Skip to main content

Desfavor Explica: PEC 37

| Sally | | 76 comentários em Desfavor Explica: PEC 37

dex-pec37

Muito vem se falando sobre a PEC 37, mas apenas sobre suas consequências: “A PEC da impunidade”, “um retrocesso” e coisas do tipo. No máximo se explica o que é, mas poucos estão explicando PORQUE ela será um grande desfavor para o Brasil. Resolvi fazer este texto para explicar o básico do básico, sem qualquer pretensão técnica ou jurídica, muito pelo contrário, é um texto bem pouco técnico. Quem fala aqui é a Sally cidadã e não a Sally advogada. Hoje é mais importante me fazer entender do que mostrar erudição e notório saber jurídico.

Como vocês sabem, o poder no Brasil é dividido em três esferas: Legislativo, Executivo e Judiciário. Ter uma noção clara da função destes três poderes para compreender os problemas que a PEC 37 vai causar é fundamental. Se você não sabe muito bem quem é quem, recomendo que leia este texto, onde eu explico com calma a função e os órgãos que compõe cada um.

No Brasil, as leis funcionam em um sistema de hierarquia. A principal é a Constituição da República, que trata dos princípios mais importantes para manter um Estado Democrático de Direito. É nela que está a base que norteia todas as outras leis que serão criadas. Tudo que existe em matéria de lei no Brasil deve respeitar a Constituição. Se a contrariar, pode ser declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal e deixar de existir. Justamente pela Constituição tratar de assuntos tão importantes, ela tem uma proteção maior contra alterações.

Para evitar que algum aventureiro chegue mude sua redação em benefício próprio, desvirtuando suas características e sua real intenção, a Constituição não pode ser facilmente modificada. Quem quiser fazer alguma alteração na Constituição, o deve fazer através de uma Proposta de Emenda à Constituição, ou seja, uma PEC. É um procedimento mais rigoroso, exigindo que este projeto seja visto e revisto por diversos órgãos em diversas votações… em resumo para leigos, tem que passar pelas mãos de bastante gente para dificultar o favorecimento pessoal. Faz sentido, se ocorrer uma mudança ela pode invalidar dezenas de leis que sejam incompatíveis e alterar todo o sistema jurídico nacional.

Cada Proposta de Emenda à Constituição recebe um número, por ordem crescente, à medida que é apresentado. Por isso a tão falada PEC 37 se chama PEC 37, ela é a trigésima sétima proposta de emenda à Constituição de 1988. Já ultrapassamos as cem Propostas de Emenda Constitucional, se não me engano, há 108 PECs aguardando votação. Vale lembrar que alguns temas são tão essenciais ao Estado Democrático de Direito que nem ao menos podem ser objeto de PEC que os modifique (papo técnico: cláusulas pétreas) para enfraquece-los, apenas para fortalece-los. Na minha humilde e irrelevante opinião, a PEC 37 nem poderia ser colocada em votação por violar estas cláusulas pétreas, já que esculhamba de vez com a apuração de determinados crimes inviabilizando sua punição. Já já vem a explicação detalhada.

Agora que já sabemos o que é uma PEC, vamos entender porque o conteúdo da PEC 37 é nefasto. Mas antes de entrar diretamente no seu conteúdo, quero falar um pouco sobre o Ministério Público, em parte tecnicamente, em parte minha opinião pessoal.

O Ministério Público é uma instituição que não está vinculada a nenhum dos três poderes: Executivo, Legislativo ou Judiciário. Justamente por isso ela é conhecido como “O Quarto Poder”, é autônomo, não tem patrão, não se subordina a ninguém. Isso lhe proporciona imparcialidade, já que em muitos processos o Ministério Público atua como fiscal da lei e na área criminal costuma atuar como autor da ação penal, ou seja, é ele quem entra com uma ação contra o criminoso, é ele a parte autora, é ele que pede ao juiz que Fulaninho seja preso. Ministério Público é autor e criminoso é réu no processo penal, como regra geral.

As atribuições do Ministério Público estão especificadas na Constituição da República. Se você tiver algum tempo e alguma cidadania, sugiro que leia os artigos da Constituição que falam sobre o Ministério Público: art. 127 a 130-A. Vou fazer um resumo muito simplificado. A Constituição diz que o Ministério Público é essencial à função jurisdicional do Estado e que lhe cabe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (aqueles aos quais o cidadão não pode renunciar). O art. 129 fala especificamente das funções do Ministério Público. No meio de várias funções, uma deve ser observada com atenção: “exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade”. Ou seja, a Constituição deixa uma brecha, uma margem, para que o Ministério Público atue naquilo que achar necessário desde que isso seja compatível com suas funções.

Como já vimos, o Ministério Público pode ser o autor de uma ação criminal. É ele quem lê o inquérito policial e as provas colhidas, decidindo se ocorreu ou não um crime: se acha que ocorreu, faz a denúncia e dá início à ação criminal. Não é a conclusão à qual o Delegado chega ao final do inquérito o que realmente importa e é determinante para fins de processo e sim a opinião do Ministério Público. O trabalho do Delegado e da polícia é apenas levantar dados para embasar a decisão do Ministério Público. Em direito existe uma frase bem popular, quase que um princípio geral, que diz o seguinte: “Quem pode o mais, pode o menos”. Pois bem, quem tem o poder de processar criminalmente um cidadão (o mais) pode muito bem investigar uma pessoa (o menos), afinal, um é consequência lógica do outro.

Um breve parágrafo para minha opinião pessoal sobre o Ministério Público, como regra geral: é ele o último fio de vergonha na cara deste país. São profissionais preparadíssimos e com sangue nos olhos para fazer justiça. Pessoas de notório saber que não sei como ainda conseguem manter um mínimo de ordem no país e peitar poderosos por todas as partes. Por não estarem subordinados e/ou vinculados a ninguém, são o órgão mais imparcial que temos no momento, e menos corrupto também (menção honrosa para a Defensoria Pública que também merece todo meu amor, o Defensor Público é um herói). Por tudo isso narrado, o Ministério Público incomoda, pois é o único que “ousa” dar tapa na cara do alto escalão. É o único que tem condições disso no atual sistema vigente no país.

Depois de duas páginas introdutórias, vamos para mais duas falando propriamente da PEC 37. A Constituição não dá poderes expressamente para que o Ministério Público faça investigação criminal. A Constituição diz que a investigação criminal será feita pela polícia, porém não diz que será feita “exclusivamente” ou “privativamente” pela polícia. Pode parecer um detalhe bobo, mas em diversos momentos a Constituição usa os termos “exclusivamente” ou “privativamente” ao se referir às competências, o que leva a crer que se não o fez ao falar de investigação criminal não foi por esquecimento e sim por vontade de deixar essa janela aberta.

Justamente pela Constituição não prever expressamente que o Ministério Público deve fazer a investigação criminal, muita gente incomodada com a eficiência e falta de medo das investigações criminais conduzidas pelo Ministério Público resolveu, após anos de Ministério Público investigando sem objeções, dizer que não pode. Curioso, não é de ontem que o Ministério Público também faz investigações criminais, mas justamente agora um grupo se indignou com isso. O resultado dessa indignação é a PEC 37, que propõe uma alteração na Constituição para que o texto passe a dizer que a investigação criminal compete EXCLUSIVAMENTE à polícia.

Vocês acham que o Ministério Público tem prazer carnal em fazer investigação E ser autor de ação penal? Não tem. Eles trabalham dobrado, fazendo o trabalho que a polícia não faz direito. Porque alguém chamaria para si uma responsabilidade que é de outro órgão? Porque funcionários concursados que estão com a vida ganha e excelente salário iriam além do seu trabalho? Seria o Ministério Público um aglomerado de workaholics? Não, claro que não. O Ministério Público o faz porque se não o fizer, gente rica nunca será processada neste país. O faz porque depois de anos e anos deixando as investigações nas mãos da polícia cansaram de prender apenas ladrão de galinha.

A polícia é corrupta? Em sua maioria sim, mas a questão da investigação criminal nem sempre passa por aí. A polícia, ao contrário do Ministério Público, é vinculada e subordinada ao Poder Executivo. E dentro do Poder Executivo, onde o chefe máximo é o Presidente da República, a polícia é ralé. Praticamente todo mundo está acima dela. Como é que alguém nessa situação vai poder investigar com imparcialidade e afinco um superior hierárquico seu? Difícil, né? Talvez na Suíça, mas em um país como o Brasil, onde um telefonema encerra uma investigação, a coisa não dá certo. No país dos contatos, do jeitinho, do “uma mão lava a outra”, quem investiga tem que ser imparcial, independente, para que a investigação seja isenta. Mesmo os policiais e delegados mais comprometidos poderão ser freados, cerceados e neutralizados se mexerem com um de seus superiores.

Se o Ministério Público perder o poder de investigar, perde o poder de colher provas contra criminosos. E sem provas não há processo, já que para efetuar uma denúncia bem feita, que seja acolhida por um juiz, são indispensáveis indícios de materialidade (que ocorreu o crime) e de autoria (que foi essa pessoa quem cometeu o crime). É como dar uma cozinha com uma geladeira vazia para um cozinheiro e mandar que ele faça um bolo. Nada mais justo que quem vai preparar o bolo e sabe muito bem do que ele precisa possa ir ao mercado e comprar os ingredientes para prepara-lo em vez de depender de terceiros que muitas vezes não o fazem.

Hoje, no Brasil, apenas 11% das ocorrências sobre crimes feitas em delegacias viram uma investigação policial. Ou seja, quase 90% das ocorrências passam em brancas nuvens e são ignoradas pela polícia. Você pode estar pensando que chega muita besteira a uma delegacia, coisas como briga de vizinhos e similares, mas estamos falando de coisas sérias aqui. Por exemplo, nos casos de homicídio, apenas 8% das ocorrências são convertidas em uma investigação. Os dados não são da minha cabeça, são do Conselho Nacional de Justiça e provam o que a população já sabe na prática: a polícia é ineficiente para fazer valer a lei formalmente. Quantos aqui não conhecem alguém que foi à delegacia tentar registrar um crime e não deu em nada? Procurem o Ministério Público em vez da polícia (pode ser feito até mesmo online, de forma anônima) e observem a diferença. É gritante, o Ministério Público investiga, via de regra, como um cão farejador, independente da condição socioeconômica do acusado.

Se deixarmos a investigação criminal como atividade exclusiva da polícia, nunca mais nenhum membro do Poder Executivo (seus superiores hierárquicos) será processado na vida, pois o Ministério Público nunca receberá as provas que precisa para iniciar uma ação criminal contra os membros do Poder Executivo. Ou seja, crimes cometidos por políticos ficarão impunes, mas crimes cometidos pelo povo serão exaustivamente investigados. Sabe aquela história de que quando militar é julgado por militar nunca dá em condenação por causa do corporativismo? Pois é, é pior do que isso, porque ao menos no caso dos militares quem investiga é hierarquicamente superior a quem é julgado. Repito: mesmo os policiais mais honestos e comprometidos terão medo de foder com seus superiores.

Se eu fosse membro do Ministério Público, eu estaria dez vezes mais revoltada do que já estou. Realiza: a pessoa depende de uma investigação para fazer seu trabalho. Quem deveria investigar não o faz, eles chamam para si a responsabilidade e fazem o trabalho dobrado (o deles e o da polícia) para conseguir trabalhar e ainda vem uma cambada dizendo que eles não tem esse direito? Por favor, é muito desaforo. Porque não levantaram essa lebre do Ministério Público não poder investigar antes? Porque esperaram anos para questionar a investigação do Ministério Público? Talvez porque antes não fosse um incômodo, talvez porque de uns tempos para cá muito político corrupto está finalmente sendo processado e julgado.

Está na cara que o que realmente começou a incomodar não é a formalidade, o suposto “respeito pela Constituição”, pois esse povo nunca fez as coisas da forma correta, sempre ignorou formalidades e sempre sapateou em cima da Constituição. O que incomoda é que estão começando a prender os colegas. É preciso secar essa fonte de investigação para que o Ministério Público seja esvaziado e vire um órgão morto e dependente da polícia se um dia quiser processar um político ou uma pessoa influente e foque seu trabalho apenas em crimes do povão. Voltaremos à era onde um telefonema a delegacia tem o poder de impedir um inquérito e um processo criminal, onde a intimidação de um superior impede que justiça seja feita.

Vocês sabem que eu sou a rainha de criticar tudo e todos, principalmente órgãos públicos. Estou aqui abertamente defendendo não apenas o direito do Ministério Público realizar investigações como também defendendo a instituição Ministério Público. Se ainda há alguma ordem neste país, devemos agradecer ao Ministério Público que não abaixa a cabeça para ninguém, que não teme ninguém e que comprou a briga de investigar políticos poderosos do país todos e agora está pagando o preço. Não é concebível um Estado Democrático de Direito, um sistema minimamente decente e eficiente, sem o Ministério Público tendo o poder de investigar. É por isso que eu acho que essa PEC não deveria sequer ser votada, porque indiretamente ameaça as cláusulas pétreas da Constituição, ameaça que se faça justiça no país.

Em tese, o Ministério Público efetuar investigação criminal é o mais indicado? Talvez não, em tese seria mais correto a polícia investigar. Mas se tudo que está em tese na Constituição fosse colocado na prática, talvez nem precisássemos de polícia. Na prática, tirar o poder de investigação do Ministério Público é quebrar suas duas pernas e ainda quebrar a coluna do Judiciário. O pior é que quem vai votar essa PEC são justamente as pessoas que vão se beneficiar da impunidade que ela proporciona. Por isso, ao contrário de aberrações criadas apenas para desviar a atenção do povo (como a “cura gay”), a PEC 37 é capaz de ser aprovada. Graças à pressão popular sua votação foi adiada, pois se fosse votada agora não seria aprovada. Querem esperar a poeira abaixar e vão votar quando o povo se acalmar, talvez em um carnaval ou em meio a uma Copa do Mundo. O preço da democracia é a eterna vigilância, é preciso vigilância constante, se o povo afrouxar esta PEC vai ser aprovada.

Porém, se conseguirmos resistir e ela não for aprovada, o ganho será enorme. O Ministério Público vai partir para cima deles feito Pit Bull faminto e, muito em off, estão prometendo uma limpa com inúmeras prisões de políticos. Vale a pena lutar por essa causa. Desfavor é contra a PEC 37, nem que para isso tenhamos que dar nosso próprio sangue. Onde tiver manifestação contra a PEC 37, estarei presente e peço a todos que estão lendo este texto que o façam, para evitar um terrível retrocesso.

Para pedir mais explicações sobre a PEC 37, para sugerir a PEC 171 que prevê pena de morte para político corrupto ou ainda para divulgar este texto das mais diversas formas possíveis: sally@desfavor.com


Comments (76)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: