Desfavor Convidado: Os sonhos de Raj.
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Os sonhos de Raj.
É madrugada em Damasco e Raj acorda para ir trabalhar no mercado. No auge dos seus 14 anos, seu maior desejo é ir para a escola com os irmãos, mas como é o mais velho de 5 filhos, ele deve se portar como o homem da casa, já que seu pai foi morto há alguns meses pelo exército de Assad. Enquanto trabalha, a mãe dele cuida da irmã menor, que ainda está amamentando. Por isso ele sai de casa no meio da noite e vai para o mercado de peixe, onde deve limpar dezenas de peixes por apenas 10 centavos de dólar a hora.
Raj já não se importa mais com o cheiro dos peixes, nem em trabalhar cerca de 16 horas por dia, afinal de contas, a pequena Azizah e seus outros irmãos dependem dele. O que ele sente falta mesmo é de Aisha, a linda menina de cabelos negros que se sentava ao seu lado na escola. Quando ele se lembra dela, o cheiro fétido do peixe vira o leve odor das flores e as duras horas de trabalho passam sem serem notadas.
O patrão de Raj não é uma pessoa má, mas sempre que o pega nesses devaneios, lhe dá umas cintadas, só pra ver se ele aprende. Mas não adianta, o menino gosta mesmo de sonhar e ele sonha alto. Um dia sonhou que levaria sua família para Meca, onde ainda não conseguiram ir por falta de tempo e dinheiro. Porém, quem sabe esse ano eles consigam, já que Raj vem furtando os clientes que percorrem o mercado durante o dia. Até o momento ele teve a sorte de não ser pego, já que a pena para esse crime na Síria é pesada e ele sabe que nos dias de hoje tudo é motivo para a pena de morte.
De qualquer forma, esse dinheiro extra está ajudando nas economias e sua mãe até estranhou, mas nada falou. Seu único conselho aconteceu dois dias atrás, quando ela pegou-lhe pelos braços e foram até a rua:
_Olhe Raj, nessas ruas andaram seu pai e seu avô. Eles viveram como homens, morreram como heróis e foram convocados para junto de Alá. Nossa situação atual é difícil, mas mesmo assim sempre mantenha a integridade e a fé inabalável que tudo dará certo.
Ele perguntou o motivo do conselho, mas ela apenas se manteve em silêncio e o beijou na testa, explicando que sua tia havia convidado eles para fugirem ao Iraque Curdistão. Quem sabe assim, aqueles seriam seus últimos dias de sentir o cheiro do peixe e das horas mal dormidas. Quem sabe ele até poderia reencontrar Aisha, ah que maravilha seria se isso acontecesse.
Foi lembrando dos olhos de Aisha que Raj sentiu um cutucão no ombro, era o patrão de cinta na mão:
_Sonhando de novo heim Raj, você não toma jeito mesmo. Estenda as mãos.
Sabendo que era inútil contestar, ele estendeu as mãos e recebeu cinco cintadas. Os golpes nem doíam muito fisicamente, mas moralmente, eram como navalhas no orgulho ferido de Raj. Depois que o patrão voltou ao seu lugar, o rapaz pensou se teria a coragem de matá-lo. Chegou a conclusão que não, afinal de contas se o patrão fosse morto, quem iria pagá-lo pelo trabalho que fazia?
Como é comum entre as pessoas mais jovens, em poucos minutos ele já havia se esquecido sobre o assunto e voltou a pensar sobre Meca, em como iriam até lá: “Vamos em belos camelos que levarão palanquins, um para cada pessoa da minha família. Mamãe levara Azizah no colo e seu leite sairá farto e doce como o mel. Mohamed e Kalil tomarão tanto chá que ficarão até de barriga cheia. Yasmin ficará brincando seus jogos de menina, enquanto eu, eu andarei sem palanquim e irei na frente guiando os outros. Por onde formos as pessoas vão perguntar: Quem é aquele moço, que anda no camelo com tanta elegância?”
Raj sorriu e olhou para o céu onde as estrelas ainda brilhava e escolheu uma ao acaso e pensou: “Aquela é a estrela que me guiará caso eu me perca, e é ela que me levará de volta para os brilhos dos olhos de Aisha. Ela me verá no camelo e logo vai querer se casar comigo. Podemos aproveitar que estamos indo para Meca e fazemos uma bela cerimônia, com muita comida e muita bebida”.
Raj sentiu um novo cutucão e foi logo estendendo a mão. Porém, ao se virar, viu o Patrão em pânico:
_Raj, as pessoas estão fugindo. Elas dizem que alguns bairros estão sendo atacados por terroristas.
Só então Raj percebeu o tumulto que estava na rua, com pessoas correndo e gritando por todos os lados.
_Sua casa está muito perto dos ataques, acorde sua mãe e seus irmãos e saiam de lá o mais rápido possível. Vá rápido!
Raj correu como o vento pelos bairros de Damasco e no caminho viu muitas pessoas caídas pelo chão ou portando máscaras ou tentando proteger o rosto de alguma coisa. Instintivamente, o rapaz tirou a camiseta e a enrolou sobre a boca e o nariz. Fez na hora certa, pois alguns lugares ainda continham restos de um gás que dificultava a respiração e dava náuseas. Raj sentia vontade de desmaiar, mas resistiu bravamente pois sabia que desistir ali significava a morte certa.
Enfim, chegou ao bairro onde morava e a situação lá não era diferente. Muitos mortos estavam pelo chão e os vivos choravam ou agonizavam até a morte. O resgate era improvisado e feito por pessoas que vestiam máscaras de gás. Utilizando sua habilidade adquirida recentemente, ele conseguiu furtar uma das máscaras e a colocou no rosto. Feito isso, entrou no prédio onde morava, sempre se lembrando de não tocar em nada, como havia aprendido na escola.
Quando ele entrou no apartamento, não acreditou no que viu. Sua mãe estava morta na sala, ainda segurando o bebê também morto. Seus irmãos estavam todos no quarto e morreram dormindo, talvez também sonhando com a aguardada viagem para Meca. Apesar da tristeza, Raj não chorou, pois seu coração havia abandonado seu corpo no exato momento em que havia entrado naquele lugar.
Ele ficou apenas lá, imóvel, vendo seus irmãos dormindo sendo levados pelo resgate. Esperou até o amanhecer para sair na rua e ver como seu bairro havia ficado. Os que estavam bem, ajudavam feridos ou levavam os mortos para serem enfileirados nas ruas. Essas filas eram enormes, mas ele não teve dificuldades em reencontrar sua família. Desta vez ele chorou e pegou um pedaço de roupa de cada um deles para guardar de recordação
Ficou o dia inteiro ao lado de seus familiares até que eles fossem levados pelos militares, para serem enterrados em um campo fora de cidade. Sem ter pra onde ir, Raj acabou encontrando um comboio que escoltava refugiados. Ele acompanhou o comboio, na esperança de encontrar sua tia no campo de refugiados.
Naquela noite, finalmente Raj foi vencido pelo cansaço e dormiu. Acabou sonhando e nele Raj não estava em um caminhão militar, mas sim nas costas de um camelo. Seus irmãos, ao invés de dormirem o sono eterno, estavam em seus palaquins brincando e bebendo. Sua mãe abraçava Azizah, que falava suas primeiras palavras. E Aisha, Aisha ainda esperava lá do outro lado, bem aonde a estrela apontava a direção.
No dia 21 de agosto de 2013, centenas de Sírios morreram em um atentado supostamente arquitetado pelo presidente Bashar al-Assad. Dentre os mortos haviam muitas mulheres e crianças que morreram dormindo, já que o ataque ocorreu de madrugada. Ainda não se sabe o motivo de tantas mortes, nem mesmo se as inúmeras fotografias e filmagens foram forjadas pelos rebeldes, independentemente disso, esse texto é para homenagear os inúmeros inocentes que já morreram em diversas guerras ao longo da história humana. A questão final que fica é: Quantos mais precisarão morrer para que a humanidade aprenda finalmente a viver em paz?
Chester Chenson
Ótimo texto Chester!
Uma pena que as pessoas precisem ler coisas como essas pra lembrar que quem vive nesses lugares também é humano…
Ontem tive dificuldade em dormir depois de ver as fotos dos corpos. Foda… estou com essa coisa entalada na garganta até agora. E digamos que estou bastante habituado a lidar com cadáveres. Inacreditável ver uma coisa dessas acontecer nesse século.
Mais inacreditável é a indiferença coletiva. Gente discutindo reality show, gente nem sabendo o que está acontecendo. Países não querendo se meter, ONU relutante em se meter. Dois pesos e duas medidas. Por muito menos o mundo inteiro já gritou, os EUA fizeram escândalo e a ONU saiu entrando. Nojento, fica claro que a vida humana nunca foi a prioridade nos atos de todo esse povo.
Indiferença coletiva enquanto forem árabes (ou cucarachas) que morrerem. Tente só matar essa quantidade de primeiromundenses pra vc ver só…..
Quantos morreram no último atentado de Boston? Três? E só se falou disso nas semanas seguintes…
É ainda pior que dois pesos duas medidas. A impressão que me passa é que q a parte do mundo sob o domínio do cristão branco não v problemas em árabes matando árabes, v solução. Quanto menos desses terroristas melhor, se ñ é agora será um dia. Um pensamento análogo ao bandido bom é bandido morto. Ou pq o exército americano pode matar uma vila inteira, metralhando mulheres e crianças, pq recebeu uma denúncia de que ali existem terroristas escondidos, denúncia essa que não tem como ser comprovada. E SE tivesse como comprovar AINDA ASSIM é absurdo. Morreram inocentes? São inocentes agora, um dia serão homens bombas se estourando em um supermercado qualquer. Do mesmo nível, que parece menor MAS NÃO É pq explica bem a psicologia dessa gente AMOROSA, do amor cristão destilado no ‘seus problemas estão assim pq vc ñ vai na igreja/vai na igreja errada’
Já ouvi MUITO isso.
Olha, acho que nem precisa tanto: mesmo que saibam que morreram inocentes que nunca seriam terroristas, tá valendo, as pessoas toleram esse “dano colateral” quando as vítimas são pessoas com as quais não se identificam. Já vi populacho classe média típica dizendo frases como “não se faz um omelete sem quebrar os ovos” para justificar esse tipo de atrocidade. O brasileiro médio está desenvolvendo uma semi-psicopatia coletiva, uma insensibilidade a outros seres humanos que é muito preocupante. Entendo que no Brasil a violência está demais e que se as pessoas não se anestesiarem um pouco, não criarem um pouco de resistência se deprimem e não vivem, mas passou do ponto!
Creio que incontáveis vidas humanas… (até mesmo as nossas!). A ganância, a intolerância, o fanatismo religioso (em nome de Deus, ou de Alá, qual seja ele, que vão continuar a não existir) e, a sede de poder dos homens parece não ter limites… afinal o que sustenta determinadas produções industriais em alguns países, senão as malditas matanças… E produção significa $$$$. Assim o maldito ciclo continua!
Olha, nem acho que seja em nome de Deus não, é em nome do dinheiro!