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Desfavor da semana: Abandono afetivo.

| Desfavor | | 37 comentários em Desfavor da semana: Abandono afetivo.

Em decisão inédita, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) determinou que um pai deve pagar indenização de R$ 200 mil para a filha pelos danos morais causados por abandono afetivo. FONTE

Para não pagarmos indenização por abandono afetivo, vamos dar o devido carinho à notícia: desfavor da semana.

SOMIR

Na posição de costumeiro detrator dos sentimentos, me preocupa muito que a imensa subjetividade deles ronde a legislação de um país. Seja com o povão pedindo a cabeça de qualquer Zé Ruela que calhe de cometer um crime com cobertura da mídia, seja com a infantilização de minorias intocáveis, deixar o “coração” decidir as coisas do Estado só pode terminar em cagada.

Se é que o sistema (no sentido amplo) tem uma graça, é a de se pautar por noções muito mais sólidas do que a combinação hormonal e nível de estresse momentâneo de uma pessoa aleatória. O sistema, para funcionar, precisa de regras baseadas em fatos e experiência acumulada de uma sociedade. Pode-se dizer muito sobre as falhas na aplicação de leis como as brasileiras, mas as ideias e as linhas traçadas por elas são, em sua maioria, bem razoáveis.

Por exemplo: Se você faz um filho e abandona de vez, está sendo irresponsável e possivelmente criando um problema coletivo. Para não deixar que isso vire regra e tenhamos ainda mais mulheres se virando para criar filhos sem suporte nenhum, as leis sobre pensão são bem severas. Pode matar vinte e roubar a verba da merenda escolar, mas ai de quem não pagar pelos filhos que fez! É meio dramático sair prendendo quem atrasa pensão, mas com certeza faz efeito.

Fazer pai (ou em raros casos, a mãe) pagar pelo filho faz sentido. Principalmente porque é uma medida de ação possível de ser quantificada. Números não costumam tocar corações, mas como eles são estáveis! Ricos e pobres de todas as raças, berços e credos podem ser julgados a partir de dados práticos como a porcentagem dos seus ganhos destinados à criação dos filhos. Criança custa caro, mas também é um investimento para o Estado. Gente criada em boas condições costuma ser mais lucrativa (ou menos danosa) para uma sociedade.

A questão é que existe lógica em cobrar pensão do pai que se ausenta, mas tão importante quanto é a possibilidade de saber QUANTO cobrar dele. Não é sentimentalismo barato, é prática.

E quando a discussão sobre a decisão de indenizar uma filha por suposto abandono afetivo do pai vem à tona, muita gente resolve começar sua argumentação com um “criança precisa mais do que dinheiro”. O que eu não disputo, de forma alguma. Vou até além: Esse mundo definitivamente precisa de mais afeto em todas as relações sociais. Se sentir querido, amado ou admirado tem um efeito muito positivo na vida de qualquer pessoa. É terrível que um pai não queira ou não possa demonstrar afetividade por uma filha, e deveríamos ter formas de evitar que isso aconteça.

O que esse povo parece não entender é que a decisão do STJ acabou MENSURANDO afetividade. Não se faz uma coisa dessas por uma série de motivos, tanto que dos inúmeros crimes tipificados na nossa legislação, nenhum deles é específico sobre não gostar de alguém. Você não pode xingar (acho uma frescura, mas estamos indo por esse caminho), bater, roubar ou matar, mas indiferença ou animosidade ainda são legalizadas.

Como eu mesmo concordei, o mundo se aproveitaria muito de mais afeto. Mas o problema é que não é algo que se possa medir de forma consistente e justa para a grande maioria da população. O quanto configura afeto varia de pessoa para pessoa, e em grande parte por causa de situações que vão além da vontade delas. A sua criação, companhias e experiências acabam definindo o que é afeto para você.

Para muita gente, a forma como eu demonstro afeto nem registra como afeto. E do meu ponto de vista, a forma como muita gente demonstra afeto me parece uma mera coreografia. Algumas famílias são mais “grudadas”, outras não. Algumas pessoas precisam de contato físico para compreender afeto, outras o percebem até mesmo numa provocação verbal.

Quando a medida de algo depende quase que exclusivamente de percepção pessoal, não é papel do Estado fazer a regulamentação. Vai basear no quê? Na cabeça de um juiz ou juíza? Temos de lembrar que mesmo com a toga, é uma pessoa (e como o STF prova, nem sempre capacitada) com uma experiência de vida própria, memórias e traumas únicos. Um caso desse tipo caindo na mão de um juiz que se sentiu negligenciado na infância poderia ser considerado justo?

Povos como o brasileiro tratam seu governo de uma forma infantilizada: Cedendo poder de escolha e liberdades pessoais em troca de segurança e conformidade. Uma decisão desse tipo é um abuso e um precedente perigoso. Definimos então o que é um abandono afetivo? Isso vai valer para todo mundo? As pessoas vão ter que seguir um modelo pré-definido de atitudes para não pagar uma indenização além da pensão alimentícia? Muitas perguntas, poucas respostas.

E não precisamos parar no abandono afetivo. Essa decisão define que não gostar de algo que não é crime pode colar como processo indenizatório. Posso pedir indenização para aquela pessoa cretina que anda devagar na faixa da esquerda? Abandono de velocidade. Eu tenho uma bronca MONSTRUOSA contra gente que fica mexendo no celular enquanto fala comigo, posso pedir indenização por isso? Abandono de educação. Ou quando uma mulher fica provocando e depois pipoca (“senão ele vai me achar fácil…”)? Abandono de ereção.

Vamos sair pedindo indenizações! O Brasil é o país dos espertos, onde piada é crime se a vítima é rica ou se a notícia aparece na TV. Se o Judiciário resolveu que vai liberar dinheiro para quem reclamar de algo que não é crime e mesmo se fosse não seria mensurável, otário é quem não aproveitar! A porra do trabalho dos excelentíssimos metidos a pop-stars não é fazer manchete toda semana, é aplicar a lei.

Você pode estar me achando um cínico. Talvez você tenha razão… Se o malvado pai da garota abandonada fosse pobre, ela o processaria do mesmo jeito, certo? Tudo pelo afeto.

Para dizer que eu com certeza estou advogando em causa própria desta vez, para reclamar que se sente abandonado quando eu não respondo e-mails e comentários, ou mesmo para dizer que devem ter me abandonado com lobos (insensíveis) quando eu era bebê: somir@desfavor.com

SALLY

O caso: um empresário rico tem um caso com uma nobody, que “coincidentemente” engravida. O empresário não se recusa a assumir a filha e inclusive lhe dá suporte financeiro, porém não criou um laço afetivo com a menina. Ele alega que a mãe dificultava seu contato com a menina e tumultuava a situação, argumento que foi acolhido no primeiro julgamento, onde o tribunal decidiu que a agressividade e descontrole dessa mãe inviabilizaram um relacionamento do pai com a filha. Porém, o STF entendeu diferente, após ouvir uma história triste contada pela mãe e pela filha, condenando este pai a pagar uma indenização de duzentos mil reais por “abandono afetivo”.

Nem vou entrar no mérito da questão sobre este caso em especial, porque o que eu tenho a dizer independe de detalhes do caso concreto: É um absurdo que o Poder Público queira obrigar um pai a amar uma filha, a estabelecer um laço afetivo com ela, a cuidar dela. ISSO NÃO É POSSÍVEL e o remédio seria pior do que a doença caso se insista nessa chantagem financeira para pais amarem e cuidarem dos filhos.

Em primeiro lugar, caso se abra essa porta, milhões de filhos que se sentem negligenciados pelos pais ingressarão com enxurradas de ações, afinal, não precisa estar de corpo ausente para configurar abandono afetivo. Todos aqueles casos que a gente conhece ou já ouviu falar vão inundar o Judiciário: aquela mãe que largou a filha com a avó por causa de um namorado, aquela mãe que trabalhava o dia todo e deixava os filhos pequenos sozinhos e até mesmo aquela mãe que negligenciava as necessidades afetivas de sua prole. Tudo vai virar motivo para pedir gordas indenizações.

Vamos supor, em um mero exercício de imaginação, que fossem concedidas indenizações a todas as crianças que foram abandonadas emocionalmente pelo pai ou pela mãe. Fico me perguntando que bem isso faria como “prevenção”? Teríamos pais que não gostam dos seus filhos mas os levam forçadamente para passear de quinze em quinze dias pelo puro temor de um dia ter que arcar com uma indenização. Isso parece ser do melhor interesse da criança? Francamente, eu acho que não.

Não se pode obrigar alguém a amar, a criar laços afetivos, a se fazer presente na vida de uma criança. Simplesmente isso não é possível. Mas, novamente, em um exercício de imaginação, vamos supor que fosse possível, vamos supor que o medo de ter que pagar uma indenização despertasse todo um amor, será que o Estado tem esse direito? Será que o Estado pode nos dizer quem devemos amar, com quem devemos estabelecer um vínculo afetivo? Por mais escroto que seja, por mais escroto que EU ache, um pai tem o sagrado direito de não querer saber do seu filho.

E, vamos combinar, como se mede um “abandono afetivo”? Se o pai visita de quinze em quinze dias mas durante a visita deixa o filho em um PlayCenter da vida e enquanto a criança joga fica no celular, isso basta para descaracterizar o abandono afetivo? O que tem que fazer? Basta visitar? Basta estar de corpo presente? O que exatamente configura o cuidado necessário para descaracterizar o abandono? Provavelmente ficaremos todos nas mão do subjetivismo de cada juiz, que interpretará caso a caso, conforme suas convicções e valores pessoais. Um perigo para a Justiça, uma vez que uma mesma situação pode ter desfechos diferentes dependendo da cabeça de cada juiz. Não é uma boa ideia.

Uma onda de intervencionismo do Poder Público em questões que deveriam ser exclusivamente privadas está se instaurando silenciosamente: Lei da Palmada, noivas conseguindo indenização porque os noivos desistiram de casar (a pessoa tem o sagrado direito de desistir, porra!) e tantos outros exemplos que estão passando despercebidos pelo povo no geral me fazem sentir medo do rumo que as coisas estão tomando.

Acredito que o Estado esteja devassando a vida privada das pessoas porque a vida privada está desaparecendo: evasão de privacidade é tudo que resta. As pessoas não resguardam quase nenhuma esfera de suas vidas. Ao evadir sua vida privada, o Judiciário se sente compelido a regulamentá-la, uma vez que ela deixou de ser privada e passou a ser pública. É mais um dos tantos efeitos nefastos da evasão de privacidade.

Qualquer psicólogo ou até mesmo qualquer pessoa de bom senso vai concordar que o fato de um pai cumprir sua obrigação de presença na vida do filho apenas para se livrar do pagamento de uma indenização pode acabar causando mais danos psicológicos do que evitando. É humilhante para a criança, é indigno. Melhor nada do que um pai que só está ali por dinheiro. Uma criança merece um pai que queira estar com ela por amor. Sim, dependendo do pai, é melhor crescer sem pai.

Não custa frisar, porque o povo do “José Mayer de Sunga” sempre dá um jeito de se infiltrar: eu não estou defendendo que seja correto colocar um filho no mundo e depois abandoná-lo. É ERRADO. É ESCROTO. É CANALHA. Porém as pessoas tem o sagrado direito de serem escrotas, o que não podem é ser criminosas. Se cada atitude escrota virar motivo para indenização, todos nós acabaremos pobres. Eu sou contra essa indenização por abandono afetivo não para proteger pai canalha e sim para proteger A CRIANÇA. Um canalha que abandona o filho não deveria ser obrigado a conviver com esse filho, é melhor PARA A CRIANÇA que uma pessoa escrota a esse ponto fique bem longe dela.

Quem convive com criança sabe: elas não são muito articuladas, elas parecem até meio retardadinho[as, mas as filhas da puta tem um sexto sentido do caralho. Mesmo quando não entendem ou não decodificam o que está acontecendo, elas percebem. O trauma causado por perceber que seu pai só está ao seu lado por dinheiro é pior do que o de não ter pai. Até porque, esse tipo de pai canalha não vai se preocupar em disfarçar sua putez para a criança.

Não tem como culpar apenas o Judiciário. Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga e ignora o Direito. Para que o Judiciário pare de invadir a esfera privada do cidadão é necessário que o cidadão pare de fazer de sua esfera privada algo público. A partir do momento que situações são tratadas pelos envolvidos como públicas, o Judiciário adquire o direito de se meter. Ainda mais um Judiciário retardado e paternalista como o do Brasil.

Dificilmente a situação mude: as pessoas continuarão evadindo cada vez mais sua privacidade e o Poder Público vai meter cada vez mais a colher na vida privada das pessoas. O povão José Mayer de Sunga só vai perceber quando o caldo já tiver entornado, quando não puder nem ao menos soltar um peido dentro do elevador por medo de ter que pagar uma indenização. Mas aí será tarde demais, virarão escravos da sua própria ambição e burrice. Pedir indenização é muito fácil, o problema é quando todo mundo começa a pedir, mais cedo ou mais tarde os outros começam a pedir indenizações para a gente.

Que se foda, quando isto ocorrer Somir e eu já teremos concretizado nosso plano de dominar uma republiqueta qualquer (provavelmente o Suriname) e a rebatizaremos de República Impopular do Desfavor, onde apenas poderão entrar os cidadãos antigos, que conhecemos e confiamos. Sim, está tudo tão cagado que se queremos uma vida digna, teremos que recomeçar do zero. Já estamos trabalhando no golpe de estado…

Para pedir indenização por abandono afetivo porque eu não respondi a um comentário seu, para provar seu analfabetismo funcional e me acusar de ser a favor do abandono do filho ou ainda para aderir ao Projeto-Suriname: sally@desfavor.com


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