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Desfavor Convidado: Amor.

| Desfavor | | 47 comentários em Desfavor Convidado: Amor.

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Amor

Quando li a resenha do filme Amor, pensei que fosse um filme sobre…amor. No caso, o amor de duas pessoas na casa de seus oitenta anos, tentando suavemente lidar com a velhice à espera da transição para o andar de cima, de baixo ou simplesmente o fim, dependendo da sua crença.

Só que de transição, suavidade e amor, esse filme não tem nada. E é por isso que merecia ganhar o Oscar.

Georges e Anne são dois professores de música aposentados no alto dos seus oitenta anos, com uma vida tranqüila, já que a filha mora com sua família no exterior, morando em um grande apartamento em Paris e aproveitando a vida cultural que a cidade oferece, como assistir concertos de um grande pianista ex-aluno deles.

Um dia, Anne sofre um pequeno derrame. Médicos dizem que a cirurgia que ela fizera pouco antes para justamente evitar essa situação não havia dado certo e que a piora era inevitável. Tanto que, logo em seguida, ela fica com metade do corpo paralisado.

Nessa hora, pensei que ser daqueles filmes melosos, em que a única filha deixaria de ser aquele ser ingrato ausente, e comporia com o pai aquele quadro adorável de família de comercial de margarina, na torcida de que o amor curasse milagrosamente a mãe.

Porra nenhuma. Nada de amor e abnegação. O que o derrame da mulher desencadeou foi o egoísmo de todo mundo.

A começar pela própria doente, a mais egoísta de todas, ao pedir que não fosse levada novamente para o hospital. Afinal, uma coisa é ter um câncer terminal, poucos meses de vida. Outra é ter um derrame e não saber quanto tempo levará para a pessoa morrer (a avó de um amigo meu passou dez anos entrevada). Uma coisa é ter uma família morando junto ou perto, em que todos possam se revezar na hora de limpá-la. Outra é incumbir um idoso de oitenta e tantos anos ao esforço físico e psicológico de cuidar sozinho da mulher. Por mais que se contratem enfermeiras que dêem banho com aquele carinho de um banho-e-tosa.

Em seguida, o velho. Muito bonito ficar ao lado da cama da velha, cantar-lhe músicas, fazer-lhe carinho. Mas, caramba, de novo, uma coisa é topar algo que vai ter um final determinado. Outra é topar algo que não se sabe quando vai acabar. Numa dessas, estará tão velho e frágil que ele mesmo se coloca em risco (e a mulher) quando faz um esforço descomunal para tirá-la ou colocá-la na cadeira de rodas. Ou colocar a mulher de volta na cama, quando esta caiu no chão. Sem falar do desgaste psicológico. Ter que amenizar o sofrimento da mulher, enquanto esta o xinga, faz pouco de seus cuidados, delira ou mesmo se recusa a tomar água. Aí soldadinho perde a paciência, senta a mão na doente e todos saem criticando.

Por fim, a filha. A cena mais legal do filme é quando a infeliz está sentada ao lado da mãe, incapaz de falar pelo derrame, e insinua que seria uma boa aproveitar o bom momento do mercado imobiliário para vender o apartamento, que não seria uma boa herança já que a filha morava na Inglaterra. No filme todo, a filha se desespera, chora, reclama da atitude do pai, cobra um melhor tratamento para a mãe, mas ajuda efetiva me$mo, nada. Ao que o pai responde que, “se é para falar sério”, a alternativa seria deixar a mulher aos cuidados da filha, e esta arrega. O único mais sensato é o genro, que pergunta ao sogro até quando ele pretende ir com aquela situação.

Aliás, podem criticar, mas simplesmente não consigo engolir filhos únicos que deixam seus pais idosos para ir morar bem longe. Afinal, nem todos nossos idosos têm as mesmas condições financeiras quanto o casal do filme para se virarem sozinhos. E tão nojento quanto aqueles que seguem carreiras românticas e deixam os seus aos cuidados do SUS.

Ao final do filme, a primeira coisa que disse ao marido foi de que, se eu ficasse doente na idade daquela mulher, pode me mandar para um asilo sem o menor problema. Asilo sim, não sou fã dessa coisa de que o idoso possa levar uma vida independente. Não só porque vi o quanto, no começo do filme, já era difícil cuidar das lides domésticas com uma desenvoltura muito ruim, mas também por ter como vizinhas, quando solteira, senhoras viúvas que compartilhavam um mesmo terreno, cada uma na sua casa. Uma delas, a mais velha, me confidenciou uma vez que, para preparar o almoço, tinha que acordar cedinho para cozinhar.

Diante disso, por que não, no final da vida, ir para um bom asilo? Em primeiro lugar, não teria que incomodar filho nenhum, e os profissionais cuidariam de mim com profissionalismo, sem qualquer bondade condicionada a um quinhão maior de herança. Além disso, caso eu precisasse de cadeira de rodas, os apartamentos de hoje não tem o mesmo tamanho dos apartamentos de antigamente, ao passo que um bom asilo teria espaço suficiente para me deslocar. Em seguida, qual o estigma de ir para um asilo em se tratando do convívio com os filhos? Com a vida corrida de hoje, a freqüência da visita deles tenderia a ser a mesma, seja na sua própria casa, seja estando em um asilo. A não ser que essas visitas fossem para tascar os netos para que você alimente, dê banho e eduque por anos e anos, da infância até a adolescência (estendida), aproveitando-se da sua mão-de-obra, e, nisso, melhor mesmo ficar no asilo.

Enfim, do que adianta ter a suposta vida independente se a pessoa idosa leva muito mais tempo para realizar as tarefas do dia-a-dia? Não seria melhor delegar essas tarefas e aproveitar o pouco tempo que lhe resta realizando algo que realmente agregue? Afinal, estudar, ter família, criar os filhos, ser ainda capaz de realizar tarefas domésticas, não é realização para levar para o túmulo ou para a urna. Criar os netos muito menos. É meramente um conjunto de escolhas a que você se propôs ao longo da vida e tem a obrigação de concluir. Nada de edificante nem de especial.

Sem falar que me doeria ver o marido, bem idoso, se desdobrando, indo além de suas forças, só para cuidar de mim. Longe de mim ser um fardo no caminho dos meus…Esse filme abriu os olhos.

Pois é, esse filme, aquele outro, os Intocáveis, fazem com que prestemos mais atenção ao cinema francês, sem firulas, sem o dito-pelo-não-dito. Pena que ainda dependo (e muito) de legendas para assistir seus filmes. Caso contrário, baixaria muito mais filmes de lá.

Assinado: Suellen


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