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Des Cult: Agora é tarde.

| Sally | | 101 comentários em Des Cult: Agora é tarde.

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Quando eu digo que não há vida inteligente na televisão brasileira cometo uma injustiça. Existe sim, mas é algo tão raro que a tentação de generalizar bate forte. Mas hoje vim aqui corrigir esse erro. Taí uma coisa que eu nunca pensei que fosse fazer: um texto elogiando um programa da TV aberta. Aliás, em mais de quatro anos de blog com postagens de domingo a domingo (descansar é para fracos, como Deus), não me lembro de ter elogiado um programa de TV (muito pelo contrário) e não creio que volte a fazê-lo. “Agora é Tarde”: uma flor que nasceu no meio de um monte de estrume. Um programa que guarda muita semelhança com o Desfavor, seja no tom, seja na forma.

Para quem não sabe, o programa “Agora é Tarde” é um talk show (na verdade vai muito além disso, mas é este o formato) apresentado por Danilo Gentili, exibido pela Bandeirantes, de terça a sexta no horário de meia noite. Vem sendo exibido desde 2011 e atualmente o programa está de férias. Retorna semana que vem. Acho improvável que alguém que goste do Desfavor não goste desse programa, é o tipo de senso de humor que a gente defende e pratica: politicamente incorreto, cheio de referências, meio nerd, meio ordinário, rindo de tudo e todos inclusive de si mesmo. Nada é sagrado. Se você nunca viu, recomendo que veja. E nem precisa esperar até semana que vem, os vídeos dos programas antigos estão disponíveis no YouTube.

Evidente que estamos falando de um programa de TV aberta no BRASIL, logo, há sérias restrições ao que se pode fazer. Mas, dentro destas restrições, o “Agora é Tarde” reina, e constantemente flerta com o desastre chegando muito perto da linha socialmente traçada onde o que é dito deixa de ser humor e passa a ser uma grande canalhice endossada pela histeria social. Tá na fronteira do “bullying”, o que quer que isso tenha se tornado nos dias de hoje. Corajosos. Admiro quem tem coragem (e oportunidade) de fazer isso mostrando a cara. Assista preparado, sabendo que infelizmente não será explorado todo o potencial de Gentili e seu time em função dessas limitações, mas sabendo também que eles são tão bons, mas tão bons, que mesmo meia bomba valem a pena.

O programa respeita um formato mais ou menos clássico: Danilo Gentili é o apresentador (entrevistador) e abre com um monólogo comentando assuntos da atualidade com um tipo de humor bastante Impopular (com maiúsculas, ou seja, um humor de gosto duvidoso e ousado) para os padrões da TV. No palco, Marcelo Mansfield, Léo Lins e Murilo Couto comentam e fazem piadas em tempo real durante todo o programa. Inclusive Mansfield tem um quadro muito parecido com o nosso Somira Responde (avô da Gina Indelicada) chamado “MM Responde”. Todos são muito bons, destaque especial para o Léo Lins, que é fora de série.

A banda que acompanha o programa, teoricamente responsável pelo fundo musical é o Ultraje a Rigor. Se você não se lembra de Ultraje a Rigor, parabéns, você é jovem. Eu me lembro e eu sempre amei profundamente Ultraje a Rigor. No programa eles não são apenas a música de fundo, eles tem voz ativa, fazem piada e até interrompem o entrevistado. Sem contar que a escolha das músicas para receber cada entrevistado é de uma ironia e de uma riqueza em referências que nunca vi antes na TV brasileira.

Tem vários quadros interessantes, como por exemplo o “Jornal do Futuro”, mas o meu xodó, o meu amor sem fim é um quadro chamado “Mesa Vermelha”, onde Gentili, Léo Lins, Murilo Couto, Mansfield e algum convidado discutem as notícias mais bizarras da semana. Uma versão televisionada da nossa coluna TOP DES. É impagável, mexe-se com todo tipo de Intocável, há piadas envolvendo tabus como igreja/pedofilia e muitas observações ofensivas. Eu mesma não faria melhor. Inclusive quem quiser assistir apenas este quadro, basta procurar por “Mesa Vermelha” no YouTube.

O programa começou com muitas ressalvas: horário cagado, sem patrocinadores, com boatos de poucos convidados aceitando o convite e convidados que já tinham topado desmarcando em função desses boatos. Se tivessem me perguntado se ia dar certo antes de sair do papel, eu teria dito que não. Era bom demais para dar certo. Mas deu, por algum motivo que eu desconheço, meia noite uma parcela inteligente que se destaca do brasileiro médio liga a TV para assistir o “Agora é Tarde”. O programa foi crescendo, foi ganhando mais espaço, mais patrocinadores e hoje é um sucesso dentro de suas possibilidades (o horário continua muito complicado). Já recebeu convidados famosos do cenário nacional. Com isso, o brasileiro médio passou a assistir também, mesmo sem compreender 80% do programa, das piadas, das referências. Assiste porque virou moda, assiste porque alguém falou um palavrão e ele achou engraçado. Foda-se, finalmente estão alavancando uma coisa boa (chupa PT!).

Hoje o programa é um dos líderes de audiência da emissora. Tem pencas de patrocinadores e tem famosos pedindo para serem entrevistados. Se um dia eu tivesse que mostrar e minha cara em algum lugar (não que alguém queira ver, até segunda ordem eu sou porra nenhuma), seria no “Agora é Tarde”. Apenas lá. Aquilo me faz sentir em casa, aquilo é Desfavor na TV. Por mais de uma vez vi coisas idênticas no Desfavor e no “Agora é Tarde” sem que ninguém tenha copiado ninguém, apenas afinidade de humor mesmo. Nesse ponto tenho que parar para fazer um elogio aos roteiristas e produtores, porque por mais que todos aqueles que estejam no palco sejam humoristas sensacionais, eles também tem méritos. Um deles é o Juninho Bill, aquele do Trem da Alegria, que queria se Presidente do Brasil. Juninho, vou te falar uma verdade: muito melhor ser produtor do “Agora é Tarde” do que Presidente do Brasil. Tá de parabéns.

Não tem como não usar alguns parágrafos para rasgar elogios a Danilo Gentili, que conseguiu se livrar no estereotipo da moda, o de humorista de “stand up comedy” e transcendeu para algo muito maior e melhor. Sua história de vida é permeada por eventos tristes, se não trágicos, como a morte do pai (nos seus braços, por um infarto) e seis meses depois a morte de sua irmã (acidente em uma van quando ia para o seu primeiro dia de trabalho), mas ele não se apegou a todas as fatalidades que viveu e não as usou como crédito para futuras vitimizações. Muito pelo contrário, já o vi fazer piada até sobre isso. É essa sensação de que nada é sagrado, de que nada é intocável que tanto me cativa. Até então eu só tinha sentido isso assistindo a South Park. É um consolo, um alento saber que em algum lugar existe um pouco disso na TV brasileira.

Gentili apresenta o programa com muita segurança e é rápido no raciocínio, nas piadas e nas tiradas. Ele já me chamava a atenção desde os tempos de CQC, principalmente depois daquela antológica reportagem com o ET Bilu, que foi inclusive alvo de uma coluna aqui no Desfavor à época. Mas confesso que sua postura no programa me surpreendeu. Ele acerta o tom tanto ao fazer humor com ele mesmo como com terceiros. Ele sobrevive com graça e dignidade à parte podre (porém inevitável) do programa: propaganda, patrocinadores e coisas do gênero. Se o encontrasse, faria uma reverência.

Outro ponto para ele: durante algum tempo se envolveu com religião (Católica e Batista) e chegou até a pensar em ser pastor, mas não se deixou cegar. Viu a quantidade de estelionato praticada, as baixarias que aconteciam e pulou fora. Comparando sua leitura da Bíblia com o que era pregado e feito nas igrejas percebeu que havia algo errado, algo do qual ele não queria participar. É muito mais fácil se apegar a uma religião e escolher não ver e não questionar (sobretudo quando se viveu uma tragédia pessoal) do que raciocinar, admitir que se enganou e abrir mão desse “conforto”. Considero isso um ato de coragem e inteligência.

Minha admiração só aumenta quando lembro que aquilo não é propriamente a praia dele. O que ele gosta mesmo é stand up comedy, não o rótulo que se criou e sim interagir com uma plateia sem as amarras da TV. E ainda assim, consegue fazer algo que não é propriamente sua paixão melhor do que qualquer outro apresentador ou entrevistador brasileiro. Ah sim, e ao contrário do Jô Soares, ele se veste bem, é bonito e deixa o entrevistado falar. Aliás não sei porque pegam tanto no pé dizendo que ele imita o Jô Soares. Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão. Se a gente for falar de imitação, tenho dois nomes para vocês: Jay Leno e David Letterman.

Ainda assim, em vez de acusar o golpe e dizer que o próprio Jô Soares é um imitador barato, Danilo faz piada consigo mesmo afirmando que imita Jô Soares sim, inclusive inserindo no programa imitações ostensivas de vinhetas satirizadas. É a superioridade de quem se tem certeza. Enquanto Jô Soares babacamente vomita em entrevista que uma pessoa na faixa dos 30 anos não pode ser entrevistador porque não tem bagagem para isso, Gentili sorri por dentro e continua fazendo piada. Sem contar que ele tem coragem de fazer perguntas que nem Jô Soares nem mais ninguém teria: quem mais apertaria o Padre Quevedo para saber se ele já fez sexo alguma vez na vida? E apesar de evasivas iniciais, arrancou a resposta dele.

Além disso ele ainda tem tempo para cuidar de outros projetos. Ele é proprietário de um bar de stand up comedy chamado “Comedians”, localizado na Rua Augusta, em São Paulo. Se eu morasse em São Paulo, bateria ponto lá e até pediria para encenar um stand up Sally Surtada uma noite qualquer. Vai que deixam… Danilo também tem um Twitter com mais de quatro milhões de seguidores, onde define a si mesmo como “Danilo Gentili. Persona Non Grata. Desde 1979 estragando tudo e decepcionando pessoas”. Também escreveu três livros e lançou dois DVDs, um jogo (“O mundo x Danilo Gentili), escreveu letra de música e, salvo engano, em breve teremos no cinema um filme seu chamado “Mato sem cachorro”. Ah, sim, também é publicitário formado. Falando nisso, eu sinto um cheirinho de Siago Tomir nele, vocês também sentem?

Mas meu coração bateu mais forte quando descobri que ele é cartunista e trabalhou na minha maior referência de humor escrito como cartunista e como roteirista: a revista MAD. Falou em MAD (dos anos 80 e 90, porque hoje está uma tristeza), ganhou meu coração. Com tantos projetos em andamento, é natural que a rotina exaustiva da TV acabe se tornando inviável. Há rumores de que esta temporada do “Agora é Tarde” será a última. Espero sinceramente que não sejam verdadeiros. Mas, se forem, fica o consolo: melhor ver o “Agora é Tarde” acabar de pé do que vê-lo se arrastando de quatro na Globo, com seu toque de merdas, estragando o bom trabalho feito até aqui. Deixa a Globo arruinar o Adnet, não mexam com Danilo Gentili!

Além do tom politicamente incorreto, de um humor ácido e de humor de mau humor, o programa ainda tem uma vertente troll muito interessante que também identifico com o Desfavor. Por mais de uma vez um trollou o outro e todos trollaram o público. Por exemplo, simularam uma briga de Léo Lins com Marcelo Mansfield que bombou na internet, para no dia seguinte desmentirem (com direito a making off) como sendo uma brincadeira de primeiro de abril. Tem como não amar? Além disso ele não faz aquela covardia de bater e esconder a mão que muito apresentador faz, falando mal sem dar nomes. Ele brinca declaradamente, como por exemplo na campanha que o programa lançou: “Brasil sem Dráuzio”, sacaneando o médico Dráuzio Varela por ele ser um chato. Muitas palmas para ele. Alguém que magoou a Preta Gil merece um diploma de cidadão exemplar.

Mais um motivo para amar: a Veja criticou. Hoje em dia, estou adotando um critério que eu chamo de “elogio reverso”: se a Veja é contra, se evangélicos são contra ou se o PT é contra, eu tendo a simpatizar com o que quer que seja. Pois bem, a Veja, maior arauto da Intocabilidade na imprensa nacional, disse que o que Gentili faz não é humor, é bullying. Ele prontamente respondeu “E o que a Veja faz não é jornalismo, é fofoca”. Curiosamente a imprensa séria, como o jornal The New York Times (EUA), o The Guardian (Inglaterra), a revista Manager Magazin (Alemanha), a revista Forbes (EUA) e outros se rasgaram em elogios a ele e ao programa. É né… quem tem cérebro gosta.

Outro ponto positivo: os convidados. Por sair dessa babaquice lucianohuckizada da Globo, os convidados são muito mais ecléticos e interessantes. Ele não é obrigado a levar atriz da novela da vez nem apresentadora que vai estrear programa na casa. Ele não é obrigado a entrevistar sempre as mesmas caras que vemos na Globo, nem a barrar notórios desafetos da emissora. Isso faz com que ele possa não só entrevistar Rogério Skylab como ainda chama-lo para o último programa realizado no ano passado, uma ceia com “sábios” onde um dos sábios era ninguém mais, ninguém menos do que o nosso Poeta Eterno da República Impopular do Desfavor. Ele não se importa que Skylab cante que Ana Maria Braga tem câncer no cu ou que Fátima Bernardes tem corrimento. Muito pelo contrário, ele gosta de Skylab. Se entrevistar o Rafael Pilha em 2013 vira patrono do Desfavor.

Eu tenho inveja dos roteiristas do programa. Eu tenho inveja de todo mundo do programa, até da Tia do Cafezinho. Sabe quando você olha para algo e pensa: “Putz, EU queria ter criado algo tão bacana”? Pois é. O “Agora é Tarde” representa tudo que a gente vem defendendo aqui no Desfavor nos últimos quatro anos, só que com uma elegância maior (eu sou meio barraqueira às vezes). Cada vez que vejo Danilo Gentili repetindo o que a gente vem falando há mais de seis anos, meus olhos enchem de lágrimas: “Humor NÃO TEM QUE TER LIMITE”. Um plus: alguém aí já viu Danilo Gentili evadindo sua vida privada? Não, né? Ele é famoso pelo seu trabalho. Quantas pessoas desse meio podem dizer isso hoje em dia?

Amo. Amo declaradamente. E olha que nesses anos todos se eu elogiei alguém aqui foi três ou quatro vezes. Para que eu faça um elogio custa. Amo e bato palmas, torcendo para que o programa continue. Eu sei que Danilo Gentili não precisa da TV e nem mesmo é o que lhe dá mais prazer de fazer, mas, puta que me pariu, a TV precisa (e muito!) do Danilo Gentili. Se o “Agora é Tarde” acabar eu vou leiloar minha TV no Mercado Livre, porque ela vai perder utilidade.

“Mas Sally, como pode um programa bacana desses na TV brasileira?”. Simples: a produtora é argentina. Sem mais, me retiro.

Para me oferecer uma vaga para trabalhar no Agora é Tarde, para mandar este texto para Danilo Gentili ou ainda para dizer que não vai ter como ver o programa porque jogou sua TV no lixo em 2007: sally@desfavor.com


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