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Flertando com o desastre: Nivelando por baixo.

| Somir | | 73 comentários em Flertando com o desastre: Nivelando por baixo.

A Marcha das Vadias é um movimento popular que teve sua primeira ocorrência na cidade de Toronto, no Canadá, em Abril de 2011. Desde então, já percorreu o mundo, com versões até mesmo em lugares como Jerusalém. O objetivo? Conscientizar a população de que as mulheres são vítimas num estupro independentemente das roupas que estão vestindo.

A lógica básica de que o único culpado por um estupro é o estuprador é inapelável. O que se desenvolve a partir daí é que são elas…

Sou um grande defensor de jamais nivelar o mérito de uma ideia ou atitude pela reação de gente ignorante e mal intencionada, tanto que vira e mexe estou aqui reclamando quando brasileiro demonstra sua incapacidade de compreender discurso humorístico. Azar dos incapazes: Um mundo que se pauta por ignorância é um mundo no qual eu não tenho a menor intenção de viver.

Mas é inocência ignorar o abismo entre idealismo e a possibilidade de aplicação dele num planeta dominado (numericamente) por pessoas sem capacidade ou meios de sequer compreender a diferença entre realidade e imaginação (eu ouvi um aleluia?).

Em tese, uma mulher tem todo o direito de se vestir como quiser, encher a cara e até mesmo dar em cima de metade da população masculina do planeta sem se obrigar de forma alguma a manter relações sexuais com qualquer um deles. Em tese, uma mulher pode desistir do sexo na cama do motel com a relação já iniciada e ainda sim ter todo o direito do mundo de ser deixada em paz.

O direito já existe. Ele já é inclusive uma realidade para a parcela mais bem instruída e equilibrada da população. Eu ficaria puto da vida se uma mulher desistisse do sexo “na cara do gol”, mas jamais passaria pela minha cabeça tomar uma atitude coercitiva (psicológica ou física) nesse caso. E do meu ponto-de-vista, isso não me faz uma pessoa boa. Assim como ética e honestidade, respeito pelos direitos alheios nada mais é do que a porcaria da obrigação.

Agora, eu preciso traçar um paralelo com outra situação para explicar melhor por que isso aqui vai ser um Flertando com o Desastre: Em tese, eu tenho TODO o direito de entrar com uma camiseta do Corinthians no meio da torcida do Palmeiras e berrar a plenos pulmões que o time deles é uma merda. Em tese, eles não podem encostar um dedo em mim. Nem mesmo me ameaçar ou exigir que eu saia dali.

Se você é uma pessoa minimamente racional, nem deveria passar pela sua cabeça agredir outro ser humano por causa do time pelo qual ele torce. É uma atitude bárbara, algo terrível para seres com tamanho grau de evolução intelectual e organização social como nós.

É errado e ilegal agredir alguém por um motivo cretino desses, mas você diria para alguém querido fazer algo como vestir a camisa de um time rival no meio de uma massa de torcedores? Você daria esse conselho para um filho?

Sally vira e mexe usa uma frase muito bacana sobre direito: “Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga e ignora o direito.” – E dá para traçar um paralelo perfeito sobre bom-senso aqui. Quando o bom-senso ignora a realidade… Nivelar seu padrão de comportamento pela parcela mais ignorante da população é sim algo negativo. Mas nem só de idealismo vive o homem.

Uma coisa é conscientizar as pessoas de que as roupas de uma mulher não a obrigam a agir de uma determinada forma. Outra é extrapolar essa proposta inicial para criar a ilusão de a relação entre causa e efeito deixa de existir na vida real. As marchas que ilustram este texto frequentemente avançam para campos além da composição das vestimentas de uma mulher. Não é incomum ver cartazes defendendo inclusive que consumo de bebidas alcoólicas e flerte também não geram obrigação nenhuma por parte delas.

O que é verdade, e além de tudo, é a lei. Agora… isso é bom-senso? Você tem o direito de andar abanando um maço de notas de cem reais numa viela escura num bairro pobre de sua cidade e não ser incomodado em momento algum. Você tem o direito de deixar seu carro aberto com a chave no contato em qualquer lugar permitido para estacionar e encontrá-lo são e salvo na volta… Nós inclusive temos o direito de não encher nossas casas de muros e grades e não ter nada subtraído de nossa posse.

Temos o direito de manter nossa integridade física e propriedade privada independentemente das medidas que tomamos para assegurá-las. Somos nossos donos e donos do que possuímos. Nossa sociedade é construída ao redor de preceitos desse tipo.

Agora, é de uma irresponsabilidade terrível criar a presunção de que não existem comportamentos e atitudes arriscadas nessa vida. As leis e os direitos só existem e estão “no papel” porque são desrespeitados. Não deveria ser surpresa para nenhum adulto, independentemente de seu sexo, que muita gente age de forma contrária às leis estabelecidas. E que se proteger é uma prerrogativa básica para uma vida segura.

Ser mulher não te exime da responsabilidade pelo risco assumido. Ser mulher não te exime da responsabilidade por ignorar a realidade. A responsabilidade pelo crime do estupro não é dela, evidente. Mas pelos cartazes e discursos presentes nas Marchas da Vadias, a sensação é de que existe uma expectativa de fuga da responsabilidade básica de auto-preservação.

As vestes de uma pessoa são sabidamente catalisadores de comportamentos alheios. Desde a infância aprendemos isso. Se você se sente ameaçado por um estranho na rua, vai pedir ajuda à pessoa com roupas brancas e estetoscópio ou à fardada com uma arma no coldre? Não é obrigatoriamente preconceito julgar o propósito ou intenção de alguém baseado nas roupas que veste.

Uma mulher vestida de forma a exibir mais pele desnuda ou a evidenciar elementos claramente sexuais da sua imagem vai gerar presunção de interesse sexual. Não de obrigação, mas de interesse. Isso vai ser um modificador de percepção para outros seres humanos. Não adianta tapar o sol com a peneira.

Uma mulher claramente intoxicada com o álcool (ou qualquer outra substância com o CLARO propósito de alterar percepção da realidade) vai gerar a presunção de vulnerabilidade e facilidade de interação. A não ser que eu viva num universo paralelo, não é como se as pessoas bebessem (socialmente) para se manter isoladas, não?

Uma mulher que flerta de acordo com padrões pra lá de pré estabelecidos socialmente também não pode dizer que estava passando uma mensagem de afastamento, certo? E não adianta dizer que muitos homens entendem errado o que configura flerte, vários dos cartazes na Marcha dizem com todas as letras que a mulher tem o direito de flertar ativamente. O que de fato tem, mas não de flertar ativamente e ter a outra parte telepaticamente consciente de suas reais intenções.

Exigir o direito de se fazer valer preceitos como o direito de escolha do que fazer com o próprio corpo não é o problema. O problema é a expectativa de isenção de CONSEQUÊNCIAS por causa de leis e direitos escritos em algum lugar. As consequências não podem ser controladas por mera vontade. Elas devem ser controladas e direcionadas ativamente pelas nossas escolhas.

E se suas escolhas trazem consigo riscos indesejados, o papel de vítima não resolve por si só. Uma mulher que passa uma mensagem, se coloca numa situação de potencial risco e quer escapar vai esperar quem para salvá-la? O Batman? E aqui é importante fazer a separação entre o estuprador clássico e o estuprador oportunista.

O clássico tende a nem se aproximar de “vadias” no sentido que prega a Marcha. Estupro como método único de prazer tem muito mais a ver com poder do que com qualquer outra coisa. Toda a situação gira ao redor do estuprador oportunista aqui, até porque não dá para conscientizar quem tem o parafuso solto como o estuprador em série.

E o oportunista, que preda mulheres que julga quererem sexo ou que “pune” as que julgam agir de forma vulgar, esse sim poderia mudar de comportamento se entendesse que não há justificativas para forçar uma relação sexual. Mas o buraco, pra variar, é bem mais embaixo. O “pedaço” da compreensão de alguém que define essas regras de limites sobre o que pode ou não fazer com outro ser humano não funciona sozinho. Ele é resultado de criação e visão do mundo como um todo. Essa pessoa não vai ser convencida nesse ponto apenas, no máximo vai ser coibida de praticar o ato.

Na minha nunca modesta opinião, o movimento deveria se chamar Marcha do Spray de Pimenta ou do Aparelho de Choque. Ensina a mulherada a andar com um desses sempre na bolsa e a usar quando sua integridade física estiver ameaçada. Isso vai gerar mais mudança social a curto prazo do que qualquer cartaz “vitimizador”.

E olha que eu estou pulando toda a parte das mulheres que consentem (mesmo que sem muita convicção) e se arrependem. Querendo ou não, elas são uma parcela das “estupradas” que aparecem reclamando dos malignos companheiros de espécie. E também temos as filhas da puta que nem arrependidas ficam, mas que usam sua presunção de vítima automática para escapar da responsabilidade de suas escolhas e/ou ferrar um homem do qual não gostam ou querem chantagear.

E eu nem vou usar isso como argumentação contra a Marcha porque já disse desde o começo que não devemos nos pautar pelos elementos podres de um grupo. Mulher que usa o sofrimento real de outras para tirar vantagens pessoais é um ser nojento. Ponto.

E como na maioria avassaladora das reuniões de pessoas nesse mundo, não há homogeneidade de capacidade de compreensão do propósito. Sempre tem as pessoas que se juntam ao movimento para pregar ideologias cretinas. Quando a Marcha das Vadias assume um componente feminista, está se nivelando por baixo. Dizer que mulheres devem ser isentas de consequências e responsabilidades que seriam consideradas comuns para seus pares do sexo masculino é a síntese do abominável movimento feminista que anda tomando conta do justo movimento de liberação e igualdade feminina. Uma coisa é querer seus direitos, outra é querer vantagens.

Não cedo nesse ponto: Machismo e Feminismo são lados opostos da mesma moeda estúpida. Assim como um negro dizendo que brancos são inferiores por serem brancos é racista, alguém pregando a noção de que pessoas com um cromossomo Y são culpadas por tudo está sendo sexista (parece piada, mas muita feminista diz que sexismo é coisa que só homem pode fazer). Não importa qual o grupo que mais cometeu injustiças, importa a injustiça. Assim como ensinamos crianças que “quem começou” não influi na reprovação da briga em si, deveríamos ensinar para os adultos que o grupo que realmente importa é o humano.

Direitos merecem todas as marchas do mundo. Sem contaminação. O caminho elevado não passa pela ignorância do funcionamento da sociedade ou dos problemas reais que ela enfrenta. Ser vítima não é o suficiente.

Para dizer que não entendeu se eu sou favorável ou contra a Marcha das Vadias, para demonstrar a sua incapacidade de separar conceitos como culpa e consequência, ou mesmo para dizer que se animou em começar a Marcha do Spray de Pimenta: somir@desfavor.com


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