizer que no fundo as mulheres gostam, comprovando um analfabetismo funcional galopante. Ou podem virar HOMENS DE VERDADE e parar com essa merda. Se não por respeito ao próximo, por medo. Porque se até hoje deu certo não quer dizer que sempre dará, um dia pode passar uma Sally louca varrida na sua vida e te deixar inconsciente no meio da rua com choque ou te colocar uma cela de delegacia com uma acusação de estupro, só para você sentir na própria pele como dói não poder se defender. Tem gente ruim no mundo, como eu, que paga covardia com covardia. Fiquem espertos, uma hora essas pessoas cruzam com você.

Para atribuir tudo que foi escrito a um problema pessoal meu na tentativa de desmerecer meus argumentos, para perceber como foi escroto nos últimos anos e se retratar em silêncio ou ainda para não levar a sério e persistir até encontrar uma mulher que efetivamente se defenda: sally@desfavor.com


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