Des Contos: Puxando o plugue.
| Somir | Des Contos | 12 comentários em Des Contos: Puxando o plugue.
Eliah observava pela ampla janela do coletivo os primeiros raios do sol, que se espichavam preguiçosamente por trás das inúmeras torres de metal e vidro que compunham o horizonte. O céu transformava-se num gradiente azulado, banhando finalmente todo o campo de visão com a luz de um novo dia.
A poesia do alvorecer logo cede ao cintilar de uma lâmpada defeituosa num dos pontos mais elevados do gigantesco domo. A luz vacilante o trazia de volta à realidade. Não importava o quanto se tentasse simular, simplesmente não era a mesma coisa viver ali. Ou pelo menos não se comparava à sua experiência com a Terra nos seus primeiros anos de vida. Eliah começava a considerar se não estava enxergando as coisas com óculos de nostalgia…
O que seria mais um de seus frequentes acessos de cinismo acaba prematuramente encurtado, cortesia do insistente alarme sonoro indicando que sua parada se aproximava. Sem nenhum sinal de pressa, levanta-se e esnoba a brilhante linha que se forma entre seu banco e a porta mais próxima. Dirige-se a outra, alguns passos mais distante.
Não que sua rebeldia fosse levantar sobrancelhas, como de costume, o coletivo não transportava mais nenhuma viva alma. Desolação parecida com a da rua que encontra logo ao desembarcar. Puxando pela memória, ele enxerga imagens de inúmeras pessoas se acotovelando pelas acanhadas passagens do Bloco Central K, resquícios de um passado nem tão distante assim.
Como esperado, percebe pelo canto da retina esquerda um grupo de vídeos históricos sendo preparado pelo seu processador de memória pessoal. Operação cancelada quase que instantaneamente pelo usuário. As imagens borradas e lúdicas de sua memória com certeza seriam mais calorosas do que os registros genéricos da Memória Coletiva.
Alguns metros à frente, o local que Eliah viera visitar: O Centro de Sincronização Local. Ele para logo em frente à porta. Depois de um longo suspiro, e de cancelar a propaganda de calmantes preparada para tocar automaticamente quando seus níveis de estresse passassem de um determinado limite, aproxima-se da porta, que reage projetando sua foto e identificação pessoal num dos vidros. Logo após um sinal de confirmação, sua entrada é liberada.
O interior do prédio, de decoração estéril e impessoal, apresenta duas grandes áreas excessivamente sinalizadas, num claro desdém pelas habilidades de cognição de seus visitantes. Como se não fosse o bastante, recebe em suas retinas diversas projeções iluminando e colorindo o caminho corredor à dentro. Ao aproximar-se da sala indicada como “Atendimento 18 – Diversos”, escuta o som da porta da entrada abrindo novamente.
Ao se virar, observa uma mulher com passos acelerados se aproximando. Enquanto uma das mãos luta contra suas roupas tentando um melhor ajuste ao corpo, a outra se destaca, dedo em riste, fazendo movimentos de arrastar em pleno ar. Eliah, curioso, posta-se onde está, esperando sua chegada.
Chegada que acontece de forma impactante. Literalmente. Aparentemente distraída, ela tromba contra o corpo de Eliah, instintivamente se agarrando no colarinho de sua roupa.
ELA: Perdão… Eu não… O senhor é Eliah Castelo?
ELIAH: O próprio. E pode se referir a mim como “você”.
Ela se afasta um pouco, retomando a postura.
ELA: Estou tentando entrar em contato há quase dois dias! Deve ter acontecido algum problema no sistema para marcar uma audiência pessoal… Você não recebeu meus chamados?
ELIAH: Sim. Mas decidi não atendê-los.
ELA: Como assim?
ELIAH: Maris, certo?
MARIS: Sim…
ELIAH: Você vai me atender aqui no corredor?
MARIS: Peraí, você queria MESMO uma audiência pessoal?
ELIAH: Sim.
Maris, ainda incapaz de esconder sua expressão de espanto, aponta para a sala, cuja porta se abre sozinha. Eliah agradece e adentra o ambiente. Era uma sala de trabalho comum, com um datado balcão holográfico entre a confortável cadeira acolchoada da atendente e o acanhado banco do atendido. O ar parece carregado, como se a sala estivesse fechada há muito tempo. Já instalados, Maris parece ter alguns problemas para iniciar seu sistema local.
MARIS: Espera só um pouquinho. Já faz algum tempo que não ligo isso aqui… tem… tem um botão…
ELIAH: Ali. *apontando um painel reativo*
MARIS: Isso!
Uma espécie de tela virtual se forma entre os dois. Uma infinidade de ícones salta à vista, vários deles com fotos pessoais de Maris. Embora nada de efetivamente comprometedor surja, ela cora por um momento e esconde todos com movimentos frenéticos das mãos.
MARIS: Então… Eliah… Vamos ver o motivo pelo qual você pediu esta reunião.
ELIAH: Bom, o que eu quero…
MARIS: Só um segundinho. O sistema está pesquisando.
ELIAH: Tudo bem.
Uma barra de progressão começa a andar lentamente de um lado a outro da tela. Maris discretamente estica braços e pernas nos espaços onde a tela preenche o campo de visão entre os dois. Mas não discretamente o suficiente.
ELIAH: Síndrome do Exterior?
MARIS: Nem me lembro a última vez que vim até aqui para trabalhar.
ELIAH: Foi difícil chegar até a opção de marcar uma reunião física.
MARIS: E eu nem sabia que isso existia. Você está tendo algum problema com sua interface neural? É por isso que marcou aqui?
ELIAH: Não. É que a opção que eu tentei escolher não estava presente no menu de opções do sistema da Sincronização Local.
MARIS: Estranho… Opa! Achei sua ficha. Aqui diz que o senhor quer atualizar a situação do seu clone instalado. Mas essa função está amplamente disponível em nosso sistema…
ELIAH: Só que não é isso o que eu quero.
MARIS: Quer trocar por um diferente? Outra forma física? Outro gênero? Não precisava ter marcado uma reunião para isso, mas já que estamos aqui, eu faço isso… As opções vão aparecer do seu lado da tela, e saiba que eu não posso enxergar nada.
ELIAH: Maris…
MARIS: Se quiser que eu saia enquanto você… Mas eu já adianto que vi de tudo nessa carreira e…
ELIAH: Maris…
MARIS: Sim?
ELIAH: Eu quero desligar meu clone.
MARIS: Sim, mas você tem que escolher qual vai entrar no lugar, é só…
ELIAH: Não, não. Me escuta. Eu quero que vocês desativem permanentemente meu clone e não coloquem outro no lugar.
MARIS: … *expressão confusa*
ELIAH: Não quero mais estar sincronizado com o seu sistema.
MARIS: Entendi…
ELIAH: E essa opção específica nem aparece no atendimento automático.
MARIS: Você resolveu usar um daqueles sistemas externos de sincronização.
ELIAH: Não.
MARIS: Não é nem porque eu trabalho aqui, mas eu já escutei histórias terríveis sobre problemas com esses sistemas. Eles são mais baratos e permitem opções mais… liberais, mas tem gente que perde toda a memória…
ELIAH: Maris…
MARIS: Aqui sincronizamos toda hora e a conexão é excelente. Uma tempestade solar de qualquer uma das estrelas daqui e você corre o risco de perder memória ou tê-la corrompida. Não vale a pena…
ELIAH: Maris…
MARIS: Sim?
ELIAH: Eu não vou ligar nenhum outro clone.
MARIS: E quando o seu corpo desligar?
ELIAH: Morrer.
MARIS: Isso… morrer…
ELIAH: Quando eu morrer, eu morro.
MARIS: … *estática*
ELIAH: Você pode fazer isso por mim?
MARIS: Não!
ELIAH: Não pode ou não quer?
MARIS: Não… sei.
ELIAH: Não é possível que eu seja o primeiro a pedir isso.
MARIS: Aguarde um segundinho…
A tela virtual mais uma vez escurece, Maris fica em silêncio enquanto Eliah pode ouvir sons do sistema sendo manejado. A tela passa para um tom azulado, e imagens de nuvens começam a preencher o quadro. Uma voz diferente, de fonte misteriosa, começa a falar:
VOZ: A vida vale a pena.
ELIAH: Não acredito…
VOZ: Nós da Central de Sincronização Local nos sensibilizamos com suas dificuldades e pedimos para que você considere outras opções. Desligar seu clone não é a solução.
ELIAH: Maris! *atravessando a tela virtual com a cabeça*
MARIS: Por favor, escute a gravação.
VOZ: Sua existência é muito importante para o Universo. Há muita beleza e muitas surpresas à sua espera. Temos plena convicção que em seus… 294… anos de vida, você encontrou muitos motivos pelos quais continuar vivendo.
MARIS: Você é mais novo que eu… E com o tempo da viagem até aqui, só viveu mesmo uns 150 deles…
ELIAH: A vida é minha.
VOZ: Existem outras soluções. Você pode… ler… cozinhar…
ELIAH: Pronto, achou minha lista de interesses no cadastro…
VOZ: … jogar tênis… explorar asteróides…
MARIS: Você não tem medo?
VOZ: … opção censurada…
ELIAH: Medo de perder o doce conforto dessa gravação genérica?
VOZ: … criar animais geneticamente modi…
MARIS: Mas o sistema não vai me deixar desligar o seu clone sem uma avaliação psicológica e médica completa.
VOZ: … escutar música clássica do Século XXII…
ELIAH: Eu imaginei que não daria certo pedir. Mas você pode desligar a minha cópia de emergência, não é mesmo? Vocês fazem isso quando querem assustar as pessoas para pagarem suas taxas de manutenção, não é mesmo?
VOZ: … praticar surfe…
MARIS: Sim, essa eu posso. Mas não adianta. Se uma estiver ligada já é o suficiente.
VOZ: … artes marciais…
ELIAH: Maris… para que fique registrado, eu estou te ameaçando a desligar meu clone de emergência.
Eliah abre seu casaco, exibindo algo muito semelhante a cápsulas explosivas de antimatéria.
ELIAH: AGORA!
VOZ: … passeios em praias naturais…
MARIS: Ai! Pronto… pronto… desligado!
VOZ: … passeios em praias artificiais…
ELIAH: Agora você vai sair daqui. Do outro lado do bloco já é o suficiente para você ficar segura, ok?
VOZ: … realidade alterada…
MARIS: Você vai explodir este prédio? São milhões de clones!
VOZ: … realidade alterada artificial…
ELIAH: Um deles é o meu. Seu clone de emergência ainda está ativo, mas essa explosão não vai ser agradável. É melhor sair agora.
VOZ: … realidade alterada artificial alternativa…
MARIS: Só me responde por quê?
VOZ: … estudar história terrestre antiga…
ELIAH: Para ser imortal.
VOZ: … estudar psicologia…
A proteção emergencial de retinas evita que Maris assista a explosão em toda sua glória. Mas não a impede de narrá-la à multidão que se junta no local em questão de minutos para observar os trabalhos das equipes de resgate.
Prefiro o original.
Vcoe fuma “um” qunado escreve essas coisas, nao eh verdade??!!
Parece Minority report, só que mais avançado :)
Tão Admirável Mundo Novo…
Tão Admirável Mundo Novo…
Cara, já leu “Não Verás País Nenhum”, do Ignacio de Loyola Brandão? Causa o mesmo tipo de sensação desses seus contos.
Engraçado que essas histórias futuristas que narram humanos dominados e idiotizados (Aldous Huxlei, abração, mano!) me deixam angustiado.
Marok, eu li esse livro quando ainda estava no colégio… Tenho a mesma sensação que você…
É legal, né?
Só fiquei chateado quando acabou, pra mim era o meio da história, estava muito curioso pra saber o que viria depois dos últimos acontecimentos.
Mas tudo bem, é o tipo de livro que você fica pensando e aproveitando mesmo depois de terminada a leitura. É tipo uma droga que sai do organismo aos poucos. Tipo esses contos somirescos.
Vc acha que choveu ou não???
Eu ficava mais pensando que não importava o que acontecesse, ia continuar piorando. Queria saber se as pessoas, no geral, ficariam ou não desapontadas quando descobrissem o que eram as marquises, realmente.
Em todo caso, eu acho que não choveu.
wat
Hein?