Des Contos: Fria.

Augusto sente o corpo gelado, as pálpebras parecem pesar uma tonelada. O ar preenche seus pulmões de forma abrupta, sente um formigamento correndo do centro do seu peito até as extremidades de seu corpo. Seus sentidos parecem finalmente estar voltando. Apesar de um leve desequilíbrio, consegue-se manter em pé. Lentamente, abre os olhos e depara-se com a pequena janela na porta metálica.

Do lado de fora, enxerga o laboratório. O som do mecanismo de liberação da porta traz um grande alívio. A porta se levanta lentamente, Augusto não espera e decide passar abaixado mesmo para se livrar daquela câmara o mais rápido possível. Do outro lado, Paula, como esperado. A reação dela, nem tanto.

PAULA: AH! Que susto!
AUGUSTO: Desculpa?
PAULA: Você tem que ir falar com o chefe… Deixa que eu arrumo o que falta aqui.
AUGUSTO: Tá… ele está lá na sala de reunião?
PAULA: Deve estar… Vai logo, Augusto! Você já está atrasado…

O sirene que marca a liberação da porta de entrada do laboratório experimental toma conta do ambiente.

PAULA: Ai, ele já chegou?
AUGUSTO: Calma, eu converso com ele…

O jovem presidente da empresa surge do corredor de entrada com seu habitual passo apressado. Concentrado numa ligação em seu celular, responde o cumprimento de Paula com a mão em riste. Depois de repetir a mesma frase algumas vezes, parece frustrado.

CHEFE: Não sei porque vocês fazem laboratórios nesses lugares sem sinal! É para me fazer perder tempo, não é? Vocês cientistas não tem a menor ideia de como tempo é… é…

Ele parece finalmente trocar olhares com Augusto. A expressão confusa é complementada com um leve acenar de cabeça e os dois dedos indicadores apontados para Augusto.

AUGUSTO: Algum problema?

Novamente a sirene.

AUGUSTO: Pronto! Aqui está o seu café… demorou porque a gente teve que fazer e… e…

Também adentrando a sala, Augusto. Outro Augusto. Diante dos incrédulos presidente e assistente de laboratório, dois Augustos. Um postado logo diante da entrada da câmara de criogenia, outro no final do corredor de entrada, segurando uma fumegante xícara de café.

PAULA: Gente… isso… isso não é hora de piada.

CHEFE: Muito engraçado, bela maquiagem… mas eu não estou aqui para ver showzinho de cientista entediado. Chega de brincadeira e vamos logo aos testes.

AUGUSTO UM: Ha… hahahaha! Tá bom! Boa! Enquanto eu fiquei congelado vocês armaram tudo isso, né?

Paula bufa descontente e volta a analisar dados numa tela do painel. O chefe fica olhando para os dois Augustos, alternadamente. Augusto com a xícara de café na mão começa a se aproximar de Augusto próximo da câmara de criogenia.

AUGUSTO OUTRO: A máscara é perfeita…

AUGUSTO UM: Já perdeu a graça… Quem é você? O Bastião? O Gláuber?

AUGUSTO OUTRO: Você disse que ficou congelado?

AUGUSTO UM: A máscara é perfeita mesmo… Mesma altura, mesmo porte físico…

CHEFE: Vocês são todos malucos!

Os dois Augustos se aproximam, um coloca a mão no pescoço do outro, como se estivessem procurando alguma emenda. Eventualmente começam a cutucar um o rosto do outro.

AUGUSTO OUTRO: Não tem máscara!

AUGUSTO UM: Não faz sentido do ponto de vista científico… Se eu fui realmente congelado… Mas como eu voltei no tempo?

AUGUSTO OUTRO: Você deveria se manter na linha de tempo original.

AUGUSTO UM: A não ser que…

AUGUSTO OUTRO: Você ficou! Poincaré!

PAULA: Peraí… peraí… vocês…

Paula se aproxima dos dois e repete os gestos de confirmação de identidade das duas versões de Augusto. Ela entra em estado de choque, aparentando dificuldade de sequer balbuciar alguma coisa.

CHEFE: Ou vocês me explicam agora mesmo o que está acontecendo ou está todo mundo no olho da rua!

AUGUSTO UM: Posso?

AUGUSTO OUTRO: Claro!

AUGUSTO UM: Se a gente esperar o tempo suficiente ou viajar longe o suficiente, há uma teoria de que por pura chance encontremos uma cópia exata da nossa realidade atual. É o princípio da recorrência de Poin…

CHEFE: Não interessa… Essa sua máquina faz cópias das pessoas?

AUGUSTO OUTRO: Sim. Mas do ponto de vista de quem fica, você some.

CHEFE: Imagine só o tempo que eu ganharia tendo dois de mim? Me coloca na máquina!

AUGUSTO UM: Calma, ainda não é certeza que vai sempre funcionar assim! Precisamos fazer testes para comprovar a teoria e descobrir porque as cobaias animais não desapareceram em experimentos anteriores.

CHEFE: Eu te pago, eu mando. Precisa colocar roupa especial ou pode ir assim?

AUGUSTO OUTRO: Em tese as roupas não influenciam, a máquina congela até o ar ao seu redor. Mas pense nos ris…

O engomado executivo desdenha dos avisos de ambos os Augustos e segue decidido rumo à câmara criogênica. Um dos dois gêmeos temporais segue até o painel, apertando o botão de liberação da porta metálica. Ela se abre lentamente, e para a surpresa de todos, esgueirando-se por debaixo da fresta surge mais uma pessoa: Paula.

AUGUSTOS: PAULA?

PAULA UM: Ai meu deus!

CHEFE: Que porra é essa? Era minha vez!

PAULA OUTRA: … Poincaré!

AUGUSTOS: Isso!

PAULA UM: Eu tinha que descobrir o que aconteceu, né? Maluca!

PAULA OUTRA: Você me conhece!

CHEFE: Posso ir agora?

AUGUSTO UM: Bom, agora está provado que funciona mais que uma vez.

PAULA OUTRA: Mas você vai sumir!

CHEFE: Blá blá blá, eu já sei. Abre de novo a porta! Minha vez! Minha vez!

Um dos Augustos aperta novamente o botão de liberação da porta. O executivo observa para confirmar que não há mais ninguém ali e finalmente entra. A porta se fecha. Augustos e Paulas se entreolham, sorrindo.
Um flash de luz azulada vaza pela janela na porta da câmara. Assim que ela é aberta novamente, nem sinal do chefe.

AUGUSTO UM: Bom, ele fez isso por escolha própria.

PAULA OUTRA: As câmeras de segurança são nossas testemunhas.

PAULA UM: Isso mesmo, Dê.

Todos ficam em silêncio, paralisados por alguns segundos. Um dos Augustos deixa escapar um longo suspiro.

FIM FIM

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