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Flertando com o desastre: A droga da criatividade.

| Somir | | 45 comentários em Flertando com o desastre: A droga da criatividade.

Estamos na Semana Transcendental aqui na Nação, comemorando o dia do… artista… e Mártir Transcendental Rafael Pilha. Momento ideal para desmistificar a relação entre substâncias ilícitas e criatividade artística. Drogas geram experiências inusitadas e situações inesperadas, mas não é só sair injetando a tabela periódica corrente sanguínea adentro para se destacar. Drogado tem aos montes, mas Pilha é só um (ainda bem!).

A noção de que drogas podem te fazer mais criativo é ancestral, povos indígenas já utilizavam as mesmas substâncias ativas de muitas das drogas mais populares hoje em dia há alguns milênios. Há fortes indícios que sempre foi com objetivos “espirituais”, para viver experiências religiosas e entrar em contato com lugares e seres alheios à nossa percepção tradicional. Muito embora eu ache que também tinha o componente “vou ficar mais louco que o Batman hoje à noite…”

Os mitos de criação da maioria das religiões são viagens lisérgicas de primeira. Analisando de forma fria, quase sempre são construídos ao redor de elementos comuns nas sociedades que os criaram, arranjados em metáforas e simbolismos atemporais numa estrutura muito parecida com uma alucinação das boas. E de fato, muitos estudiosos trabalham com a possibilidade de drogas alucinógenas antigas terem alimentado quase que a totalidade das histórias religiosas mais fantásticas.

Estou comparando essas experiências religiosas com busca de criatividade porque ambas bebem da mesma fonte: Percepção alterada da realidade. Mesmo que seja apenas uma sutileza, material criativo sempre tem algo que surpreende a mente humana, tão afeita aos padrões e repetições.

Até mesmo na hora de cobrir buracos no nosso conhecimento. Voltando ao exemplo dos mitos de criação, a resposta para a pergunta de como viemos parar aqui nesse mundo todo mundo já sabia. E era “Sei lá”. Isso todo mundo tinha, mas quando mentes criativas começam com histórias de vacas celestiais, deusas de seis braços, titãs, cobras falantes e tudo o mais, o povo se esbalda. É criativo. É tanta coisa surpreendente encadeada numa história só que vai pegar qualquer pessoa desse mundo despreparada.

Criatividade está intimamente ligada com essas “surpresas”, ideias e obras que te fazem ver o mundo de forma diferente. Você não acha alguém criativo por fazer exatamente o que você previu, não é mesmo? E muito como a arte, se é que se pode separar criatividade e arte em algum momento, depende demais da percepção da platéia. É mais do que comum que o apreciador da peça de arte encontre nela significados que nem mesmo o autor pensou em colocar ali.

Muito importante trazer à tona a ideia de surpresa e que essa surpresa precisa ser vivenciada por alguém. Uma Capela Sistina e alguém pulando de trás de uma porta para te assustar podem ser consideradas criatividade artística. Evidente que isso não compara a complexidade das duas coisas, ou mesmo o mérito de quem as fez, mas não podemos considerar criatividade como um talento mágico que apenas algumas pessoas tem. Criatividade é um conceito maior, ligado a nossa percepção do mundo. Acho extremamente limitante quando alguém diz que “não é criativo(a)”. Nem é possível para um ser humano não ser criativo… O que varia, e muito, é a capacidade e a experiência necessárias para produzir obras reconhecíveis para outras pessoas. Outras pessoas.

Mais uma vez de volta aos mitos de criação. Vou me ater agora o judaico-cristão, com o qual acredito que não só eu como a maioria de vocês deve estar mais familiarizada. Por mais que eu ache que podia ser mais interessante (tem outros bem mais curiosos), o grande mágico celestial criando o palco e platéia durante o show, o jardim do Éden, o homem de barro, a mulher de costela, a maçã do pecado e a cobra falante são elementos bem fora do usual… Se apareceu isso, imagina o que mais não apareceu na mesma época? Um cidadão que pensa cobra falante é a mesma coisa do que pensa camelo voador. Se a versão que conhecemos hoje existiu, pode apostar que outras até mais piradas surgiram com o passar do tempo.

Mas só essa acabou escrita no livros sagrados. Qual o fator determinante para preferir a cobra falante ao camelo voador? Ambas são criativas. A questão aqui é que provavelmente a versão da cobra falante foi construída por alguém mais ligado nos medos do povão, contada por pessoas mais cativantes, sancionada por autoridades mais poderosas… Não adianta ser apenas criativo. Tem muito mais coisa que define o sucesso de ideias e obras.

O que fazemos com essa criatividade é que são elas. Todo mundo é criativo, pouca gente sabe se expressar, menos gente ainda tem a sorte de ser percebida. E desses, só uma fração tem habilidade técnicas muito bem desenvolvidas.

Ser criativo é a parte fácil. É o que todo mundo tem. Acho muito babaca o conceito de “dom”, como se pessoas já nascessem pré-dispostas a ter destaque numa área, principalmente numa de expressão artística. É interesse, dedicação, esforço e… sorte.

Por isso que não adianta ficar chapado para ficar mais criativo e tentar escrever uma música se você nem sabe como se escreve uma música… Vira a alegoria dos infinitos macacos com máquinas de escrever. Sem a habilidade para o que pretende fazer, é chance pura. E uma chance que joga muito contra você.

(Embora eu acredite que “Ai se eu te pego” foi escrita por um macaco numa máquina de escrever…)

Entendemos que criatividade é só o começo? Entendemos que todo mundo é criativo? Ótimo.

Drogas podem te deixar mais criativo. Na verdade, é quase inescapável. Drogas vão alterar sua percepção da realidade, algumas deixam sua mão engraçada, outras te fazem atravessar um túnel de luzes rumo ao infinito. Mas todas vão até o seu cérebro e fazem alguma coisa funcionar de forma diferente do que deveria.

De uma forma simples, é como se a substância provocasse um “bug” na sua cabeça. E a partir dessa falha, o cérebro começa a processar as informações que processa habitualmente de forma diferente. Importante ressaltar que as “portas do Huxley” são meramente metafóricas: Você não vai para um lugar que nunca foi antes, você vai ver as mesmas coisas de formas diferentes. Seu cérebro já está acostumado e pegar um impulso elétrico e tratá-lo como azul, uma substância pode simplesmente fazê-lo considerar o mesmo impulso como vermelho.

Para quem está viajando, o mundo pode virar de ponta cabeça. Ou mesmo sumir. Drogas alucinógenas poderosas costumam pegar virtualmente toda sua percepção e distorcê-la a níveis irreconhecíveis na vida real. De um ponto de vista puramente criativo, não é de se jogar fora. Se você consegue achar novos significados para o que já se tornou banal, você tem matéria prima da boa para surpreender outras pessoas.

Mas na prática, a teoria é outra. Com raríssimas exceções, drogados costumam ser chatos, repetitivos e extremamente menos profundos que imaginam (essa é especial para os maconheiros… SIM, EU JÁ PENSEI SE NÓS ENXERGAMOS CORES DIFERENTES!), como é que alguém que passou por uma experiência sensorial como essa pode continuar sendo tão banal?

As drogas funcionam por um motivo. São reações químicas que influenciam receptores específicos no cérebro. Pessoas diferentes, MUITO diferentes, relatam experiências parecidas quando usam as mesmas drogas. Cidadão não vai fumar um baseado e viajar como se tivesse injetado DMT. As drogas funcionam de uma forma e seus efeitos são mais ou menos previsíveis.

Mas como vivemos num mundo de floquinhos-de-neve que se acham únicos e especiais, o papo é sempre que a pessoa foi para um lugar incrível e que cada experiência é incrivelmente diferente da outra. A dura verdade é que ir para um estado de consciência alterada por intermédio de uma droga específica tem mais a ver com ir à Disneylândia do que visitar uma galáxia distante: Muita gente já esteve no mesmo lugar, mas nem todo mundo gostou dos mesmos brinquedos.

Se a pessoa já não tinha subsídios para transformar a experiência em algo aproveitável aqui de volta ao mundo real, grandes merdas encher o rabo de drogas. É uma experiência criativa, claro, mas criatividade é carne-de-vaca. Uma pessoa com foco, experiência e paixão pela escrita é capaz de escrever um relato sobre uma viagem à padaria mais interessante do que analfabeto funcional que passou semanas num mundo psicodélico…

Viajar é fácil, trazer de volta a experiência que é arte. Pessoalmente, acho desnecessário alterar a percepção de forma tão agressiva apenas para conseguir enxergar o mundo de forma diferente. Se você é capaz de trabalhar com o que vivenciou na alucinação aqui de volta, é capaz de criar suas próprias loucuras. Esse aspecto artístico do uso de drogas soa com desculpa esfarrapada para uma função delas, uma que eu até respeito se a pessoa admitir:

Mandar sua cabeça para a puta-que-pariu e deixar esse mundo mala para trás por alguns momentos. A experiência pode ser a recompensa em si. Dizer que usa drogas para abrir as portas da consciência e encontrar coisas que ninguém mais vê é de uma pedância que nem eu mesmo tenho coragem de aplaudir. A pessoa quer motivos maiores do que simplesmente buscar o prazer de uma sensação.

Drogas podem influenciar positivamente sua criatividade, mas eu posso argumentar a mesma coisa sobre a catarata. As obras de Claude Monet com certeza ganharam um diferencial quando ele começou a perder a visão. Ou mesmo sobre pobreza e depressão. Van Gogh produziu suas obras mais famosas enfiado até o peito na merda. Não é nem argumentação se ficou melhor ou não, mas uma variação na percepção de uma pessoa modificando sua arte.

A vida de uma pessoa influencia em sua obra. Evidente. A conexão entre problemas pessoais e genialidade ficou na cabeça das pessoas porque uma parcela dessas pessoas problemáticas tinha (e tem) a habilidade de expressão muito bem desenvolvida. Podemos acompanhar e em certo grau, sentir a evolução da vida dessas pessoas em suas obras.

E essa conexão acaba carregada para o mundo das drogas, corretamente associado com vidas problemáticas. A maioria dos artistas famosos pelos seus vícios não eram geniais por causa desses vícios, eram APESAR deles. É a vida da pessoa, o que ela faz e o que se consegue expressar a partir dela que fazem a criatividade virar arte.

Quando o artista apresenta uma obra que influenciada por uma viagem causada pelas drogas, ela só funciona se aquela experiência pode ser vivenciada pela platéia. E isso é coisa que se faz fora do mundo efêmero criado por uma substância no seu cérebro.

Se você acha que usa drogas para ser criativo, você usa drogas por outro motivo. Um dos mais comuns.

Para dizer que eu simplesmente não “entendo” (ha), para reclamar que esperava uma abordagem mais criativa (ha) ou mesmo para perguntar se bater a cabeça na parede com tudo vai te deixar mais criativo (vai): somir@desfavor.com


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